Vítima esquecida do terror

O caso da mineira Maria Celia de Mello Lundberg* é uma daquelas histórias que a direita brasileira teima em ignorar quando se trata de avaliar as barbaridades cometidas pela ditadura. Celia tinha 27 anos ao ser presa em 1971. Foi torturada e violentada sexualmente. Seu crime: participar de reuniões da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização clandestina, e dar aulas de alfabetização para adultos. Nunca participou de ações armadas, assaltos a banco ou sequestros. Nunca “matou inocentes”, como afirmam os defensores do regime a respeito dos militantes de esquerda que ingressaram na guerrilha. A inocente era ela.

Hoje com 68 anos, Celia Lundberg é uma das vítimas da ditadura, cujo processo será submetido a julgamento pela Comissão de Anistia na segunda-feira 8. Ela pede do Estado brasileiro uma aposentadoria para que tenha a possibilidade de voltar a viver no País. Ao sair da prisão, e com medo de ser presa novamente, a militante fugiu para o Chile, e de lá, após o golpe militar que derrubou Salvador Allende, em 1973, foi para a Suécia. Casou-se com um sueco que havia conhecido na capital chilena, Karl Svante Lundberg, e teve dois filhos. Formou-se em Fisioterapia e exerce a profissão como autônoma.

Neste meio tempo, veio algumas vezes ao Brasil, por razões de enfermidade na família ou para enterrar parentes: a mãe, o pai. Voltar à terra natal sempre significou abrir velhas feridas. Pelo Skype, ela interrompe várias vezes a entrevista, sem conseguir segurar o choro. As lembranças ruins vêm à tona: os policiais armados com metralhadoras invadindo o apartamento em que ela morava, em Belo Horizonte, com 8 dos 11 irmãos estudantes. Os pais viviam na cidade de Salinas, norte de Minas Gerais. Celia tinha acabado de se formar na Universidade Católica. O irmão, Hervê, estava preso no Dops mineiro quando a levaram.

Formada em Geografia e em Educação Física, Celia Lundberg tinha entrado na ALN por influência de Hervê, militante do grupo. Desde pequena, conta, sentia-se indignada com as desigualdades sociais no Brasil. Seu pai, um homem conservador, “mas justo”, como o define, era feminista, e deu oportunidade de estudo igual aos filhos e filhas. A mineira diz que se sentia “doída” de ver que alguns pudessem ter tudo, enquanto outros não tinham nada. Entrou para a ALN e acabou presa. Os pais nunca souberam das torturas sofridas nos porões da ditadura.

“No Dops me falavam que eu tinha feito milhões de coisas, mas nunca participei de nada pesado”, conta Celia, que tem uma memória confusa em relação ao que ocorreu na cadeia. Lembra-se do tenente que era o chefe da operação, mas não exatamente de seu rosto. Tampouco recorda a face de seus torturadores. “Muitos de nós não somos capazes de reconhecê-los. É como os judeus que saíram dos campos de concentração. Com certeza todos lembram perfeitamente dos maus-tratos que sofreram, mas não do rosto dos algozes.”

As noções de tempo são inexatas. A ex-militante não sabe se foram dias ou meses trancafiada no Dops. Quando foi promulgada a lei da anistia, em 1979, ela retornou ao Brasil pela primeira vez após o exílio. Com seu primeiro filho com poucos meses de vida, foi ouvida em interrogatório. O marido ficou do lado de fora com a criança. A brasileira saiu aos prantos, com a sensação de haver passado horas lá dentro. Só depois Karl lhe revelaria que, na verdade, tinham sido apenas 30 minutos.

É muito difícil perguntar para um ex-torturado os detalhes dos maus-tratos. No depoimento por escrito à Comissão de Anistia, ela conta ter sido submetida “a interrogatórios, torturas psíquicas e físicas”. Também ouvia o irmão, Hervê, ser espancado. “Fui removida da minha cela para outro quarto, que, provavelmente, era a sala de ‘trabalho’ dos nossos torturadores. Em uma parede, pude ler o nome de Dan Mitrione, o americano especialista em torturas que havia estado ali no Dops e depois seguiu para o Uruguai, obviamente com as mesmas incumbências.”

*A ex-militante ficou grávida na prisão e sofreu um aborto espontâneo. Fugiu para o Chile e, depois, para a Suécia.

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