Ingovernabilidade do “Porcellum” eleitoral italiano

Pela primeira vez, nos últimos quarenta anos de história européia, o voto dos italianos assustou as Bolsas de Valores do mundo inteiro, espantou os governos da União Européia, provocou a implosão do sistema eleitoral bipolar popularmente chamado “Porcellum” (Emporcalhada em latim), além de determinar uma situação de ingovernabilidade, visto que a vontade popular entrou em choque com a “ordem” dos mercados.

Achille Lollo (Roma) — Devia ser a eleição em que o eleitorado italiano, bem norteado pela mídia e os partidos, oficializaria o casamento entre os bancos da União Européia e o Partido Democrático de Píer Luigi Bersani. Um casamento em que a centro-esquerda deveria garantir a continuidade das diretrizes da Tríade (FMI, Banco Mundial e Banco Central Europeu) que, em 2011, obrigaram o presidente Giorgio Napolitano a impor o “governo técnico” de Mario Monti para remediar os desastres financeiros provocados pelos governos liderados por Silvio Berlusconi, durante os últimos 15 anos.

A campanha eleitoral iniciou em janeiro com os principais jornais que divulgavam ostensivamente as previsões dos institutos de pesquisas dando o PD vencedor, enquanto os analistas da “Grande Mídia” ocupavam todos os canais televisivos para convencer os italianos de que o futuro governo devia integrar uma maioria formada pela centro-esquerda e os moderados da coalizão formada por Mario Monti. Também no resto da Europa a mídia repetia que um governo desse tipo era a única garantia para um futuro tranqüilo da Itália na União Européia. Porém nada disso aconteceu.

Na realidade o voto dos italianos acabou com o sistema de bipolaridade, dito “Porcellum” (Emporcalhada), em que quem ganha na Câmara dos Deputados recebe um “Bônus eleitoral” que lhe permite dobrar o numero de deputados eleitos e assim alcançar a maioria no Parlamento. No Senado, o “Bônus” vem das regiões mais ricas (Lombardia, Piemonte, Campania, Lazio, Veneto) que têm o privilegio de eleger o triplo dos senadores. Portanto é suficiente ganhar nessas regiões para ter a maioria no Senado, mesmo se a coalizão é minoritária em nível nacional.

Um sistema eleitoral criado em 2005, por Roberto Calderoli (Liga Norte) para garantir a estabilidade ao governo de centro-direita liderado por Berlusconi. Assim, com a lei 270 o tradicional sistema eleitoral proporcional era substituído com a bipolaridade premiada do “Porcellum”.

É bom lembrar que também a centro-esquerda se beneficiou do “Porcellum” em 2006, quando ganhou as eleições com a coalizão liderada por o Romano Prodi do PD e Fausto Bertinotti do Rifondazione Comunista. Alias nos 722 dias desse governo (que caiu 7 de maio de 2008) Prodi nunca propusera uma nova lei eleitoral e nada fez para implementar os pedidos de referendum popular que as próprias bases do PD queriam para acabar com o “Porcellum”.

Berlusconi: a surpresa

Após ter rompida a “aliança excepcional” com o PD e a UDC (nova Democracia Cristã) que, desde 2012, sustentava o governo técnico de Mario Monti, o PDL – partido de Berlusconi – sofreu várias crises políticas. Primeiro foi posta em discussão a “lidership” de Berlusconi, seguida por uma luta feroz para a sucessão. Depois a componente dos neofascistas abandonou o PDL para se distanciar da escandalosa gestão de Berlusconi e explorar a raiva da classe média, fortemente penalizada pelo governo Monti pelas continuas taxações. Por isso criaram três partidos nacionalistas e mais uma dezena de “listas de direita” nas principais regiões. Grande parte do empresariado, também abandonou Berlusconi para apoiar os grupos políticos da área dos “moderados” e, portanto, pressionar o PD para fazer um governo de “coalizão ampla”, onde o próprio Monti seria o ministro da Economia.

Também esse cenário, tão ovacionado pelos analistas da imprensa, falhou no momento em que Berlusconi decidiu voltar a concorrer nas eleições à sua maneira, mobilizando suas televisões, jornais e revistas e jogando a carta do “libertador dos impostos”.

De fato, o PDL começou a campanha eleitoral com uma única palavra de ordem proferida pelo próprio Berlusconi em que ele prometia aos italianos de devolver por inteiro o IMU. Isto é: o novo imposto que o governo Monti, para fazer caixa, havia aplicado a uns 20 milhões de italianos proprietários de um apartamento ou de uma casa de vila. Até os céticos analistas do britânico Times e do alemão Der Spiegel escreveram em suas colunas que Berlusconi era “politicamente morto” prometendo somente fábulas que os italianos certamente rejeitariam, visto que em 15 anos de governo nunca realizou o que prometeu nas campanhas eleitorais.

Também eles, como a maioria dos jornais europeus erraram, visto que não tiveram em conta o grau de estupidez política da classe média italiana e sua dependência dos estereótipos culturais e políticos criados pela mídia. Assim, se por um lado o PDL teve uma importante sangria de votos à causa de sua participação no governo Monti, por outro lado recuperou quase seis milhões de votos graças aos italianos que acreditaram nas promessas que Berlusconi fez na televisão dizendo que “…em caso de vitória devolveria o valor da taxa do IMU após 6 meses de governo..”.

Em algumas entrevistas realizadas em Roma com os eleitores, muitos diziam: “…Votei por Berlusconi somente para recuperar os 600 Euros de taxas que o governo Monti me roubou!!!!

Na realidade, Berlusconi explorou o grau de desespero da classe média que, agora, deve sacrificar parte de sua renda para pagar os novos impostos do governos, das regiões e dos municípios que, para fechar suas contas e pagar os salários dos funcionários triplicaram os impostos sobre o lixo, as moradias, os carros, os seguros, a água, a energia elétrica, o gás, as taxas escolares, as consultas médicas, reduzindo todo tipo de serviços públicos. Por exemplo, em Roma, para fazer uma consulta com um cardiologista do sistema sanitário público (ASL) o paciente deve esperar no mínimo 35 dias.

Se depois consideramos que há quase 10 milhões de desempregados, que os trabalhadores com idade entre 50 e 60 anos, praticamente, renunciaram em procurar emprego e que 40% dos idosos pensionistas vivem na pobreza, é fácil entender porque seis milhões de italianos acreditaram nas promessas de Berlusconi permitindo ao PDL de se considerar vencedor.

Os erros do Partido Democrático

Píer Luigi Bersani, que nos anos oitenta cresceu politicamente dentro da lógica do compromisso histórico de Berlinguer e depois foi ministro nos governo Amato, Prodi e D’Alema, em dezembro de 2012 transformou as eleições primarias do PD em uma clara demonstração do “Já Vencemos”, recebendo o apóio indiscreto do presidente da república, Giorgio Napolitano – que foi um quadro histórico do PD – e de grande parte da imprensa, que saudou as primárias do PD como “a expressão máxima da política italiana”.

A cópia, quase perfeita da performance do “We Can” – que no Made in Italy se transformava no “Itália do Bem Comum”, previa uma coalizão de centro-esquerda com SEL (Socialismo, Ecologia e Liberdade), o PSI (Partido Socialista Italiano) e CD (Centro Democrático) para ganhar as eleições e depois negociar a participação no governo dos moderados de Mario Monti. Um governo que daria continuidade ao programa fiscal e de reformas sugeridas pela União Européia.

Esta opção recebia o “OK” dos mercados, que durante toda a campanha eleitoral se mantiveram calmos chegando, até, a reduzir o spread e, assim valorizar os títulos da dívida pública italiana, que é a mais alta de Europa.

O segundo erro que o PD cometeu tem muito a ver com o medo de ressuscitar, no seu seio, um setor de esquerda – devidamente silenciado após a transformação do PCI em um partido democrático clintoniano – e, no mesmo tempo dever contemporizar a possível vitória eleitoral com a esquerda comunista e movimentista como aos tempos de Prodi. Para evitar isso tudo, Píer Luigi Bersani, além de reafirmar a opção de “dependência à União Européia” e aos compromissos com a OTAN (guerra no Afeganistão, compra de aviões dos EUA, sansões à Síria e salvaguarda de Israel), não apresentou nada de novo do ponto de vista programático, capaz de garantir o crescimento da economia italiana, há quase um ano bloqueada em 0,7% e preste a entrar no negativo. De fato, nos último seis meses quase 400.000 lojistas fecharam e 37.000 pequenas e médias fábricas faliram desempregando mais de 600.000 trabalhadores. É necessário dizer que a maioria das falência se deu porque o estado, os governos regionais e os municípios não pagaram o que deviam aos empresários, também penalizados pelos os bancos que não lhes renovaram mais o crédito.

O terceiro erro do PD foi uma perola do secretário geral, Píer Luigi Bersani, que para conquistar a simpatia do empresariado silenciou a principal confederação sindical de esquerda, a CGIL. Em particular a federação dos metalúrgicos (FIOM-CGIL) ficou politicamente isolada quando desafiou a FIAT de Marchionne e o governo Monti que haviam modificado em seu favor os artigos mais importantes do Estatuto dos Trabalhadores, viabilizando, assim, uma maior flexibilização nas empresas e a exclusão dos trabalhadores sindicalizados que não aceitavam os novos contratos.

Nessas eleições o PD ganhou na Câmara de Deputados com apenas 29,5% e por isso, graças ao “Porcellum” poderá nomear 340 deputados alcançando a maioria relativa. Porém, no Senado a coalizão do PD alcançou somente 31,6% elegendo 120 senadores sem ter a maioria, visto que o PDL elegeu 117 senadores, o Movimento 5 Estrelas 54 e a Lista Monti18. Diante disso o fenômeno da ingovernabilidade é evidente, uma vez que a coalizão do PD é majoritária na Câmara em função do “Bônus Eleitoral” do Porcellum, mas é minoritária no Senado, por onde passam todas as leis e decretos leis votados pelos deputados e ser batidos no Senado significa  abrir outra crise de governo.

O sucesso do Movimento 5 Estrelas

O Movimento 5 Estrelas foi criado em 2007 por Beppe Grillo na onda argentina do “Ya Basta”. Nos primeiros anos a palavras de ordem do movimento foi um palavrão: “políticos vão à merda”. Porém, apesar da censura da imprensa, Beppe Grillo ganhou logo a simpatia de muitos setores da juventude desiludida com o centro-esquerda de Prodi e também com a desarticulação organizativa e ideológica de Rifondazione Comunista.

Praticamente Beppe Grillo, que foi um ator de esquerda chutado pela RAI por satirizar “excessivamente” a classe política, começou a propor na rede a formação de um movimento político descentralizado, cujo programa fosse a somatória das reivindicações populares. Sem usar os financiamentos do Estado para participar nas campanhas políticas nacionais, regionais e municipais e apostando tudo na militância dos jovens o Movimento 5 Estrelas cresceu começando a ganhar a simpatia de todos aqueles que eram penalizados pelos governos da direita liderada por Berlusconi. Porém a explosão de consensos se deu em março de 2012 quando o PD apoiou o governo Monti, juntando-se ao PDL de Berlusconi e a UDC de Casini.

Sem participar nos programas das TV, sem dar entrevistas nos jornais da “Grande Imprensa”, sem aceitar doações, enquanto seus vereadores e deputados regionais devolviam 50% dos salários, bem como quase todas as regalias oficiais (carros, cartão de credito, etc. etc.) o Movimento 5 Estrelas fortaleceu a imagem por ser constituído de homens e mulheres honestos, sinceros e autenticamente dedicados a resgatar as reivindicações dos setores populares mais atacados pela crise. Pouca demagogia partidária e muitos contatos no território fizeram com que a performance eleitoral desse Movimento aumentasse ano após ano.

Um contexto que surpreendeu, a classe política e a mídia. De fato, muitos italianos encararam essas eleições com um olhar crítico, cansados de eleger uma classe política que quase nada faz para melhorar as condições do país e é eternamente acusada pelos juízes de estar envolvida em escândalos, roubalheiras, corrupção, convivência com a máfia etc. etc. Por isso tudo o Movimento 5 Estrelas canalizou todos os votos de protesto contra o atual sistema obtendo 25,5% dos sufrágios na Câmara dos Deputados, onde elegeu 108 parlamentares e 54 no Senado (23,81%). Hoje, no Parlamento é o segundo partido após o PD.

Novas eleições?

Técnica e politicamente é quase impossível para o PD, formar até 15 de março um governo majoritário, que correria o risco de ser batido no Senado e assim provocar outro vácuo político com a fixação de novas eleições antecipadas . Por outro lado se Píer Luigi Bersani propõe ao PDL de Berlusconi e à Lista Monti de integrar um “Governissimo” (governo excepcional) durante os próximos seis meses para realizar as eleições presidenciais, no dia 15 de abril, fazer uma nova lei eleitoral que substitua o atual “Porcellum” e finalizar as ditas reformas do governo técnico de Mario Monti, o Partido Democrático vai implodir. Grande parte de seus  eleitores que ainda se consideram de esquerda vão apoiar o Movimento 5 Estrelas ou caem no abstencionismo.

A terceira hipótese, logo apresentada por Nichi Vendola, líder de SEL (Socialismo, Ecologia e Liberdade), implica abrir a negociação com o Movimento 5 Estrelas – que já disse ser contrario ao “Governissimo PD-PDL” e tentar definir uma plataforma comum para evitar novas eleições em 2013. Diante disso ninguém do PD se manifestou. Aliás todos os dirigentes desertaram as celebrações da milimétrica vitória e ficaram calados veiculando enxutos comunicados em que diziam que o PD vai se manifestar somente no dia 10 de março, quando o presidente da República, Giorgio Napolitano, vai chamar o secretário geral Bersani para saber se e como o PD vai formar o novo governo.

Até lá há somente especulações e muita agitação na mídia, no empresariado e, sobretudo nos setores ligados à ordem (carabineiros, exército, polícia, serviços secretos) que não sabem o que fazer se o Movimento 5 Estrelas vai ganhar as próximas eleições “antecipadas”! Ou seja, alguém diz que já sabe, mas prefere não dizer, pois os golpes de estado devem ser sempre “secretos”!!!

Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV “Quadrante Informativo”.

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