Como operam os Estados Unidos na América Latina

Como operam os Estados Unidos na América Latina

Adrián Murano (Revista Veintitrés)

31.Jul.13 :: Outros autores

As revelações resultantes dos documentos que Edward Snowden divulgou acerca do sistema de espionagem global montado pelos EUA são mais uma peça para a compreensão do colossal sistema de ingerência na vida interna de países soberanos que o imperialismo organizou. Na América Latina, e no chamado Terceiro Mundo em geral, a USAID é outra peça fundamental dessa engrenagem.

Um ex funcionário da CIA revelou um perigoso programa de espionagem e intervenção política na região. Quem são e como trabalham para desestabilizar os governos populares da Unasur. Edward Snowden não é um herói, mas a humanidade deve-lhe um enorme favor. Os documentos que o ex funcionário da CIA filtrou para o mundo demonstram o que até agora a política global sabia mas não se atrevia a denunciar: que os Estados Unidos não pouparão crimes para continuarem sendo o que são. Um império voraz.

Nós, habitantes de América latina, poderíamos presumir que não necessitávamos de Snowden para o saber. Nesta região, os Estados Unidos promoveram golpes, ditaduras genocidas, políticas económicas predatórias e elites financeiras mafiosas com o evidente objectivo de rapinar os seus recursos naturais, materiais e humanos. A intervenção foi tão vasta e letal que na diplomacia regional ainda se troca uma velha piada: “¿Sabe por que é que nos Estados Unidos não há golpes de Estado? Porque ali os Estados Unidos não têm embaixada”.

Apesar das evidências históricas em vários países de Latinoamérica como a Argentina, abunda quem acredite que a intervenção estado-unidense em assuntos domésticos é pura ficção. O equívoco foi alimentado por formadores de opinião aliados ou cooptados pela diplomacia estado-unidense, como revelaram os telegramas difundidos por Wikileaks, onde abundam referências aos vínculos entre A Embaixada e o sistema tradicional de media que no nosso país é dirigido pelo grupo multimédias Clarín. Um detalhe: referir-se à sede diplomática estado-unidense como “A Embaixada” explicita até que ponto se naturalizou os EUA como farol político. Mas não são as sedes diplomáticas as únicas que perpetram as actividades intervencionistas dos EUA na região. O país do Norte conta com uma complexa rede de organismos que, com fachadas várias, foram e são utilizados para tarefas sujas que vão desde a espionagem e a formação de quadros dirigentes dependentes até à desestabilização de governos e economias com o seu consequente custo político e social.

Uma das organizações mais activas é a United States Agency International Development (USAID), um organismo que os EUA criaram com a proclamada intenção de desenvolver tarefas humanitárias nos países do Terceiro Mundo. A sua origem remonta à Aliança para o Progresso, criada em 13 de Março de 1961 pelos mesmos funcionários que vários anos antes tinham dado à luz o Plano Marshall com a intenção de colocar o seu país à cabeça da reconstrução da Europa do pós-guerra. A Aliança fracassou pouco depois de nascer uma vez que os países da região rejeitaram as condições da “revolução pacífica e democrática” que os EUA pretendiam impor em troca dos 20.000 milhões que prometiam investir. Mas antes de ser cancelada, em Novembro de 1961, foi fundada a USAID, uma de sus agencias que, formalmente, devia veicular parte dos investimentos em programas de desenvolvimento humanitário, fachada que se mantém até hoje.

A fantasia filantrópica permitiu-lhe forjar, através de generosos contributos financeiros, uma rede de fundações e ONGs destinadas a difundir os benefícios do alinhamento com os EUA e a sua “american way of life” mediante propaganda e programas de formação. Mas essa é apenas a face amável da sua tarefa. Ligeiramente maquilhado, o verdadeiro rosto da agencia é mais hostil: intervir nos processos políticos da região com o pretexto de proteger a segurança nacional do seu país.

A militarização dos objectivos da USAID culminou em 2010 quando o presidente Barack Obama incluiu o general Jeam Smith – um estratega militar que esteve na OTAN – no Conselho de Segurança, apenas com a função de acompanhar os programas de “assistência social” que a agencia tinha em andamento. E como director adjunto foi nomeado Mark Feierstein, cuja folha de serviços encaixava nos desafios que os EUA antevêm na região: perito em guerras de quarta geração – ou campanhas de desinformação –, e proprietário de Greenbarg Quinlan Rosler, uma empresa que proporciona orientação estratégica sobre campanhas eleitorais, debates, programação e investigação.

Alérgico aos governos populares que se estendem pela América latina, Feierstein comprovou a eficácia do seu método como assessor de Gonzalo Sánchez de Lozada durante a campanha que o depositou na presidência de Bolívia. Goñi, como o chamavam na sua pátria, foi o paroxismo da colonização política que os EUA derramaram sobre os países do Sul nos anos noventa. Criado, educado e formado em solo estado-unidense, Sánchez de Lozada voltou à sua terra de nascimento para ser presidente pela mão de Feierstein. Durou no cargo pouco mais de um ano: o chamado “Massacre do Gás”, em 2003, onde morreram mais de sessenta pessoas, ejectou-o do poder e devolveu-o aos EUA, onde vive como fugitivo da Justiça boliviana amparado pelo governo que colocou o seu amigo Feierstein à frente da USAID.

As correrias do seu director não são a única coisa que liga a agencia à Bolívia. No passado 1 de Maio, o presidente Evo Morales não sabia que o escândalo Snowden o levaria a protagonizar uma vergonhosa detenção na Europa (ver nota aparte). Mas sabia aquilo de que a USAID era capaz. Por isso, nessa jornada emblemática onde os trabalhadores celebram o seu dia, o presidente anunciou que expulsava a agencia de solo boliviano por “ingerência política” e “conspiração”. Dias depois, o ministro da Presidência, Juan Ramón Quintana, detalhou: “Não se trata de uma inocente agencia de cooperação filantrópica dos Estados Unidos para com a Bolívia e o mundo. A agencia estado-unidense serviu para legitimar as ditaduras entre 1964 e 1982, para promover o neoliberalismo entre 1985 e 2005, e para além disso é um factor externo que alimenta a instabilidade no país desde 2006”.

Um dos factos que chamou a atenção do governo boliviano foi a materialização, em 2007, de um convénio entre o prefeito de Pando Leopoldo Fernández e a USAID para levar por diante “programas sociais” em Bolpedra, Cobija e El Porvenir. O apoio logístico esteve a cargo do Comando Sul e a cobertura institucional da Iniciativa de Conservação da Bacia Amazónica. Outro episodio que motivou a expulsão foi a activa participação da agencia estado-unidense, via Wildlife Conservation Society (Sociedade de Conservação da Vida Selvagem), na disputa violenta entre os povoadores de Caranavi e Palos Blancos pela localização de uma fábrica processadora de frutas em Janeiro de 2010, a poucos dias de Evo Morales assumir o seu primeiro mandato no Estado Plurinacional.

A utilização de fundações e ONGs para terceirizar operações é uma prática habitual da USAID. Na Argentina, por exemplo, há uma dezena de fundações que operam por conta e ordem da agencia estado-unidense. Que os movimentos sejam mais sigilosos não implica que sejam menos potentes. Um exemplo: entre el 8 e 12 de Abril deste ano, a USAID financiou uma cimeira da direita internacional. Organizada pela Fundación Libertad – o tentáculo predilecto da agencia no nosso país –, acorreram ao encontro o Nobel Mario Vargas Llosa e o seu filho Álvaro – adversários dos governos populares que habitam a região –; José María Aznar – ex-presidente espanhol que apoiou a invasão do Iraque –; o pinochetista Joaquín Lavín; Marcel Granier, presidente da emissora venezuelana RCTV que apoiou e impulsionou o golpe contra Hugo Chávez em 2002, e a cubana anticastrista Yoani Sánchez, que à última hora desistiu da visita.

O seminário abundou em críticas contra os processos emancipadores da região. E os intervenientes, sem subtilezas, pediram para acabar com os governos populares em curso para os substituir por outros mais “modernos”, de acordo com os conceitos de “democracia” que os EUA impuseram como doutrina global. Não foi, é certo, uma posição original. Cinco anos atrás, no mesmo cenário embebido em prosperidade sojeira, tinha-se realizado um seminário semelhante, com o próprio Vargas Llosa como animador principal.

Aquele seminário contou com vários “peritos” alinhados com as políticas do Consenso de Washington como o jornalista de La Nación Carlos Pagni, o ex candidato presidencial Ricardo López Murphy, e Mauricio Macri, regente do Pro e da Fundación Pensar, co-organizadora do evento.

Estas fundações, como outras similares que operam na região, contam com o aval financeiro do National Endowment for Democracy (NED, Fundação Nacional para a Democracia), financiada oficialmente pelo Congresso norte-americano. Mas a vinculação não se esgota nas contribuições. Nos anos oitenta, muito antes de ser director da USAID, o inefável Feierstein trabalhou para a NED em Nicarágua. O seu objectivo: evitar o triunfo do sandinista Daniel Ortega. Conseguiu-o patrocinando a candidatura de Violeta Chamorro.

As operações da dupla USAID-NED na América latina foram reveladas por Wikileaks, o sitio que difundiu milhões de telegramas internos do Departamento de Estado. Num deles, o ex embaixador estado-unidense em Venezuela, William Brownfield, revelou como o seu país alimentou a oposição a Hugo Chávez com ideias e milhões. O telegrama, enviado da embaixada dos EUA em Caracas em Novembro de 2006, detalhava como dezenas de organizações não-governamentais recebiam financiamento do governo norte-americano por intermédio da USAID e do Escritório de Iniciativas de Transição (Office of Transition Initiatives – OTI –). Este operacional incluiu “mais de 300 organizações da sociedade civil venezuelana”, que iam desde defensores dos deficientes até programas educativos.

Na aparência, esses programas tinham objectivos humanitários, mas foi o próprio embaixador Brownfield quem detalhou os objectivos reais desses investimentos: “A infiltração na base política de Chávez… a divisão do chavismo… a protecção dos interesses vitais dos EUA… e o isolamento internacional de Chávez”.

Brownfield escreveu que o “objectivo estratégico” de desenvolver “organizações da sociedade civil alinhadas com a oposição representa a maior parte do trabalho da USAID/OTI na Venezuela”. A confissão dos próprios….

Numa excepção ao seu modus operandi, no Paraguai a agencia realizou o trabalho sujo sem intermediários. Investiu 65 milhões de dólares no projecto “Umbral”, um programa que incluiu a elaboração de um Manual Policial, o que le permitiu ganhar posições numa instituição que viria a ser chave no devir político do país. Foi a policia, com uma brutal e injustificada repressão rural, quem serviu de bandeja a justificação para derrubar o presidente Fernando Lugo. Já o tinha predito o ministro da Corte argentina Raúl Zaffaroni: sepultado o partido militar, são as forças de segurança quem exercerá o papel de força de choque dos poderes fácticos da região interessados em interromper processos políticos que contrariem os seus interesses.

As operações da agencia revelam que a verdadeira ameaça para a consolidação do processo político da região não é a espionagem, mas as decisões que os EUA tomem a partir dessa informação. Como ficou demonstrado no Iraque – onde o Pentágono utilizou informação falsa para justificar a invasão –, nem sequer é necessário que os dados sejam fiáveis. Basta que a CIA ou algum organismo similar avalie que algum país de América latina representa uma ameaça para a segurança nacional estado-unidense para que se avance com ataques preventivos contra essa nação. A ofensiva pode ser brutal, como no Iraque, ou mais sofisticada, executando tarefas que desestabilizem um governo popular. Uma conspiração que nunca descansa.

Todos sob a lupa

A partir das revelações de Edward Snowden, o ex empregado da Agencia Central de Inteligência (CIA) e da Agencia de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, foi levantado um véu que confirma a rede de espionagem do governo de Barack Obama. Tudo começou quando ofereceu a The Guardian e The Washington Post a publicação de documentos e informação confidencial. Prosseguiu com o episodio do sequestro do presidente Evo Morales quando da sua visita à Rússia, onde se supunha que estava Snowden, quando não lhe foi permitido usar o espaço aéreo de Espanha, Itália, Portugal e França por se suspeitar que Snowden estava escondido no seu avião. O facto mereceu o repudio de todos os mandatários da Unasur que se reuniram de forma urgente em Bolívia, para brindar o seu apoio a Evo. Enquanto Snowden procurava asilo político e com os Estados Unidos procurando caçá-lo por todo o planeta, voltou há poucos dias a revelar novos documentos, que desta vez foram publicados no diário brasileiro O Globo. Ficou a conhecer-se que a rede de espionagem dos Estados Unidos se expandiu por toda América latina, operando fortemente no Brasil, México e Colômbia, mas com uma rigorosa vigilância em países como a Argentina, Venezuela, Equador, Chile, Peru e Panamá. Os dados confirmam a espionagem via satélite de comunicações telefónicas, correios electrónicos e conversações online, até pelo menos Março de este ano. A monitorização realizava-se através de programas de software: o Prism (Prisma) que permite o acesso a e-mails, conversações online e chamadas de voz de utilizadores de Google, Microsoft e Facebook e o Boundless Informant (Informante Sem Limites), que permitiam violar todo o género de comunicações internacionais, faxes, e-mails, entre outros. Os temas mais controlados pelos espias foram o petróleo e acções militares em Venezuela, energia e drogas em México, a cartografia dos movimentos das FARC em Colômbia, para além da agonia e morte de Hugo Chávez.

A presidente Cristina Fernández de Kirchner manifestou a sua preocupação no acto de 9 de Julho em Tucumán e sublinhou: “Causa calafrios quando nos damos conta de que nos estão espiando a todos através dos seus serviços de informações. Mais do que revelações, são confirmações do que tínhamos acerca do que estava a acontecer”. De caminho, aproveitou para lançar um alerta: “Os governantes dos povos da América do Sul, que temos combatido nesta década acompanhados por milhões de compatriotas, temos o dever de reparar no que se está a passar e de unir as nossas forças”. Na sexta-feira reúnem-se os representantes do Mercosur e a Presidente espera “um forte pronunciamento e pedido de explicações” ao governo de Obama.

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Fonte: http://veintitres.infonews.com/nota-7088-politica-Comando-Sur.html

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