Asilo para Snowden: “É a lei, estúpido!”

A imprensa-empresa mais influente nos EUA tem usado três meios para reforçar seu viés a favor do governo, no caso Snowden: primeiro, refere-se sempre a Snowden como “vazador” [orig. lit. leaker], em vez de “alertador” [orig. whistleblower, lit. “tocador de apito”] ou “dissidente [do estado] de vigilância”, designações mais precisas e mais respeitosas.

Segundo, a imprensa-empresa dominante ignora completamente o quanto o gesto dos russos, de dar status de refugiado temporário a Snowden por um ano está em perfeito acordo com o nível normal de proteção a ser dada a qualquer pessoa acusada de crimes políticos não violentos em país estrangeiro, e perseguida diplomaticamente e legalmente por governo que busque indiciá-la e processá-la.

A Rússia entregar Snowden aos EUA nessas condições seria moralmente e politicamente escandaloso, considerando-se a natureza dos crimes de que os EUA acusam Snowden.

Terceiro, a imprensa-empresa dominante recusa-se a reconhecer que espionagem, a principal acusação feita contra Snowden, é a principal e maior, a ‘ofensa política’ essencial, na lei internacional, e como tal é rotineiramente excluída de qualquer lista de ofensas que geram extradição.

Assim sendo, ainda que existisse tratado de extradição entre EUA e Rússia, seria preciso deixar absolutamente claro que não há nenhum dever legal, para os russos, de entregar Snowden às autoridades dos EUA para ser processado criminalmente, e, sim, haveria um dever moral e político de não o entregar, sobretudo nas circunstâncias que cercam a controvérsia sobre Snowden.

Se todos esses elementos estivessem sendo claramente articulados na discussão, pela imprensa-empresa, o governo dos EUA já teria sido exposto como ridículo, ao reclamar contra a disposição de vários governos estrangeiros de dar asilo a Snowden.

O governo Obama e os cabeças quentes do Senado que lastimassem o quanto quisessem por não poderem processar Snowden nos EUA; mas que o fizessem só com seus próprios botões. Em todos os casos, qualquer reclamação sempre seria o que é: império petulante, mostrando ira e fúria em caso no qual todo o seu poder mais duro, em todo o mundo, não lhe serve para coisa alguma; e suas opções políticas são proibidas por lei.

Nessas condições, pôr-se a ameaçar países estrangeiros com consequências diplomáticas adversas no caso de se recusarem e entrar no jogo não é só manifestação de frustração infantiloide: também é gesto que denuncia a própria derrota.

Os países que ofereceram asilo a Snowden ou que se recusaram, na forma adequada, a atender à requisição de Washington, quando os EUA requisitaram a custódia de Snowden, fizeram a única coisa decente que havia a fazer.

Surpreendente, isso sim, que outros governos não se tenham apresentado para fazer o mesmo. Assim se criou uma situação na qual países relativamente pequenos, como Bolívia, Venezuela e Nicarágua foram forçados a encarar sozinhos as violentas táticas ‘de braço longo’ dos EUA – o que talvez sinalize uma bem-vinda nova atitude, mais firme, mais decidida, em toda a América Latina, de não mais aceitar como identidade regional a posição de quintal dos fundos do colosso do Norte.

Deve-se registrar que o presidente Vladimir Putin, considerando a natureza das revelações sobre o alcance global dos sistemas norte-americanos de vigilância e controle, agiu com excepcional deferência e muita consideração ante as sensibilidades norte-americanas. Em vez de simplesmente declarar que Snowden só seria entregue aos EUA se assim o desejasse, Putin cuidou de dizer que não queria que o incidente ferisse as relações da Rússia com os EUA. Chegou até a condicionar a concessão do asilo a uma muito estranha promessa, que exigiu de Snowden, de que não voltaria a divulgar documentos que arranhassem interesses norte-americanos.

Foi abordagem construtiva, em situação extremamente delicada, que supera, qualitativamente, os arroubos hiperbólicos e as palavras agressivas do senador suposto Democrata de New York, Charles Schumer: “A Rússia nos apunhalou pelas costas (…) Cada dia que Snowden permanece em liberdade, é mais uma corte do punhal, na ferida” (http://goo.gl/K36D2E).

Devem-se cobrar respostas honestas a esses senadores tão terrivelmente ofendidos, entre os quais John McCain e Lindsey Graham, que não perdem chance de inventar brigas. O que teriam feito, se um alertador russo tivesse revelado detalhes de um sistema russo de espionagem que estivesse ouvindo todas as deliberações secretas do governo em Washington e invadindo a privacidade de todos os norte-americanos? A indignação arrogante seria sem limites nos EUA, como também seria infinita a gratidão que cobriria o Snowden russo.

Mas Washington só faz procurar meios para manifestar o quanto está ‘ofendida’ pelo comportamento dos russos. O secretário de imprensa da presidência dos EUA, fala de “extremo desapontamento”, que pode levar Obama a cancelar encontro marcado com Putin para setembro (http://goo.gl/jcvnjQ), em cuja agenda estão itens como Síria, redução de arsenais nucleares e o Irã.

Os senadores John McCain e Lindsey Graham, saudosos dos dias da Guerra Fria, lançaram manifesto conjunto incendiário, exigindo que os EUA passem a considerar a Rússia numa ótica de conflito. Propuseram impetuosamente que, como reação ao asilo concedido a Snowden, se acelerem os planos para instalação de sistemas de mísseis de defesa na Europa e expanda-se a OTAN, em termos que o Kremlin teria de interpretar como de antagonismo declarado.

É verdade que a nova identidade de Putin, como ‘defensor de direitos humanos’ não tem toda a necessária credibilidade, se se considera o modo como os dissidentes políticos são tratados na Rússia, mas isso não diminui a evidência de que a resposta que deu ao caso Snowden foi corretíssima.

Há obtusidade na fúria com que a diplomacia dos EUA está atuando nesse caso. Os atos de espionagem que Snowden cometeu são puro delito de natureza política. Além disso, a natureza do que foi revelado mostrou que, sim, há ameaça real e repetida à confidencialidade das comunicações de governo em todo o mundo.

No mínimo, em vez de se deixar intimidar pelas demandas descabidas dos EUA, a resposta internacional mais apropriada e mais saudável seria gritar “Falta!” e parar o jogo.

Se o mundo fosse constituído de estados igualmente soberanos e houvesse legislação global, os EUA teriam de humildemente pedir desculpas e, no mínimo, prometer que não repetiriam no futuro, o comportamento de até agora.

Snowden seria punido por desobedecer à lei norte-americana, mas seria condecorado por apontar algumas feias agressões à liberdade e à ordem constitucional, inclusive dentro dos EUA, mostrando o quanto é perigoso deixar o serviço de equilibrar segurança e respeito às liberdades civis entregue à boa fé e ao juízo de burocratas e políticos.

Vivemos um triste momento de verdade, que fala muito de alinhamentos e sensibilidades. Alguns importantes comentaristas nos EUA, como o ex-diretor da CIA Robert Gates, e Jeffrey Toobin, especialista da rede CNN para questões legais, alinharam-se com a ordem estabelecida; disseram que confiam mais em anônimos funcionários públicos obedientes ao governo, que num dissidente como Edward Snowden que se dá o direito de decidir o que o público precisa saber.

Como nos casos de Julian Assange e Bradley Manning, o teste crucial não acontece nesse nível de abstração, mas tem a ver com a concretude e implica decidir se o que foi revelado é o tipo de segredo sujo que uma sociedade democrática poderia ignorar para sempre.

Seria de esperar que um governo genuinamente democrático não desejasse encobrir crimes de guerra e a invasão da privacidade dos cidadãos, nem que tanto se empenhasse para manter esses crimes protegidos contra qualquer procedimento para aumentar a transparência.

Na era das maravilhas digitais, mais do que nunca dependemos de cidadãos de consciência, que nos protejam contra cenários orwellianos cerebrados por aspirantes a Darth Vaders que vivem nas profundezas obscuras da burocracia governamental em Washington. Esses são os indivíduos que repetidamente arrastam os EUA para o lado obscuro da força, em lugares como Guantanamo, Abu Ghraib e a base Bagram da Força Aérea, e constroem os infames “buracos negros” e inventam procedimentos depravados como a “entrega extrema” [orig. extreme rendition], pela qual suspeitos podem ser torturados sob certeza de impunidade para os torturadores, também no caso de se comprovar que o torturado é inocente.

Nós, cidadãos do mundo, devemos ser gratos pelos sacrifícios de indivíduos como Julian Assange, Bradley Manning e Edward Snowden, com certeza os principais heróis do nosso tempo. E se sonhamos com governos legítimos, nossos governantes e representantes eleitos devem também ser gratos pela possibilidade de pôr fim aos abusos do poder.

Richard Falk é Professor Emérito da cátedra Albert G. Milbank de Direito Internacional na Princeton University e Professor Visitante Emérito de Estudos Internacionais na University of California, Santa Barbara. É também Relator Especial da ONU para Direitos Humanos na Palestina.