Orania e a maré negra
Não fosse a Copa e Orania seria um rodapé duma página obscura. Com as vuvuzelas azucrinando o juízo e as patriotadas em alta, alguém desenterrou a história de um gueto racista que sobrevive no país que derrotou o apartheid.
No início de 1991, pouco depois do fim do regime de segregação racial que vigorou na África do Sul por décadas, uma empresa adquiriu uma cidade abandonada, à beira do rio Oranje. Cerca de 50 famílias, todas brancas, se mudaram para lá e começaram a construir um “paraíso africâner”, desafiando o processo de integração pelo qual lutaram o CNA e Nelson Mandela.
O que pretendem os “puristas” ? Preservar nossos valores, cultura, língua, religião, responde Lyda Strydom, uma das líderes da comunidade. Queremos educar nossos filhos dentro da cultura africâner, completa Lyda.
Essa gente recusa o rótulo de segregacionismo, mas, ao rechaçar a convivência com outras etnias e culturas e separar-se, fisicamente, dos demais sul-africanos, só faz reafirmar o conteúdo racista de seu estilo de vida. Comportam-se como se o contato com os negros e suas múltiplas culturas representasse uma contaminação. Este ideal de pureza tem tristes e sangrentos antecedentes.
A muitos quilômetros de distância dali, no dia 17 de junho, uma maré negra serpenteava pelas ruas de Jerusalém. Mais de 100 mil haredim (judeus ultra-ortodoxos) manifestavam-se, indignados, pela …. manutenção da segregação ! Na colônia de Emanuel, enclave na Cisjordânia ocupada, pais de alunas de uma escola ultra-ortodoxa de ashquenazim (judeus originários, principalmente da Europa Oriental e Central) proibiram suas filhas de irem às aulas caso fossem aceitas estudantes sefaradim (judeus originários, principalmente, da Península Ibérica). A alegação ? As sefaradim não seriam suficientemente religiosas … Conversa mole. Curioso é que os ashquenazim insistem que seu gesto não é racista. “Apenas” querem garantir uma segregação que não mude os critérios de pureza. O discurso, como se vê, tem claras coincidências com os oranianos (separação/pureza/medo).
Os haredim, que representam cerca de 10% dos judeus israelenses (devem chegar a 20% em 2020, segundo o demógrafo Arnon Sofer), não assistem televisão, nem filmes. São proibidos de ler jornais seculares e usar a internet, se não existir uma finalidade profissional. Recentemente, um jornal haredi modificou, digitalmente, fotografias do então recém-empossado gabinete israelense, substituindo as duas mulheres ministras por imagens masculinas. São uma força obscurantista, que, entretanto, se fortalece na medida em que, em Israel, estado e religião vivem em promiscuidade.
Intolerância tem muitos rostos, mas a máscara está sempre rasgada.