Do arquivo secreto do Dops: rádio transmite rebelião dos marinheiros em 64

Quando a noite cair, logo mais, a rebelião dos marinheiros deflagrada na virada de 25 para 26 de março de 1964 completará 50 anos. Os marujos se insurgiram contra humilhações atávicas e perseguições recentes. Oficiais das Forças Armadas consideraram o movimento uma afronta à hierarquia, sobretudo a anistia concedida pelo presidente João Goulart aos revoltosos.

Uma das raras emissoras pró-Jango e mais próxima ainda do então deputado Leonel Brizola, a Rádio Mayrink Veiga atendeu aos apelos  do governo e não irradiou de imediato a revolta, transcorrida em dependências do sindicato dos metalúrgicos, no Rio.

Mas no fim da tarde do dia 26 entrou com tudo. Cobriu, transmitindo com algum atraso, o momento em que novas tropas da Marinha cercaram o prédio _de manhã, fuzileiros convocados para reprimir haviam deposto as armas, confraternizado com os companheiros e aderido a eles. Em resposta ao cerco da tarde, os marinheiros entoaram o Hino Nacional.

Tudo isso pode ser ouvido agora porque as transmissões da Mayrink Veiga eram gravadas pela polícia política da Guanabara (a repartição celebrizou-se pela sigla que adotou por certo tempo, Dops, Departamento de Ordem Política e Social).

O Dops guardou os registros no arquivo organizado, desde os anos 1930, pelo policial Cecil Borer, que em março de 1964 chefiava o departamento. O acervo hoje está sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

Essa preciosidade histórica sobreviveu ao tempo. Foi-me apresentada no alvorecer do século XXI pela historiadora Jessie Jane Vieira de Souza, que dirigia o arquivo com extremos zelo e competência.

Se houver, são pouquíssimos os documentos históricos, como o áudio que pode ser ouvido clicando lá em cima, que exibem tão claramente a radicalização política às vésperas do golpe de Estado que viria em menos de uma semana.

O ato da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil seria uma cerimônia pelo segundo aniversário da entidade. Havia ordens de prisão contra seus líderes, por participarem de manifestações a favor das reformas estruturais que João Goulart começava a implantar.

O presidente da associação era o marinheiro José Anselmo dos Santos, chamado pela imprensa de cabo Anselmo. De acordo com Cecil Borer, naquela época o marujo já era agente infiltrado do Dops, do Centro de Informações da Marinha e da Central Intelligence Agency dos EUA. Como espião da ditadura, anos mais tarde levaria à morte muitos guerrilheiros, inclusive sua própria mulher, grávida.

Por muito tempo, numerosos historiadores, memorialistas e palpiteiros sugeriram que o discurso pronunciado por Anselmo à noite havia sido escrito pela CIA. Hoje não há mais dúvidas de que o redator foi outro, o veterano dirigente comunista Carlos Marighella (1911-69). Reconstituí a revolta dos marinheiros em detalhes no capítulo “O ghost-writer” da biografia “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras).

É verdade que Jango anistiou marinheiros que protestavam. Muito mais grave, ele não havia punido os comandantes das três Forças que tentaram um golpe na crise aberta em agosto de 1961, quando o presidente Jânio Quadros renunciou.

Certa historiografia, inclusive de esquerda, “culparia” os marinheiros pelo golpe, um despropósito. Entre as aberrações impostas pela Armada, os marujos eram proibidos de se casar antes de completar dez anos na Marinha. A restrição inexistia para oficiais.

No começo do século XX, os castigos físicos ainda eram legais na Força. Os que apanhavam eram praças e, quase todos, negros. Em 1910, a Revolta da Chibata confrontou o expediente saudosista da escravidão. Liderou-a João Cândido Felisberto. O velho marinheiro negro foi o convidado de honra da festa dos marinheiros de 1964 que em poucas horas se transformou na rebelião que marcaria o Brasil.

Foto: “Última Hora”, 27.março.1964

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