Nosso povo continuará resistindo às tropas de ocupação das Nações Unidas
Na América Latina há um país que não só foi o primeiro a proclamar a independência como também ajudou a que outras nações subjugadas pelos espanhóis acelerassem o caminho da emancipação. Trata-se do mais esquecido e maltratado lugar de nosso continente: o Haiti. Ali, precisamente, está em curso uma importante escalada de resistência popular não só contra o mau governo de René Preval como também contra aqueles que afirmam estar em solo haitiano para colaborar com sua população: as tropas das Nações Unidas (MINUSTAH).
No final de 2008, a MINUSTAH contava com a participação de 9.028 efetivos (7.009 soldados e 2.019 policiais), apoiados por 502 funcionários internacionais, 1.197 funcionários nacionais e 205 voluntários da ONU, todos sob o comando de militares brasileiros.
Estas tropas, entre as quais há argentinos, uruguaios, brasileiros, chilenos, bolivianos e de outros países, operam repressivamente contra a população haitiana, razão pela qual surgem inúmeras denúncias que, em geral, ficam totalmente impunes.
Um dos casos documentados pelas organizações haitianas de direitos humanos é o massacre ocorrido em 22 de dezembro de 2006 na comunidade de Cité Soleil, durante uma manifestação de cerca de dez mil pessoas que pediam o retorno do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide ao país e saída das tropas militares estrangeiras. Segundo relatos da população e vídeos produzidos pela organização Haiti Information Project (HIP), as forças da ONU atacaram a comunidade e mataram cerca de 30pessoas, incluindo aí mulheres e crianças.
Isso tudo vem ocorrendo sob um marco de silêncio generalizado em nível informativo. O Haiti não conta nas matérias dos jornais e muito menos nas telas das televisões. Seu povo não entra nas estatísticas populacionais. Mas, apesar disso, o povo não se resigna com a dominação e segue lutando.
Conversamos com o dirigente do Comitê Democrático Haitiano, Henry Boisrolin, sobre essa realidade e suas conseqüências. Boisrolin está encarregado de conseguir solidariedade internacional com aqueles que estão hoje liderando a resistência popular, os estudantes universitários e secundários que estão, há meses, ocupando vários dos estabelecimentos educacionais do país.
Qual é a situação do Haiti hoje?
Boisrolin – O Haiti está sob ocupação, mas a grande imprensa internacional apresenta esse fato como se fosse “ajuda humanitária”. O próprio nome da missão da ONU diz que o objetivo é “a estabilização do Haiti”. Há uma combinação de 40 países integrantes desta missão e desgraçadamente temos tropas latinoamericanas dentro do país. Como é sabido, o comando militar encontra-se sob a liderança do Brasil. Isso é algo que nós rechaçamos porque entendemos que é uma violação de nossa autodeterminação, de nossa soberania e dignidade como povo.
A resistência provém de diferentes setores da população, mas ultimamente são os estudantes universitários, junto com estudantes de colégios secundaristas, que tem ido para as ruas exigir a retirada das tropas e a promulgação de uma lei sobre salário mínimo votada pelo Parlamento. O que ocorre é que o governo de Preval não aceita essa lei, sob o pretexto de que se o Haiti já tem cerca de 70% de sua população ativa desempregada, promulgar uma lei que significa aumentar de 1,70 dólares para 4 ou 5 dólares o salário mínimo por dia, “vai provocar uma avalanche de demissões e agravará ainda mais a situação dos trabalhadores”. Para os estudantes, esta resposta é uma nova falácia do governo, e eles têm implementado ações de resistência, ocupando várias faculdades.
Como reagiu o governo de Preval?
Boisrolin: Reprimindo os estudantes. Já temos vários mortos e dezenas de presos, professores perseguidos. Foram lançadas bombas de gás lacrimogêneo e balas de chumbo contra os manifestantes. A missão das Nações Unidas acompanhou a polícia haitiana em toda essa tarefa repressiva. Isso é o que queremos denunciar e, ao mesmo tempo, pedir solidariedade para que os governos latinoamericanos entendam que essa não é a via, que o Haiti não necessita de tropas militares. O que precisamos é do tipo de ajuda oferecida por Cuba e Venezuela. Esse é o modelo válido de apoio, de humanidade, de respeito à nossa independência e soberania.
Vamos nos deter neste último tema. As tropas das Nações Unidas dizem que cumprem tarefas humanitárias. Isso é, ao menos, o que dizem as chancelarias dos países implicados nesta manobra, como Argentina, Uruguai, Brasil e outros. Inclusive, alguns partidos progressistas se encarregaram de dizer que “era melhor que fossem as tropas latinoamericanas no Haiti , do que o país ser invadido pelos EUA. Qual sua opinião sobre isso?
Antes de mais nada, é preciso desmentiu uma coisa: não houve nenhuma autoridade legítima de meu país que tenha pedido tal intervenção, isso é uma mentira. Em 2004, no bicentenário de nossa independência, havia um presidente legítimo que era Jean-Bertrand Aristide. Havia distúrbios no país e, utilizando esse pretexto, um comando militar norteamericano entrou no país, seqüestrou Aristide, colocou-o em um avião e mandou-o para o exílio, na República CentroAfricana (ele agora está na África do Sul). Algo muito parecido com o que fizeram agora com o presidente Zelaya, em Honduras. Não são casos isolados e assentam precedentes que ameaçam a segurança e a democracia nos demais países latinoamericanos.
Assim é a história, ninguém pediu tal intervenção. Eles impuseram um governo de fato que organizou as eleições e aí Preval ganhou, legitimando o golpe, do mesmo modo que se pretende agora em Honduras. O presidente Preval, que ganhou as eleições, solicitou a permanência da missão da Minustah, mas originalmente não houve nenhuma autoridade haitiana que tenha solicitado isso. Além disso, não é porque Preval tenha feito, é preciso levar em conta o sentimento do povo haitiano. Essa é outra falácia. Seria preciso ir ao Haiti e andar pelas ruas dos bairros mais populares para compreender o rechaço majoritário das pessoas à presença das tropas de ocupação.
Como atuam essas tropas invasoras?
Boisrolin: A ação das tropas das Nações Unidas é algo que indigna a qualquer ser humano com um pouquinho de sensibilidade. Isso em um país onde 70% de sua população ativa não tem trabalho, onde temos uma taxa de mortalidade infantil superior a 80 por mil e uma taxa de analfabetismo que supera os 70% no campo e chega a 50% nas cidades, com uma expectativa de vida que não supera os 50 anos. Estamos falando de um país com suas estruturas econômicas destruídas, onde 60% do orçamento haitiano provém da ajuda internacional e das remessas enviadas pelos haitianos que trabalham no exterior. Por tudo isso, defender que é preciso entrar no país com tanques, aviões e helicópteros para resolver isso, é totalmente falso e cruel.
E o que tem feito esses “salvadores”? Entre outras coisas, tem violado meninas e mulheres haitianas, tem agredido e torturado nossos jovens. Não somos nós que o dizemos, mas sim uma investigação da própria ONU confirmou esses fatos, e a única coisa que fez foi retirar alguns soldados e enviá-los para a casa, porque segundo o convênio da Resolução 545, que permitiu a entrada das tropas em 1° de junho de 2004, o Haiti não tem o direito de julgar nenhum militar estrangeiro, por mais que tenha cometido crimes de lesa humanidade. Mais submissão que isso não pode existir. E é preciso dizer que há soldados do Sri Lanka, do Uruguai e de outros países, acusados de praticar esses abusos.
Ou seja, violações de direitos humanos realizadas dentro de uma “legalidade” imposta, que assegura mais impunidade…
Boisrolin: Exato. Mas há outro tema que quero abordar e que às vezes é postergado porque nos aprofundamos mais em estudar a realidade política e econômica de um país. Me refiro à dignidade humana, ao valor da relação e dos sentimentos humanos, ao contato entre os povos. Ou seja, a uma história em comum. O Haiti, depois da independência, ofereceu uma solidariedade efetiva a muitos povos latinoamericanos, ajudou a Miranda, a Bolívar, em duas oportunidades, com fuzis, dinheiro e outros recursos, mas fundamentalmente com voluntários. Centenas de haitianos morreram pela independência da Venezuela e de outros países. Por isso dizemos que receber o tratamento atual é uma afronta com a história. Nosso povo não cometeu nenhum crime, salvo pedir maior justiça. E sofremos um comportamento mercenário, porque muitos destes invasores vêm ao Haiti pelo pagamento, ganham milhares de dólares sem gastar absolutamente nada. Após seis ou sete meses, voltam a seus respectivos países com uma boa quantidade de dinheiro na mão, coisa que não podem ter em seus lugares de origem.
Então, aproveitando uma situação de debilidade, de falta de capacidade do movimento popular haitiano para reverter essa situação, vem e te tornam vassalo.
É preciso ver, por exemplo, em Porto Príncipe, em alguns dos bairros mais calmos, como à noite (porque não há praticamente vida noturna no Haiti, não há luz nem os serviços que existem em outros países) se vê um contínuo desfile de carros das Nações Unidas a frente dos melhores bares e restaurantes, gastando muitos dólares, enquanto do lado de fora o povo dorme nas ruas.
É realmente ofensivo e indignante…
Boisrolin: Isso exige uma reflexão, porque temos escutado alguns governos, quando passam os furacões ou ocorrem outros fenômenos climáticos, dizer que as tropas estão ali precisamente para ajudar-nos nos maus momentos. Mas isso está longe de ser o fator determinante. A ocupação do Haiti é um novo esquema para sufocar a rebelião popular em um país onde as classes dominantes não têm possibilidade alguma de ganhar as eleições de maneira limpa. Então só lhes resta impor pela força das armas uma estratégia de dominação. Esse é o verdadeiro papel dos ocupantes. E para aqueles que dizem que é “melhor essas tropas do que as dos EUA”, nós dizemos que é exatamente o contrário. Desta forma, teríamos a frente o inimigo de maneira mais clara. Em troca, é duríssimo ver irmãos latinoamericanos enviados por governos que deveriam ter outro tipo de comportamento frente ao drama haitiano. Eu estive em bairros populares muito castigados por essas tropas e escutei o que diz o coração dessa gente. A indignação que marca seus relatos sobre bombardeios pela madrugada para retirar supostos bandidos destes bairros. Ou quando os soldados entram e metem o pé na porta, arrastando para fora aterrorizados moradores. Por isso, não há mais lugar para mentiras: trata-se de uma ocupação da República do Haiti e na medida em que prossiga essa situação haverá mais resistência.
Tradução: Katarina Peixoto