A Batalha de Kursk e a falsificação da História

As comemorações do desembarque anglo–americano na Normandia, em Junho de 44, serviram mais uma vez de pretexto para uma campanha de falsificação da História de dimensão planetária. Este ano, pela primeira vez, até a Alemanha, o país vencido, se fez representar através da chanceler Angela Merkel.

De Obama a Brown, com passagem por Sarkozy, os líderes do Ocidente repetiram que a batalha da Normandia foi não só decisiva para a vitória sobre o nazismo como o maior acontecimento militar da história. Todos estavam conscientes de que mentiam.

Da contribuição da URSS para o esmagamento do III Reich não se falou praticamente.

É significativo que os historiadores militares norte–americanos e britânicos, com raríssimas excepções, desconheçam nas suas obras a batalha de Kursk ou se limitem a breves referências.

A omissão não resulta de ignorância. Tornar pública a verdade sobre Kursk pulverizaria os mitos forjados por Hollywood sobre a participação dos EUA na II Guerra e arrancaria a máscara à moderna historiografia norte-americana, tirando-lhe credibilidade.

Kursk foi pelos efectivos e armamentos nela empenhados a maior batalha da História. Nela participaram 4.155.000 soviéticos e alemães. A fase defensiva e a ofensiva somadas duraram escassas semanas (Stalinegrado prolongou-se por sete meses). Mas os meios utilizados – 69.000 canhões, 13.200 tanques e canhões de propulsão e 11.950 aviões – superam de longe o total dos equipamentos bélicos terrestres e aéreos mobilizados por americanos e japoneses durante os quase quatro anos da Guerra no Pacifico [1].

A batalha de Kursk mudou o rumo da guerra. O Exército Vermelho retomou ali a iniciativa e passou à ofensiva para a manter até a tomada do Reichstag, em Berlim, em Maio de 45, que ficou a assinalar a capitulação incondicional da Alemanha nazi.

Julgo útil esboçar para o povo português muito resumidamente o quadro em que ocorreu a gigantesco confronto de Kursk e alguns factos e situações que os historiadores ocidentais – incluindo os da Alemanha Federal – têm omitido nas suas obras.

Em Fevereiro e Março de 1943, quando o Exército Vermelho deteve o movimento ofensivo iniciado após o aniquilamento e capitulação em Stalinegrado do VI Exército Alemão de Von Paulus, a Wehrmacht desencadeou uma contra-ofensiva que lhe permitiu reocupar na Região Centro–Sul, entre outras, as cidades de Karkhov, Orel e Bielgorod.

Formou-se assim naquela área, quando a Frente se estabilizou no início da Primavera, aquilo a que se chamou o Saliente de Kursk, um território quase quadrado, com uma dimensão equivalente à da Bélgica, que entrava como uma cunha pelas linhas alemãs.

Consciente da importância estratégica do Saliente, o Estado-Maior General Soviético (EMGS) começou a acumular na retaguarda poderosas forças com a intenção de desencadear uma grande ofensiva no início do Verão. Durante o Inverno a indústria de guerra soviética ultrapassara pela primeira vez na produção de tanques e aviões a do bloco nazi. A força de combate do Exército Vermelho era também já largamente superior à da Whermacht e satélites (italianos, romenos, húngaros entre outros).

No início de Abril, O EMGS, que tinha decifrado os códigos utilizados pelos alemães, tomou conhecimento de que Hitler decidira retomar a ofensiva no Verão para vingar a humilhante derrota de Stalinegrado que destruíra o mito da invencibilidade alemã. Por informações posteriores de pilotos e oficiais capturados soube-se que «Citadel» seria o nome da grande operação em estudo.

O plano, elaborado pelo marechal Von Manstein, previa o ataque simultâneo a partir do Sul e no Norte, a meio do Saliente, com o objectivo de cercar as forças soviéticas ali concentradas, cortando-lhes a retirada. Para o efeito, os alemães mobilizaram 950.000 homens, 10.800 canhões, 3.000 tanques (16 divisões Panzer) e três mil aviões, entre os quais os Focke–Wulf 190 e bombardeiros Henschel-129. Entre as novas armas a utilizar figuravam os tanques pesados Tigre e Pantera. A operação seria desencadeada entre 3 e 6 de Julho. Na sua ordem de serviço Hitler afirmou que ela deveria transformar o inimigo numa tocha que iluminaria o mundo.

Em Nuremberga, o marechal Keitel reconheceu que o Estado-Maior alemão subestimara o poder do Exército Vermelho e ignorava que ele conhecia em pormenor o Citadel.

Foi precisamente o conhecimento do plano alemão que levou o marechal Zhukov em relatório enviado ao Estado-Maior General Soviético em 8 de Abril a sugerir uma alteração da estratégia prevista. Propôs que em vez da ofensiva em preparação, o Exército Vermelho aguardasse o ataque da Wehrmacht em linhas fortificadas a construir e, após uma curta batalha defensiva em que seriam infligidas enormes perdas aos alemães, passasse imediatamente à ofensiva. Stalin, após alguma hesitação, aprovou o projecto de Zhukov que contou com o apoio de Vassilevsky.

Os marechais Manstein e Kluge estavam convictos de que na sua fulminante ofensiva iriam enfrentar apenas os Exércitos soviéticos das Frentes Central e de Voronej, no interior do Saliente. Esperavam uma vitória tão rápida que descuraram o problema das reservas.

Na realidade intervieram na batalha os Exércitos Soviéticos de mais quatro Frentes – a Ocidental e a de Briansk, a Norte, e a da Estepe e a do Sudoeste, do lado Sul.

O dispositivo defensivo, montado em menos de três meses, foi considerado inultrapassável pelo Estado-Maior General Soviético. Contra o que é habitual, na batalha defensiva, a superioridade soviética era considerável. Dispunham de 1.632.000 homens, 27.000 canhões e morteiros, 5.000 tanques, entre os quais o T-34, considerado pelos especialistas o melhor veículo couraçado da II Guerra – e 3.000 aviões de combate.

A Frente da Estepe foi concebida para funcionar na prática como um conjunto de exércitos de reserva.

Na madrugada do dia 5, os alemães, surpreendidos por um bombardeamento inesperado da artilharia soviética, desencadearam a ofensiva. A Luftwaffe despejou milhares de toneladas de bombas sobre as linhas soviéticas e as divisões Panzer ao arrancarem foram apoiadas por uma barragem ininterrupta de artilharia.

A extraordinária concentração de meios numa área de extensão reduzidíssima permitiu aos alemães avançarem alguns quilómetros nos dias 6, 7 e 8: 10 a 12 a Norte e um máximo de 30 a 35 a Sul. Mas foram incapazes de romper as linhas soviéticas. Longe iam os dias da blietzkrieg, a guerra relâmpago.

No segundo dia da batalha a Força Aérea soviética conquistou o domínio definitivo do ar e uma semana depois a Luftwaffe foi praticamente varrida dos céus de Kursk.

Consciente de que Citadel estava a evoluir mal e de que a esperança de fechar as tenazes em torno do inimigo, cercando-o, eram remotas, Manstein lançou os seus Panzer contra Prokovohka, uma pequena cidade, a sudeste do Saliente, na charneira das Frentes Central e da Estepe.

Nessa planura travou-se durante quase três dias a maior batalha de tanques da História. Nela participaram de ambos lados 1.200 carros. As perdas foram elevadíssimas nos dois campos, quase metade dos tanques empenhados. Mas no dia 12 o ímpeto germânico esgotara-se. Os alemães careciam de reservas e as soviéticas afluíam maciçamente da retaguarda.

No dia 12, um fortíssimo contra-ataque soviético assinalou o fim da fase defensiva da batalha. As tropas das Frentes Ocidental e de Briansk atacaram nesse mesmo dia a Noroeste do Saliente. No dia 15 Koniev e Rokossovsky contra-atacaram e os alemães iniciaram a retirada. Hitler foi informado de que Citadel fracassara. No dia 3 de Agosto as Frentes da Estepe (marechal Zakharov) e do Sudoeste passaram também à ofensiva.

A 5 de Agosto troaram os canhões em Moscovo para festejar a libertação de Orel e Bielgrod; no dia 23, as tropas soviéticas expulsaram os últimos alemães de Karkhov.

A ausência de reservas aumentou muito as dificuldades da ininterrupta retirada alemã. A Wehermacht perdera em Kursk, numa semana, definitivamente, a sua capacidade ofensiva.

Roosevelt e Churchill em mensagens a Stalin felicitaram-no com entusiasmo pela a grande e decisiva vitória alcançada pela União Soviética. Roosevelt escreveu então que «o mundo nunca viu tão grande devoção, determinação e capacidade de sacrifício como as do povo russo e dos seus exércitos». Mas, anos depois, quando principiou a Guerra-Fria, a batalha de Kursk desapareceu da historiografia anglo-americana.

Na Alemanha, o próprio marechal Manstein dedica-lhe poucas páginas nas suas Memórias e em «Vitórias Perdidas» (Bonn, 1955). A falsificação da História, montada com perversidade por iniciativa dos governos de Washington e Londres, foi levada tão longe que um conceituado académico estadunidense, Hanson Baldwin, num livro dedicado às «Onze maiores batalhas» da II Guerra apenas inclui Stalinegrado na Frente Leste. Kursk não é sequer citada, mas da lista constam Corregidor (uma humilhante derrota americana nas Filipinas) e Tarawa, uma desconhecida ilhota do Pacifico onde 10.000 americanos enfrentaram outros tantos japoneses…

ESTRATEGIA E TÀCTICAS INOVADORAS

A Historiografia soviética dedicou milhares e páginas à Batalha de Kursk, mas somente algumas dessas obras foram traduzidas para idiomas estrangeiros.

A atenção preferencial dedicada pelos historiadores militares a essa batalha resulta não tanto por ela ter mudado o rumo da guerra mas sobretudo por ter assinalado uma viragem inovadora naquilo que definem como «a arte militar soviética».

A maioria coincide na conclusão de que Kursk não deve ser considerado um «modelo» para outras batalhas porque nunca mais foi possível utilizar tantos meios humanos e materiais numa área tão reduzida. Os marechais Zhukov, Vassilevsky e Zakharov reflectem sobre o tema nas suas obras. Uma síntese especialmente esclarecedora figura num ensaio do coronel Vasily Morozov, professor de História no Instituto de História Militar do Ministério da Defesa da URSS.

O autor nesse estudo alerta para os aspectos mais inovadores do grande choque.

O primeiro deles foi a súbita inversão de estratégia. Kursk foi concebida para ser uma batalha ofensiva. Dai as enormes reservas acumuladas na retaguarda, das quais os alemães tinham um conhecimento superficial. Pela primeira vez na História – salienta Morosov – as forças que defendiam eram muito superiores às do atacante em efectivos e na qualidade e quantidade do armamento.

A opção pela defensiva inicial baseou-se na certeza de que essa superioridade impediria a ruptura da frente pelo inimigo. As defesas, em toda extensão do Saliente, desdobravam-se em três escalões todos protegidos por obstáculos anti-tanques, campos de minas e uma densidade de artilharia por quilómetro inédita.

As forças alemãs, como já foi sublinhado, não conseguiram romper a frente em qualquer dos sectores da mesma.

O facto de a contra-ofensiva soviética ter partido com diferença de poucos dias de seis frentes diferentes surpreendeu e desorientou o Alto Comando da Wehermacht e desmoralizou os exércitos alemães forçados a passar da ofensiva a uma defensiva caótica.

Outra inovação em Kursk foi o emprego pela primeira vez de exércitos de tanques autónomos. Até então as forças blindadas estavam ligadas a exércitos ou grupos de exércitos de infantaria de cujo comando dependiam.

A coordenação das acções dos exércitos de tanques, da força aérea, da infantaria, e da intervenção das reservas obedeceu também esquemas inovadores.

Informações sobre a localização exacta dos aeródromos alemães recebidas dos guerrilheiros que combatiam na retaguarda dos nazis permitiram bombardeamentos de precisão que destruíram ou danificaram muitos aviões da Luftwaffe.

A engenharia militar construiu no Saliente uns 6.000 quilómetros de trincheiras, dezenas de pontes, centenas de quilómetros de estradas e ramais ferroviários, 78 hospitais (alguns com instalações subterrâneas), campos de aviação.

A logística preparada para a batalha excedeu tudo o que no género se fizera desde o início da invasão. As redes de abastecimento de alimentos e combustíveis e de comunicações telefónicas e telegráficas desempenharam um papel importantíssimo durante a batalha, assegurando comunicações seguras entre as Frentes, as unidades da vanguarda e da retaguarda e Moscovo.

Os generais Pavel Doronin e Konstantin Krainyukov publicaram importantes estudos sobre a participação do PCUS em todas as fases da batalha. O trabalho político desenvolvido pelos representantes do Partido das trincheiras à retaguarda contribuiu muito para o elevado moral das tropas No auge da luta foram realizados concertos e espectáculos teatrais com a presença de destacados artistas nacionais.

Não há falsificações dos escritores e académicos da burguesia que possam apagar o significado histórico da batalha de Kursk.

Acontecimento estratégico de viragem, o seu desfecho não teria sido possível se os homens que ali quebraram a coluna vertebral da Wehrmach não contassem com o apoio total do seu povo, agredido pelas hordas hitlerianas.

Kursk não foi uma excepção. Inseriu-se numa saga de sobrevivência nacional.

Os seus combatentes, como os de Moscovo, de Stalinegrado, do Cáucaso, da Bielorrússia e de outras batalhas vitoriosas pertenciam a uma geração que deu continuidade ao espírito revolucionário dos heróis de Outubro de 17. Nas circunstâncias mais difíceis, os soldados da União Soviética bateram-se com a convicção inabalável de que assumiam não somente a defesa do seu povo como a causa da humanidade ameaçada pela barbárie fascista.

Vila Nova de Gaia, 10 de Dezembro de 2009

(1) Os números citados neste artigo foram extraídos do Livro “The Battle of Kursk”, Ed.Progresso, Moscovo, 1974, que reúne ensaios e depoimentos de 25 altas personalidades soviéticas, entre as quais o marechal Georgi Zhukov, comandante supremo, do marechal Alexander Vassilevsky, chefe do Estado Maior General e os marechais Rokossovsky e Koniev, comandantes de duas das seis Frentes que participaram na batalha.

Fonte: http://odiario.info/articulo.php?p=1413&more=1&c=1