Política externa dos EUA: rede de proteção para as empresas privadas
Há vários meios para avaliar-se essa doutrina. Pode-se começar por responder uma pergunta óbvia: O que aconteceu quando a ameaça russa desapareceu, em 1989? Resposta: nada aconteceu; tudo continuou como antes.
Pouco depois, os EUA invadiram o Panamá, matando milhares provavelmente de pessoas e instalando ali um regime-cliente. Essa era prática rotineira nos domínios dominados pelos EUA. Mas esse caso não foi rotineiro: pela primeira vez, um grande ato de política exterior não se explicava por qualquer tipo de suposta ameaça russa!
Daquela vez, inventaram-se e foram distribuídos vários e vários pretextos fraudulentos para aquela invasão, que se desmontaram instantaneamente, logo ao primeiro exame. A imprensa-empresa tudo louvava entusiasticamente, aquele grande feito de derrotar o Panamá. Não se preocupava com a evidência de que os pretextos eram ridículos, que o ato em si não passava de violação gravíssima da lei internacional, que estava sendo execrado em muitas partes do mundo, especialmente na América Latina.
A imprensa-empresa também ignorou o veto dos EUA contra proposta de Resolução do Conselho de Segurança da ONU que condenaria os crimes cometidos por soldados dos EUA durante a invasão. Todos os demais votantes votaram unanimemente a favor da condenação aos EUA; a Grã-Bretanha absteve-se; e os EUA vetaram. Rotina. E ficou tudo por isso mesmo (o que também é rotina).
De El Salvador à Fronteira Russa
O governo de George H.W. Bush lançou nova política de segurança nacional e orçamento para a defesa, em reação ao colapso do inimigo global. Não fazia sentido algum. Como da primeira vez, mobilizaram-se falsos pretextos. Eram outros pretextos, mas eram igualmente falsos pretextos. É que, como depois se viu, era necessário manter um establishment militar quase tão grande quanto o do resto do mundo, tudo somado, e muito mais avançado na sofisticação tecnológica –, mas não para defender o país contra uma inexistente União Soviética. A desculpa, dessa vez, foi a crescente “sofisticação tecnológica” de potências do 3º Mundo.
Intelectuais disciplinados compreenderam que não se recomendava que se lançassem em ridículo total, e, portanto, mantiveram-se em silêncio.
Os EUA, insistiam os novos programas, tinham de manter sua “base industrial de defesa”. A frase é eufemística, para falar em geral de indústria high-tech que depende pesadamente de vasta intervenção estatal para pesquisa e desenvolvimento, quase sempre mascarada como se fosse atividade a serviço do Pentágono. É o que economistas continuam a chamar de “economia de livre mercado” dos EUA.
Uma das cláusulas mais interessantes dos novos planos tinha a ver com o Oriente Médio. Ali, ficava decidido, Washington tinha de manter forças de intervenção que tomariam como alvo uma região crucial, cujos “principais problemas não podem ser entregues à porta do Kremlin.” Ao contrário dos 50 anos de mentiras anteriores, confessava-se discretamente que a principal preocupação não eram os russos, mas o que se chama “nacionalismo radical”, quer dizer: qualquer nacionalismo independente que os EUA não controlem completamente.
Tudo isso tinha evidente conexão com a visão padrão, mas passou despercebido – ou, talvez: por isso mesmo, passou despercebido.
Outros eventos importantes aconteceram imediatamente depois do fim do Muro de Berlim, fim da Guerra Fria. Um deles aconteceu em El Salvador, país que recebia a maior ajuda militar dos EUA em todo o mundo – exceto Israel-Egito, que são caso à parte –, e com os piores registros de desrespeito aos direitos humanos do planeta (essa correlação também é frequente e bem direta).
O alto comando salvadorenho ordenou que a Brigada Atlacatl invadisse a Universidade Jesuíta e assassinasse seis destacados intelectuais latino-americanos, todos eles jesuítas, inclusive o reitor, Fr. Ignacio Ellacuría, e testemunhas (a governanta da residência do reitor e a filha dela).
A Brigada acabava de voltar de treinamento avançado contrainsurgência no John F. Kennedy Special Warfare Center and School do Exército dos EUA, in Fort Bragg, North Carolina, e deixou um rastro de milhares das vítimas de sempre ao longo da campanha de terror liderada pelos EUA em El Salvador – parte de campanha de terror e tortura mais ampla, por toda a região.
Tudo, rotina. Tudo ignorado e virtualmente esquecido nos EUA e pelos aliados, tudo, como sempre, rotina. Mas isso nos diz muito sobre os fatores que dirigem a política, se nos damos o trabalho de observar o mundo real.
Outro evento importante aconteceu na Europa. O presidente soviético Mikhail Gorbachev concordou com permitir a unificação da Alemanha e que a Alemanha fosse integrada como membro à OTAN – aliança militar hostil. À luz da história recente, foi a mais surpreendente das concessões. Mas tinha havido uma troca: o presidente Bush e o secretário de Estado James Baker haviam concedido que a OTAN não seria expandida “uma polegada, para o Oriente”, falando da Alemanha Oriental. Imediatamente depois de firmado o acordo, os dois expandiram a OTAN para a Alemanha Oriental.
Gorbachev ficou obviamente ultrajado. Mas quando reclamou, Washington explicou-lhe que a coisa não passara de compromisso verbal, acordo de cavalheiros, sem força alguma. Se fora suficientemente tolo a ponto de acreditar na palavra do presidente e do secretário de Estado dos EUA, problema dele.
Isso também era rotina, como rotina eram também a silenciosa aceitação e a aprovação da expansão da OTAN, nos EUA e, em geral, no ocidente. O presidente Bill Clinton então expandiu ainda mais a OTAN, direto para junto das fronteiras da Rússia. Hoje, o mundo encara grave crise que é, em medida não pequena, resultado dessas políticas.
A sedução de saquear os mais pobres
Outra fonte de provas são os registros históricos que vão chegando ao conhecimento público. Esses registros contêm dados reveladores dos reais motivos da política de estado dos EUA. A história é rica e complexa, mas alguns temas têm persistentemente o papel dominante. Um deles foi claramente articulado numa conferência para o hemisfério ocidental que os EUA convocaram, no México, em fevereiro de 1945, na qual Washington impôs “Uma Carta Econômica para as Américas” [orig. “An Economic Charter of the Americas”] que visava a eliminar o nacionalismo econômico “em todas as suas formas”. Havia uma condição ‘não dita’: o nacionalismo econômico ficava aprovado, até recomendado, para os EUA, cuja economia depende vitalmente de massiva intervenção do estado.
A eliminação do nacionalismo econômico para os outros entrou em agudo conflito com a posição dos latino-americanos naquele momento, posição que funcionários do Departamento de Estado descreveram como “a filosofia do Novo Nacionalismo [o qual] abraça políticas que visam a assegurar melhor distribuição de riqueza e a melhorar os padrões de vida das massas.”
Como outros analistas políticos norte-americanos acrescentaram, “os latino-americanos estão convencidos de que os primeiros beneficiários do desenvolvimento dos recursos de um país deve ser o povo daquele país.”
Claro que não podia ser. Para Washington, os “primeiros beneficiários” têm de ser os investidores norte-americanos, com a América Latina preenchendo a função de dar-lhes os meios. Não poderia haver, como os governos Truman e Eisenhower deixariam bem claro, “desenvolvimento industrial excessivo” que viesse a abalar os interesses dos EUA.
O Brasil, por exemplo, poderia produzir aço de baixa qualidade com o qual as empresas norte-americanas não precisavam preocupar-se; mas a produção seria considerada “excessiva”, se entrasse em concorrência com as empresas norte-americanas.
Preocupações semelhantes ressoaram no período do pós 2ª Guerra Mundial. O sistema global que era dominado pelos EUA estava ameaçado por o que documentos internos chamam de “regimes radicais e nacionalistas” que respondem a pressões populares por desenvolvimento independente. Essa foi a preocupação que motivou os golpes que derrubaram os governos parlamentaristas do Irã e da Guatemala em 1953 e 1954, além de vários outros golpes.
No caso do Irã, uma preocupação principal foi o impacto potencial da independência iraniana sobre o Egito, então em torvelinho contra a prática colonial britânica. Na Guatemala, além do crime da nova democracia que dava poder à maioria camponesa e invadia possessões da United Fruit Company — o que já seria ofensa suficiente –, Washington preocupava-se com a agitação nos meios trabalhistas e a mobilização popular em ditaduras apoiadas pelos EUA nos arredores.
Nos dois casos, as consequências chegam até os nossos dias.
Literalmente, não houve um dia, desde 1953, em que os EUA não tenham torturado o povo do Irã. E a Guatemala ainda é uma das câmaras de horror do mundo. Até hoje há maias que fogem dos efeitos das campanhas militares quase-genocidas no país, patrocinadas pelo presidente Ronald Reagan e seus mais altos representantes. Como um diretor da Oxfam, médico guatemalteco, relatou recentemente:
“Há deterioração dramática do contexto político, social e econômico. Ataques contra defensores de Direitos Humanos aumentaram 300% no último ano. Há clara evidência de que é estratégia bem organizada pelo exército e pelo setor privado. Ambos capturaram o estado, para manter o status quo e impor o modelo econômico extrativista, empurrando os povos nativos dramaticamente para fora de suas terras, que vão sendo ocupadas pela grande indústria de mineração, African Palm e fazendas de cana-de-açúcar. Além disso, o movimento social, que defende as terras e os direitos dos nativos foi criminalizado, muitos líderes estão presos e muitos outros foram assassinados.”
Nada se sabe sobre isso nos EUA, e até a causa óbvia desses fatos também é mantida ocultada.
Nos anos 1950s, o presidente Eisenhower e o secretário de Estado John Foster Dulles explicaram claramente o dilema que os EUA enfrentavam. Reclamaram de que os comunistas gozavam de vantagem injusta. Os comunistas podiam “apelar diretamente às massas” e “obter o controle dos movimentos de massa, coisa que nós não podemos fazer. Eles falam diretamente aos pobres e sempre querem saquear os ricos.”
Isso, sim, é problema. Os EUA sempre encontraram dificuldades para falar diretamente aos pobres e mostrar aos pobres sua doutrina segundo a qual os ricos podem saquear os pobres.
O exemplo cubano
Exemplo claro do padrão geral foi Cuba, quando afinal se tornou independente em 1959. Em poucos meses começaram os ataques militares contra a ilha. Pouco depois, o governo de Eisenhower decidiu, secretamente, mudar o regime em Cuba. Em seguida, John F. Kennedy tornou-se presidente. Queria dedicar mais atenção à América Latina. Então, logo no início do governo, criou um grupo para desenvolver políticas, sob a coordenação do historiador Arthur Schlesinger, que resumiu suas conclusões para apresentar ao presidente que chegava.
Como Schlesinger explicou, o mais ameaçador, de haver uma Cuba independente, era “a ideia de Castro de o país tomar as questões nas próprias mãos”. Desgraçadamente, era ideia que muito atraía as massas na América Latina, onde “a distribuição de terra e de outras modalidades de riqueza nacional favorecem muito as classes proprietárias, e onde os pobres e oprimidos, estimulados pelo exemplo da Revolução Cubana, já começam a exigir oportunidades para uma vida decente.” Para Washington, só problemas. E o dilema de sempre.
Como a CIA explicou, “A extensiva influência do ‘Castrismo’ não é função do poder cubano (…) a sombra de Castro mostra-se grande porque as condições sociais e econômicas na América Latina convidam a fazer oposição a qualquer autoridade e encorajam a agitação para mudança radical” – e a Cuba de Castro oferece modelo para isso. Kennedy temia que a ajuda russa pudesse fazer de Cuba uma “vitrine” do desenvolvimento, o que daria vantagem aos soviéticos em toda a América Latina.
O Conselho de Planejamento Político do Departamento de Estado alertou que “o perigo básico que enfrentamos com Castro está (…) no impacto que a simples existência de seu governo tem sobre o movimento esquerdista em muitos países latino-americanos (…) O simples fato é que Castro representa desafio bem-sucedido aos EUA, negação de toda nossa política hemisférica de quase um século e meio” – queria dizer: desde a Doutrina Monroe de 1823, quando os EUA declararam sua intenção de dominar o hemisfério.
Naquele momento, o objetivo imediato era conquistar Cuba, mas não era possível por causa do poder do inimigo britânico. Ainda assim, o grande estrategista John Quincy Adams, pai intelectual da Doutrina Monroe e do Destino Manifesto, informou aos seus colegas que, com o tempo, Cuba lhes cairia no colo, pelas “leis da gravitação política”, como a maçã cai da árvore. Em resumo: o poder dos EUA aumentaria e o da Grã-Bretanha encolheria.
Em 1898, o prognóstico de Adams se realizou. Os EUA invadiram Cuba, sob o disfarce de ‘libertadores’. Na verdade, impediram que a ilha se tornasse independente da Espanha e a converteram em “colônia virtual”, como disseram os historiadores Ernest May e Philip Zelikow. Cuba permaneceu nessa situação até janeiro de 1959, quando se tornou independente. Desde então, é alvo de guerras terroristas movidas pelos EUA, e que começaram nos anos Kennedy, e de tentativas de estrangulamento econômico. Não por causa dos russos.
A política dos EUA para Cuba tornou-se cada vez mais dura; e ainda mais sob governo Democrata, inclusive sob Bill Clinton, que conseguiu ultrapassar Bush pela direita, nas eleições de 1992. Nesse quadro, os eventos acima listados deveriam ter afetado a validade da doutrina, na discussão da política externa e dos fatores que incidem sobre ela. Mas, não. Nada disso. Outra vez, o impacto dos fatos sobre a teoria foi mínimo.
O vírus do nacionalismo
Tomando emprestada a terminologia de Henry Kissinger, o nacionalismo é “um vírus” cujo “contágio pode disparar”. Kissinger, aí, falava do Chile de Salvador Allende. O vírus, no caso, era a ideia de que podia haver via parlamentar para algum tipo de democracia socialista. O modo de enfrentar tamanha ameaça foi destruir o vírus e vacinar todos que pudessem ter sido contaminados; a solução típica foi impor em todos os casos os mais mortíferos estados de segurança nacional. Foi feito assim no Chile. Mas é importante perceber que esse tipo de pensamento permanece vivo em todo o mundo.
Foi esse, por exemplo, o pensamento que havia por trás da decisão de opor-se ao nacionalismo vietnamita no início da década dos 1950s e apoiar o esforço da França para reconquistar sua ex-colônia. Temia-se que o nacionalismo vietnamita independente pudesse ser um vírus que contaminaria as regiões circundantes, inclusive a Indonésia, riquíssima em recursos.
Poderia até levar o Japão – chamado de “superdominó”, por John Dower, especialista em Ásia – a tornar-se o centro de uma nova ordem industrial e comercial independente do tipo que o Japão imperial havia lutado então recentemente para estabelecer.
Tudo isso, por sua vez, significaria que os EUA teriam perdido a guerra pelo Pacífico, opção que não se considerava em 1950. O remédio era claro – e foi usado com bastante sucesso: o Vietnã foi virtualmente destruído e foi cercado por ditaduras militares que mantiveram o “vírus” cercado e contiveram o contágio.
Em retrospecto, McGeorge Bundy, Conselheiro de Segurança Nacional de Kennedy-Johnson, considerou que Washington deveria ter terminado a Guerra do Vietnã em 1965, quando a ditadura de Suharto foi instalada na Indonésia, com massacres terríveis, que a CIA comparou aos crimes de Hitler, Stálin e Mao. Mas o massacre para empossar Suharto foi saudado com incontida euforia nos EUA e no ocidente em geral, porque o “espantoso banho de sangue”, como a imprensa-empresa o comemorava eufórica, pôs fim a qualquer ameaça de contágio e abriu os ricos recursos da Indonésia aos exploradores ocidentais. Depois de isso estar feito, a guerra para destruir o Vietnã já foi supérflua, como Bundy reconheceu, retrospectivamente.
O mesmo é verdade na América Latina, nos mesmos anos: um “vírus” depois do outro foi viciosamente atacado e destruído ou enfraquecido a ponto de mal sobreviver. A partir do início dos anos 1960s, uma praga de repressão foi imposta em todo o continente, uma história de violência sem precedentes no hemisfério, que se estendeu também para a América Central nos anos 1980s, no governo de Ronald Reagan, assunto ainda vivo na memória que não é preciso rememorar aqui.
Muito disso tudo foi assim também no Oriente Médio. As relações especialíssimas entre EUA e Israel ganharam a forma que hoje têm em 1967, quando Israel aplicou golpe violentíssimo contra o Egito, o centro do nacionalismo árabe secular. Ao fazê-lo, Israel protegeu a Arábia Saudita, aliada dos EUA, então engajada em conflito militar contra o Egito, no Iêmen.
A Arábia Saudita, é claro, é o estado islâmico fundamentalista mais radical, e também é estado missionário, que gasta somas astronômicas para difundir doutrinas salafistas wahhabistas além de suas fronteiras. Vale a pena lembrar que os EUA, como, antes deles, a Inglaterra, tenderam sempre a apoiar o Islã fundamentalista contra o nacionalismo secular, que sempre foi percebido como ameaça mais grave de independentismo e de contágio (o “vírus”, não esqueçam).
O valor do segredismo
Muito há para dizer, mas o registro histórico demonstra muito claramente que a doutrina padrão tem pouca serventia. A segurança, no sentido normal, não é fator na formação política. Repito: no sentido normal de “segurança”. Mas, para avaliar a doutrina padrão, é preciso perguntar o quê significa “segurança”. “Segurança” para quem?
Uma resposta é: segurança para o poder do estado. Há muitos exemplos. Consideremos um exemplo atual. Em maio, os EUA concordaram que apoiariam uma resolução do Conselho de Segurança da ONU para que a Corte Internacional de Justiça, em Haia, investigasse crimes de guerra na Síria, mas sob uma condição: não poderia haver investigação nenhuma de qualquer possível crime de guerra cometido por Israel. Nem de crimes cometidos por Washington. De fato, ninguém nem precisaria declarar essa ‘proteção’ aos EUA, porque os EUA são a única nação autoimunizada contra a ação de qualquer sistema legal internacional.
De fato, há uma lei do Congresso dos EUA que autoriza o presidente a usar força armada para “resgatar” qualquer norte-americano que seja levado a Haia para ser julgado: é a “Netherlands Invasion Act” [Lei da Invasão dos Países Baixos], como é às vezes chamada na Europa. Assim, mais uma vez, se comprova a importância de proteger a segurança do poder do estado.
Mas proteger a segurança do estado, contra quem? Pode-se muito bem argumentar que a principal preocupação do governo é proteger a segurança do estado e contra a própria população. Como sabe qualquer pessoa que se tenha dedicado a vasculhar arquivos, o segredismo, o chamado ‘sigilo’ que protege o governo, raramente é motivado por legítima preocupação de segurança; praticamente em todos os casos o segredismo oficial visa, exclusivamente, a manter a população em total ignorância, sem saber do que se passa.
E por boas razões, como explicou lucidamente o ilustre intelectual liberal e conselheiro governamental Samuel Huntington, professor de ciência de governo na Harvard University. Nas palavras dele: “Os arquitetos do poder nos EUA devem criar uma força que seja sentida, mas não seja vista. O poder permanece forte quando se guarda no escuro; exposto à luz do sol, começa a evaporar.”
Huntington escreveu isso em 1981, quando a Guerra Fria voltava a esquentar, e explicou também que “você tem de vender [intervenção ou outra ação militar] de modo tal que crie a falsa impressão de que o que você combate é a União Soviética. É o que os EUA sempre fizeram, desde a Doutrina Truman.”
São verdades simples, raramente reconhecidas, mas ajudam a ver por dentro do poder e das políticas do estado, e têm reverberações até nossos dias.
O poder do estado tem de ser protegido contra seu inimigo doméstico; em agudo contraste com isso, a população não tem como se proteger contra o poder do estado. Impressionante exemplo atual é o ataque frontal, mortal, que o governo Obama move contra a Constituição dos EUA, com seu programa de vigilância interna massiva. A coisa, é claro, justifica-se sob o argumento da “segurança nacional”. Mas é o que dizem virtualmente todos os estados para justificar todas as suas ações e, assim sendo, pouco significa ou informa.
Quando o programa de vigilância total da Agência de Segurança Nacional dos EUA foi desmascarado pelas revelações de Edward Snowden, altos funcionários correram a declarar que a vigilância total teria evitado 54 atos terroristas. No inquérito, o número já baixou para uma dúzia. Na sequência, um painel de alto nível criado pelo governo logo descobriu que, de fato, só um caso fora realmente ‘descoberto’: alguém mandara $8.500 para a Somália. Foi o único ‘benefício’ obtido dessa vasto ataque contra a Constituição e, claro, também contra milhões de outras pessoas em todo o mundo.
A atitude da Grã-Bretanha é interessante. Em 2007, o governo britânico contratou a colossal agência de espiões de Washington, para que “analisasse e recolhesse todos os números de celulares, fax, endereços de e-mails e IPs de qualquer cidadão/ã britânico/a que houvesse em seu banco de dados” – como o Guardian noticiou. Dá indicação útil da importância relativa, aos olhos do governo, de o estado proteger a privacidade dos próprios cidadãos e das encomendas que Washington recebe.
Outra preocupação é garantir segurança ao poder privado.
Exemplo atual são os gigantescos acordos comercial que estão sendo negociados, as ‘parcerias’ Trans-Pacífico e Trans-Atlântico. Estão sendo negociadas em segredo, mas não totalmente em segredo. Absolutamente não são segredo para as centenas de advogados de corporações que estão redigindo as cláusulas e seus muitos detalhes. Não é difícil adivinhar quais serão os resultados, e os raros ‘vazamentos’ que se conhecem sugerem que o que se espera e teme, sim, é o que acontecerá.
Como o NAFTA e outros desses ‘pactos’ e ‘parcerias’, não são acordos de livre comércio. De fato, sequer são acordos de comércio: são, em primeiro lugar, acordos que fixam os direitos dos investidores.
Mais uma vez o segredismo, o ‘sigilo’, é criticamente importante para garantir segurança à parte que interessa do eleitorado doméstico de qualquer governo: ao setor empresarial, chamado “corporativo”, às empresas privadas.