O banco dos BRICS

Em 15 de Julho último os cinco países BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – criaram formalmente um novo Banco de Desenvolvimento na cidade de Fortaleza, Brasil, o qual terá sede em Shangai e terá um indiano como seu primeiro presidente. O banco teria um capital base de US$50 mil milhões para começar, com a contribuição dos cinco governos, e proporcionaria financiamento ao desenvolvimento a todos os governos para projectos de infraestrutura. A proposta dos BRICS também considera um Esquema de reservas para contingências (Contingency Reserve Arrangement, CRA) de US$100 mil milhões, o qual concederá empréstimos a governos para que enfrentem problemas de balança pagamentos – mas esta disposição ainda está para arrancar.

Muitos economistas e comentadores saudaram o Banco BRICS, cada um deles mencionando alguns dos três seguintes argumentos: primeiro, que aumentará o papel dos países BRICS na “governação económica global”. Estes países actualmente são marginalizados pela principal agência de empréstimos para o desenvolvimento, o Banco Mundial, o qual opera sob o princípio de votação consoante a percentagem de capital e não de “um país um voto” (o princípio que governa a ONU).

Assim, seu peso económico aumentará se eles tiverem em conjunto um banco de desenvolvimento próprio com os mesmos objectivos que o Banco Mundial deveria cumprir de acordo com o estabelecido em Bretton Woods. (Noutro paralelo com Bretton Woods, o CRA, que é a organização gémea do Banco BRICS mas que ainda não teve início, é encarado como que a preencher um papel tipo FMI.) Dito de modo diferente, o argumento é que o Banco BRICS reduzirá o poder dos países desenvolvidos na “governação económica global” e aumentará o dos BRICS, o que deve ser saudado pois representa uma transferência de poder económico global.

O segundo argumento é que aumentará o “peso do Sul” na “governação económica global”. Está a ser afirmado que o Banco BRICS não operará na base de “votos de acordo com a percentagem de capital”, mas sim de “um país um voto”, sem poder de veto concedido a qualquer país. E além dos cinco países que são proprietários do banco haverá também alguns outros países do Sul, numa base rotativa, no Conselho de Administração que serão autorizados a votar. Consequentemente, não será apenas um Banco dos BRICS mas sim um banco que de certa forma representa todo o Sul.

O terceiro argumento é que o Banco BRICS não será uma fonte de pressão ideológica para a adopção de políticas neoliberais, como se tornou o Banco Mundial. Este argumento declara que o Banco Mundial a princípio costumava dar assistência a projectos com base na viabilidade do próprio projecto, sem interferir com as políticas macroeconómicas do governo em causa. Mas a partir de um certo ponto começou a conceder empréstimos para apoio a orçamentos de governos, primariamente sob empréstimos de “Ajustamento estrutural”, mas também sob outras rubricas (o empréstimo Extended Facility obtido pelo Índia no princípio dos anos oitenta é um exemplo desta nova espécie de empréstimo). Ele começou então a preocupar-se com a orientação da política macroeconómica do governo tomador do empréstimo. Impôs “condicionalidades” aos seus empréstimos, tal como o FMI também começou a fazer, as quais essencialmente pressionavam os países tomadores a adoptarem políticas neoliberais. Uma vez que o Banco BRICS estará a dar empréstimos para projectos, baseados inteiramente na viabilidade do próprio projecto, ele não se preocupará com a orientação macroeconómica do governo, portanto seus empréstimos carecerão da coerção ideológica que implicam os empréstimos do Banco Mundial.

No que todos estes argumentos se resumem em termos de economia política é essencialmente que o Banco BRICS reduzirá a dependência do Sul em relação a instituições dominadas pelo imperialismo e, portanto, constitui um desenvolvimento progressista. Será válida esta afirmação?

EUFORIA INJUSTIFICADA

É certamente incorrecto fazer pronunciamentos sobre o assunto numa etapa tão prematura. Mas a euforia dos comentadores, pode-se dizer desde já, é injustificada. A questão é que, muito embora a China se posicione numa base algo diferente, todos os outros países BRICS têm significativas grandes burguesias internas as quais estão integradas ao capital financeiro internacional. Isto é verdadeiro mesmo se se pensar que a Rússia está actualmente em oposição ao Ocidente quanto à Ucrânia. A questão do Banco BRICS não pode ser analisada sem referência à grande burguesia dos países BRICS, como têm feito quase todos os comentadores. Por outras palavras, a natureza de classe destes regimes tem um papel crucial na direcção que o Banco BRICS tomará: se o Banco BRICS e o CRA se tornarem meras réplicas do Banco Mundial e do FMI com alguma delegação de autoridade do “topo” para as potências BRICS, ou se expandirão o espaço de manobra dos países do Sul.

O facto de que o CRA está confirmadamente a considerar impor “condicionalidades” estilo FMI a todos os países que tomem emprestado acima de 30 por cento das suas quotas é indicativo do que está para vir. E o Banco Mundial certamente não encara o Banco BRICS como uma espécie de rival; na verdade ele saudou a formação do Banco BRICS em termos claros.

Não é segredo que o FMI e o Banco Mundial são organizações em declínio, com o grosso dos empréstimos internacionais sendo agora encaminhados não através estas agências multilaterais mas sim através de bancos privados. De facto, na fase posterior da crise financeira de 2008, o FMI foi rapidamente ressuscitado através de um plano elaborado pelo G-20, do qual vários países BRICS são membros e que procurava utilizar fundos chineses, encaminhados através do FMI, para ressuscitar economias atingidas pela crise. Este plano, de que a propósito a Índia foi um dos principais arquitectos, foi proposto para contrariar uma proposta promovida pelo então presidente da Assembleia-Geral da ONU, Padre Miguel Brockman , da Nicarágua (que havia lançado a Comissão Stiglitz), no sentido de haver uma nova conferência internacional tipo Bretton Woods com a participação de todos os estados membros da ONU. Em resumo: vários países BRICS foram coniventes com o bloco imperialista conduzido pelo EUA no sentido de sabotar a proposta de trazer países do Sul para a vanguarda da “governação económica global” e chegaram mesmo a ressuscitar um FMI quase defunto para este objectivo. Imaginar que estes mesmos países vão agora, através do Banco BRICS, alinhar-se com o Sul para afrouxar o domínio do imperialismo, é absolutamente fantasioso.

O relacionamento da grande burguesia do terceiro mundo com o imperialismo não permaneceu invariável ao longo do tempo. Houve um momento, quando dominava o dirigismo de Nehru, em que a grande burguesa do terceiro mundo quis um grau de autonomia relativa em relação ao imperialismo, para desenvolver a “economia nacional”. O dirigismo reflectia esta ambição. Mas isso acabou há muito. Mesmo na Índia, onde perdurou mais tempo, já se passaram duas décadas e meia, se não três, desde que o neoliberalismo substituiu o dirigismo, o que basicamente significa a integração da grande burguesa nas fileiras do capital financeiro globalizado, com suas próprias ambições de intrusão em outras economias do terceiro mundo e de reduzi-las a apêndices, exactamente do modo como faz o imperialismo, mas com as bênçãos deste ao invés da sua oposição.

As tomadas de terras da Índia na África são um bom exemplo, tal como o é a vaga de Acordos de Livre Comércio assinados pelo governo indiano nos quais os interesses dos camponeses são sacrificados a fim de encontrar mercados para manufacturas capitalistas. As grandes burguesias de outros países BRICS também não estão livres destas ambições de intrusão em outras economias do Sul. Portanto a ideia de que tudo o que provém das fileiras de países do terceiro mundo é ipso facto uma força que enfraquece o imperialismo tem de ser abandonada no contexto actual.

Acreditar que o mesmo governo indiano que está a tentar privatizar bancos de propriedade estatal dentro da Índia contra os interesses do seu próprio povo — com o argumento espúrio de que precisa cumprir as “normas adequadas de capital” de Basiléia III — subitamente ficou ansioso por desenvolver, através do Banco BRICS, um sector público no interesse dos povos do Sul é mostrar extraordinária ingenuidade.

POUCO A LOUVAR

Isto leva-nos a um ponto importante. Por que é que qualquer país necessita tomar emprestado de um banco internacional para financiar sua infraestrutura? Os recursos reais necessários para tais investimentos são de duas espécies: aqueles disponíveis internamente e aqueles que têm de ser importados. Quanto aos primeiros, financiar sua compra não exige um empréstimo internacional; ele pode ser efectuado simplesmente pela contracção de empréstimos junto a bancos internos, incluindo o banco central. Uma vez que há abundância de capacidade interna não utilizada na maior parte dos grandes países do terceiro mundo, tais empréstimos internos serão não inflacionários e portanto pode-se recorrer a eles sem penalizações. É só para obter as divisas estrangeiras exigidas para comprar os componentes importados do investimento na infraestrutura que um empréstimo de um banco internacional pode ser necessário.

Mas este não é o modo como o capital financeiro encara a questão e portanto o da maior parte dos governos do terceiro mundo que aprendem sua teoria económica com os porta-vozes das finanças. Eles pensam acerca dos recursos não em termos reais mas exclusivamente em termos de dinheiro; acreditam que a expansão interna do crédito deve ser mantida sob rédea curta devido à inflação como se faz agora (muito embora esta inflação não seja causada por excesso de procura); e portanto consideram como virtude substituir empréstimos estrangeiros por internos. A expansão da disponibilidade de divisas estrangeiras que isto implica encoraja uma substituição de inputs importados por internos em projectos de infraestrutura (por vezes bancos estrangeiros insistem nisso em nome da “oferta flutuante global” (“floating global tender”). Um Banco BRICS, em suma, pode desempenhar o papel de expandir o mercado para os países BRICS nas economias do Sul a expensas de fabricantes locais. O “neoliberalismo” sem dúvida já trabalha nesta direcção; mas o Banco BRICS agravará a tendência.

A disponibilidade fácil de divisa estrangeira, mesmo quando não provoca uma substituição de bens importados por outros produzidos internamente, e portanto não causa “desindustrialização” interna, tem outro efeito semelhante: ao financiar um défice em conta corrente, impede de serem tomados quaisquer passos correctivos para eliminar este défice. Dessa forma, expõe o país a uma futura crise de divisas estrangeiras de uma magnitude ainda maior e assim faz, paradoxalmente, ao impedir qualquer aperto imediato de divisas externas. E quando uma tal crise de maior magnitude o atinge, é o povo que paga o preço da mesma, não a grande burguesia.

A moral da estória é isto: o significado de qualquer esquema financeiro, tal como estabelecimento de um banco internacional de desenvolvimento do género Banco BRICS, depende do contexto. Tem um significado num contexto em que todos os Estados-nação impõem livremente controles sobre o comércio e o capital – e outro bastante diferente quando perseguem políticas neoliberais. Pode ser uma fonte de apoio para um regime que se tenta libertar das cadeias do imperialismo no primeiro contexto mas não no último. Portanto, no que se refere aos povos do Sul, incluindo a Índia, há pouco a louvar na formação do Banco BRICS.

Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em http://peoplesdemocracy.in/2014/0727_pd/brics-bank

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .