A crise de Honduras no marco do novo Sistema Interamericano de Defesa

Neste redesenho do mundo, os EUA criaram para o Continente Americano, chamado por eles de Hemisfério Ocidental, o Sistema Interamericano de Defesa (SIAD), com o objetivo de garantir o controle dos recursos estratégicos e acostumar nossos países ao uso combinado de nossas forças militares para combater o que eles consideraram ameaças a esse controle. O Sistema se baseou em três pilares:

1) Político: Democracia representativa, jamais participativa. Foi estabelecida no Compromisso de Santiago com a “Democracia e a Renovação do Sistema Interamericano” na reunião realizada em Santiago, Chile, no ano de 1991, e na “Resolução 1080” estabelecida pela OEA em 5 de junho do mesmo ano, que determinou que não será reconhecido nenhum governo que surja de um golpe de estado contra um governo constitucional.

Mas, com o tempo, foi nascendo a necessidade de eliminar governos que não se submetiam docilmente às exigências imperiais. Assim, foi dando origem a um novo golpismo, diferente do tradicional, que é encabeçado de forma aberta por civis com a cumplicidade, às vezes encoberta, dos militares. Viola-se a constituição empregando uma violência aparentemente menor. Simula-se proteger a ordem institucional mantendo em funcionamento os Poderes Legislativo e Judicial,eliminando o Executivo, origem da discórdia e que nem sempre envolve de forma aberta o Império,gestor do motim, e tem como objetivo solucionar um problema pontual no lugar de uma mudança rumo a uma nova ordem. Cabe mencionar como exemplos do anteriormente expressado, os golpes de estado realizados no Equador contra os presidentes Abdala Bucaram e Jamil Mahuad em 1997 e2000, respectivamente. Esta metodologia, apesar de alguns protestos, foi tolerada no resto do continente. Não existiram reações desproporcionais e como foi seguida de soluções aparentemente legais, criou-se a ilusão da manutenção do regime institucional democrático e, em conseqüência,tolerados pelo resto dos países regionais. As organizações regionais, como a OEA e o grupo do Rio,nem sequer opinaram.

Diante do “êxito” conseguido no ano de 2002, houve a tentativa de “repetir o exercício” para derrubar o molesto Presidente Chávez na Venezuela. Mas, de maneira contrária ao esperado, os principais líderes regionais reagiram de imediato qualificando o ocorrido como um Golpe de Estado. Aocontrário, os Estados Unidos e alguns colaboradores regionais o consideraram como necessário e a Espanha e o FMI, inclusive, tentaram retificá-lo, dando as boas vindas a um Golpe de Estado afim com seus interesses. A coalizão cívico-militar venezuelana reacionária havia consumado um golpe tradicional e autoritário que fracassou. O líder popular Hugo Chávez retomou seu cargo reposto por seu povo.

Apesar desse fracasso os EUA tentaram repetir a metodologia com um governo caribenho que havia iniciado uma aproximação “perigosa” com o governo cubano que lhe oferecia ajuda para combater as enfermidades e o analfabetismo de sua paupérrima população. Em 2004, Jean-Bertrand Aristide,presidente legalmente eleito do Haiti, foi deposto por um Golpe de Estado realizado pelo embaixador dos EUA e tropas norte-americanas (no Haiti não há forças armadas, pois foram dissolvidas por Aristide), que acompanharam pequenos setores policiais desse país. Os golpistas não repetiram um erro cometido na Venezuela. Em vez de encarcerar o presidente Aristide em seu país, o transferiram em um avião à República Centro-Africana, prevenindo alguma tentativa de seus partidários derecolocá-lo em seu legítimo lugar.

Nos dias atuais, nos encontramos com um novo Golpe de Estado no continente, Honduras, onde se tentou repetir o “sistema” empregado no Haiti, mas de forma tão grosseira que desataram uma sériede reações desfavoráveis não somente na região, como também no âmbito mundial. Ninguém pode entender como é possível defender a democracia acabando com a democracia. O que ocorreu foi que,para não avançar em direção à formas mais avançadas de convivência humana, tentaram reinstalar o demoliberalismo capitalista preexistente, com soluções que se baseiam na simulação e na falsidade,sem se dar conta de que nada estável nem duradouro pode ser fundamentado na mentira. Sedesejam evitar males maiores, será preciso que os golpistas compreendam que Honduras está vivendo horas de mudanças decisivas e que das soluções que surjam dependerá um futuro que pode ser venturoso, se são capazes de proceder com grandeza, ou pesar, se não são capazes de renunciara alguns de seus privilégios a fim de continuar com o processo de redistribuição de renda de forma equitativa. Em última instância, se acham que têm razão, por que não recorrem a um plebiscito popular e perguntam quem o povo quer que governe? É claro que enquanto precisarem obedecer às ordens estrangeiras e servir a interesses alheios a Honduras, é muito duvidoso que isso ocorra. Deve se considerar que nessas regiões está terminando o reinado da burguesia e começando o governo dos povos. O final é, por agora, (agosto de 2009) pouco previsível já que a situação se agrava rapidamente. Convém recordar que o Império – gestor do conflito – muda suas estratégias, mas não seus objetivos.

2) Pilar econômico: Consistiu em pôr em funcionamento um sistema neoliberal globalizado:“Associação de Livre Comércio para as Américas” (ALCA). Nasceu sob o governo de Bush pai, em1991, com o nome de “Iniciativa de Livre Comércio para as Américas” e foi lançado na Primeira Reunião das Américas no ano de 1994. Foi rejeitado definitivamente na Reunião de Mar del Plata,Argentina, em 2005. Porém, de alguma maneira foi imposto através dos Tratados de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), da América Central mais República Dominicana (CAFTA); Plan Puebla Panamá e os tratados bilaterais (TLC). Mas como expressamos anteriormente, temos que estar muito atentos, pois o Império pode mudar suas estratégias, porém não seus objetivos, já que o sistema econômico globalizado que tenta instaurar lhe permite detectar, como está expresso na“Estratégia de Segurança para as Américas”, todo “sinal de instabilidade” na região. Prova disso é o relançamento da ALCA em 24 de setembro de 2008, sob o nome de “Iniciativa de Caminhos Rumo àProsperidade”.

3) Pilar militar: Consistiu-se na atualização de suas previsões militares para manter um sistema de segurança coletivo que garanta a livre disponibilidade, para os EUA, dos recursos naturais com valor estratégico da região.

Este sistema devia se diferenciar do anterior (Doutrina da Segurança Nacional) através de três elementos constitutivos:1. Um primeiro nível de condução política das futuras operações encarnado nas chamadas “Reuniõesdos Ministros de Defesa das Américas”, às quais se dotariam de um novo órgão de trabalho conhecido pelo nome de “Comissão de Segurança Hemisférica” e de uma entidade de preparação de civis nos problemas da defesa denominada “Centro de Estudos Hemisféricos de Defesa”. Ambos com sede nos EUA e sob a supervisão do Departamento de Defesa norte-americano, ou seja, substituir as ditaduras militares – de procedimentos sangrentos e autoritários – por governos de democracias “debaixa intensidade”.

2. Um segundo nível, de execução militar do que foi planejado, conformado pela condução política anteriormente citada e composto pelas já existentes “Reuniões de Comandantes em Chefe dasAméricas”, (nestes dias, agosto de 2009, está ocorrendo em Bogotá. Melhor nem imaginar os temas que estão sendo discutidos), e que mantêm, como órgão de trabalho, a Junta Interamericana de Defesa (à qual se deu em 2007 caráter institucional no marco da OEA) e transferindo a macabra“Escola Militar das Américas” do Panamá a território estadunidense (Fort Benning). Tudo isso regulado pelo incrivelmente sobrevivente TIAR, o mesmo que patenteou a traição na guerra do Atlântico Sul.

3. Uma aceitação de inimigos comuns: o narcotráfico, o terrorismo, a posse de armas de destruição em massa, o tráfico de armas, as correntes migratórias, os desastres naturais e exaltação religiosa ou nacionalista.

Conjugados todos esses fatores, em 1995, os EUA deram conhecimento dos documentos “STRATEGICASSESSMENT 1995 – US CHANGES IN TRANSITION” e “US STRATEGY SECURITY FOR THEAMERICAS” que condensam esses aspectos.

Foi assim que em 25 e 26 de julho de 1995 foi realizada em Williamsburg, EUA, a primeira Reunião dos Ministros de Defesa das Américas, para iniciar o planejamento do sistema comum de defesa que determinaria a forma de enfrentar os inimigos comuns. Estas Reuniões continuaram a cada dois ano sem distintos países. A última ocorreu em 2008 em Banff (Canadá), e a próxima será realizada em2010 na Bolívia.

O treinamento das forças militares da área mediante a realização de exercícios combinados a fim de“garantir a segurança de forma coletiva” começou. Foram estabelecidas bases militares de forma que os efetivos pudessem controlar, sem grandes deslocamentos, as zonas com disponibilidade de recursos naturais estratégicos (água potável, biodiversidade, hidrocarburetos, minerais). Como dado informativo, 31% do território de Honduras está nas mãos de transnacionais mineradoras,especialmente canadenses, que são as mesmas que operam na Argentina. Às bases militares deGuantánamo em Cuba; Roosevelt Roads e Fort Buchanan em Porto Rico; Soto Cano em Honduras; Comalapa em El Salvador; Curaçao e Aruba, se agregaram, com a implementação do “PlanColombia”, complementado durante 2008 com a “Iniciativa de Mérida” e a “Iniciativa RegionalAndina” (hoje deixada de lado), a gigantesca base de Manta no Equador; a do Valle de Huallaga no Peru, onde o presidente Alan Garcia permitiu a entrada em seu território, em 2008, de 1.000 efetivos do exército dos EUA na zona de Ayacucho e assinou um convênio para que a IV Frota do Comando Sul utilize livremente seus portos sobre o Pacífico e onde, na fronteira de 1.400 quilômetros na zona amazônica compartilhada com a Colômbia, realizam contínuos “exercícios combinados”; as de Tres Esquinas, Puerto Leguizamo, Villavicencio e a de Hacienda Larandia (onde o Comando Sul mantém a“inteligência técnica”) na Colômbia; e a já reclamada e devolvida ao Brasil base de São Pedro de Alcântara, próxima a Manaus… Além disso, foi elaborado um plano para instalar “supostas estações de detecção de explosões subterrâneas atômicas ilegais”, oito delas em território argentino.

Com o advento do governo popular do Presidente Correa, no Equador se determinou como obrigação constitucional, o desalojamento da base de Manta, que se iniciou durante o mês de julho de 2009.Mas o Sistema reagiu rapidamente e Manta, que era um elo chave do sistema instituído, foi substituída por bases colombianas ocupadas, de forma conjunta, por efetivos militares dos EUA e da Colômbia. A substituição de Manta será a base de Palanquero, complementada, ao norte, pela de Malambo, e ao sudoeste pela de Apiai, e, além disso, se ampliarão as instalações de Tolemanda na zona central e Larandia no sudeste do país. O presidente da Colômbia, Uribe, fez recentemente visitas pelos países do UNASUR para explicar o inexplicável.

Até a data foram realizados múltiplos exercícios militares combinados. Basta mencionar, além dos célebres UNITAS, CABAÑAS e AGUILA, outros não tão populares como: Fuerzas Unidas, Cruz del Sur, Ceibo, Fraterno, Fluvial,Tamba, Sar, Araex, Apoyo Humanitario, e tantos outros. Observem que eles ocorreram sempre em nossos territórios e próximos aos lugares com recursos naturais estratégicos,nunca em território dos EUA. Sua verdadeira finalidade foi expressa pelo ex-presidente argentino, DeLa Rua, quando, ao pedir autorização ao Congresso para a entrada de tropas estrangeiras, pontuouno seu Projeto de Lei: “preparar os efetivos para a luta em um campo de batalha composto por civis,organizações não governamentais e potenciais agressores” (SIC). Onde ficaram o terrorismo, o narcotráfico, as migrações, etc.?

Para monitorar e conduzir todo este sistema organizado pelo SIAD foi instalado o Comando Sul com sede, primeiro no Panamá e agora em Miami. Este comando, com jurisdição em toda América Latinae Caribe (menos México), tem a missão de: conduzir operações militares e promover a cooperação desegurança para alcançar os objetivos estratégicos dos EUA. Forma parte dos comandos unificados estadunidenses implantados por todo o mundo, com áreas geográficas de responsabilidade e que operam como verdadeiros vice-reis imperiais, reportando diretamente ao Presidente através do Secretário de Defesa sem dependência dos embaixadores nos distintos países onde exercem suas funções. Seu Comandante, em conjunto com os “Comandantes das FFAA dos países da região,constituem uma verdadeira “diplomacia paralela” com poder de decisão, como demonstrou o ocorrido em Honduras. Os outros Comandos são: o Norte, o Central, o Europeu e o do Pacífico. Recentemente foi criado o africano. Os outros meios são os chamados Comandos Funcionais: Fuerzas Especiales,Transporte, Operaciones Especiales e o Estratégico.

O Comando Sul tem a seguinte orgânica geral:

1. Componente Terrestre (USARSO), Houston (Texas) e o Fort Buchanan em Porto Rico.

2. Componente Aéreo (AFSOUTH), Davis Montan (Arizona), 12° Fuerza Aérea.

3. Componente Naval: Comando Meridional de las Fuerzas Navales (USNAVSO), Mayport (Flórida). Éo agente executivo para as operações navais na base de Comalapa (El salvador). Aos seus efetivos se agregou recentemente a IV FLOTA reorganizada.

4. Componente de Infantaria de Marinha (USMARFORSOUTH), Miami.

5. Comando de Operações Especiais do Sur, Miami (Flórida). Controla todas as “operações especiais”da região.

6. Três Grupos de Trabalho Comuns (JTF)

a) Grupo Bravo Comum. Localizado na base aérea de SOTO CANO (Honduras). Organiza exercícios multilaterais na região.

b) Grupo de Trabalho Comun. Guantánamo (Cuba). Conduz as operações contra o terrorismo.Encarrega-se da detenção e interrogatórios de detidos.

c) Força Sul Comum. Key West Florida. A cargo das operações antidrogas.

7. Localizações para operações adiantadas em Manta, que agora passará a Palanquero e às Antilhas Holandesas (Aruba e Curaçao).

Até aqui tentamos apresentar um panorama dos fins e organizações do chamado SIAD (Sistema Interamericano de Defesa), instalado pelos EUA para assegurar a livre disposição dos recursos naturais que lhe permitam continuar sendo a super potência dominante. O que foi descrito nãoenvolve todos os meios e sistemas que denominamos “militarização”, pois nossos elementos de informação são escassos e esse sistema é dinâmico, se transforma e renasce com diferentes denominações, utiliza a cooperação de múltiplos meios regionais, seja por ignorância ou – o que émais comum – por corrupção. Ninguém em seu perfeito juízo poderá acreditar que semelhante estrutura militar mobilizada para a região serve para combater o narcotráfico, já que se assim fosse,esse flagelo já não existiria, e ao contrário, hoje, tem um espetacular desenvolvimento, inclusive nos EUA, e há setores que garantem que a CIA o controla, destinando os “lucros” para refinanciar seus operativos.

Ninguém pode pensar que realmente se combate o terrorismo, quando este, cada dia se mostra maisativo e ameaça lugares que antes eram refúgios inalcançáveis para eles.

Quem pode crer que as migrações são um dos nossos inimigos comuns, quando a potência dominante e seus aliados são os que originam as condições ideais para que elas se produzam, e esses responsáveis são os únicos que hoje se sentem ameaçados por esse fenômeno? Algum habitante da região pode garantir que os migrantes desesperados ameacem as fronteiras de nossos países?

Todo o exposto explica o que ocorre atualmente em Honduras. Um governo totalmente de acordo com a potência dominante descobre que na região alguns países ensaiam a cooperação na substituição do confronto selvagem, que estão dispostos a mitigar as necessidades dos mais pobres de forma desinteressada, que lhes oferecem ajuda para acabar com os males das enfermidades e com o analfabetismo, e planos para lhes vender elementos básicos para seu de senvolvimentoindustrial a preços muito inferiores aos do “mercado”, e que essa conduta não tem nenhum ponto decontato com a desenvolvida pela superpotência para a qual “tudo é mercadoria” e, como tal tem que aceitar o preço que nos impõe através das empresas transnacionais e das “leis de mercado”, e que historicamente furtou os escassos recursos disponíveis para seu próprio consumo ou para gerar divisas, e que tenta melhorar sua imagem com “planos de ajuda” que só reintegram uma ínfima parte do que roubaram. Com esse panorama, o governo hondurenho decidiu modificar suas relações políticas e comerciais e essa atitude constituiu um perigo supremo para o Império que atenta para o fato de que, se esta conduta se propagar, os recursos da região poderiam não ficar “disponíveis”como estiveram até a data. Assim, foi posta em marcha a nova metodologia para os golpes de estado que explicamos e que pode servir para que outros governos fiquem advertidos e não sigam seus passos.

Recordamos, uma vez mais, que o Império muda suas estratégias, mas não seus objetivos e que devemos permanecer atentos para enfrentar de maneira conjunta as novas ameaças que podem surgir para “nos punir” como hoje ocorre na Venezuela e no Equador, em cujas fronteiras estão instalando o poderio militar mais importante da região, assim como acontece na Bolívia em suas fronteiras ocidentais.

– O Cel. José García e a professora Elsa M. Bruzzone são integrantes do CEMIDA – Centro de Militares para a Democracia Argentina.

Texto traduzido por Valeria Lima

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