Revolucionários sem rosto: Uma história da Ação Popular
A luta mais efetiva contra o regime militar envolveu dezenas de organizações revolucionárias, todas clandestinas e com os mais variados métodos de luta. Algumas organizações, como o PCB, optaram pelo trabalho de massas e a constituição de uma ampla frente democrática contra a ditadura; outras foram para o campo organizar as guerrilhas rurais e a grande maioria, optou pela guerrilha urbana como primeiro passo para construir as condições para a organização da guerrilha no campo. A maioria dessas organizações era constituída por jovens estudantes, a grande maioria saídos de dissidências do PCB. Todas essas organizações foram massacradas pelo regime militar, tanto do ponto de vista militar quanto na tortura e tiveram breve existência.
Entre as organizações que lutaram contra a ditadura, uma delas tem uma historia singular, tanto pela origem dos seus militantes, quanto pelo trabalho de massas que realizou, além do fato de ter se constituído numa organização que chegou a ter cerca de 25 mil membros, entre militantes orgânicos e simpatizantes, com atuação em todos os Estados do País, sendo que pelos menos mil de seus militantes foram deslocados para o trabalho nas fábricas e no campo, processo que denominavam de proletarização. Trata-se da Ação Popular (AP), uma organização inicialmente vinculada à igreja católica e que depois foi evoluindo ideologicamente até absorver o marxismo.
A Ação Popular foi constituída a partir de organizações da igreja católica, com o a Juventude Estudantil Católica (secundaristas), Juventude Universitária Católica, Juventude Operária Católica e Juventude Agrária Católica e do trabalho junto ao Movimento de Educação de Base. Sua evolução política teve a influência dos teóricos católicos Emanuel Mounier, Jacques Maritain, Teilhard de Chardin e do padre brasileiro Henrique Vaz, além de pensadores progressistas da igreja presbiteriana. Nasceu como movimento, depois se transformou em organização política e, influenciada pela visita de seus militantes à China, optou pelo maoísmo. No início da década de 70, grande parte dos seus militantes ingressaram no PC do B e hoje compõe a sua direção, enquanto outra parte continuou na resistência à ditadura até se dissolver posteriormente nos anos 80.
Essa história da Ação Popular agora está publicada num trabalho de excelente qualidade e resgate histórico, de autoria do jornalista Otto Filgueiras. O trabalho foi produzido em dois volumes, com 85 capítulos, cujo primeiro volume agora está sendo publicado pelas Edições ICP. Trata-se de uma pesquisa de mais de duas décadas, no qual o autor realizou entrevistas com mais de 200 ex-dirigentes e ex-militantes da AP, pesquisou nos arquivos da polícia política brasileira, nos arquivos pessoais de ex-dirigentes, nos processos a que os militantes responderam na justiça militar e nos acervos documentais da Universidade de Campinas, que reúne a mais ampla documentação sobre o movimento operário brasileiro e sobre o período da ditadura.
Portanto, trata-se de um trabalho de fôlego e uma enorme contribuição para a história da resistência à ditadura, especialmente porque este é um período muito pouco conhecido pela geração atual, uma vez que o povo brasileiro ainda não conseguiu fazer o ajuste de contas com seu passado ditatorial, como já ocorreu nos outros países da América Latina que também viveram períodos de repressão e ditadura. Até hoje os militares resistem em abrir os arquivos do período ditatorial. O primeiro volume, com 561 páginas e uma galeria de fotos com momentos importantes da resistência ao golpe, está dividido em 41 capítulos e envolve o período pré-1964 até os anos 1968. Com prefácio do historiador Mario Maestri, o livro reconstrói de maneira rigorosa a trajetória de uma das mais importantes organizações revolucionárias brasileiras na resistência à ditadura.
O livro começa relatando os primórdios da organização, quando os jovens ainda estavam envolvidos pela doutrina da igreja e, aos poucos, foram despertando para o entendimento da realidade brasileira e para a luta contra as injustiças sociais. Essa nova visão da realidade levou esses jovens militantes a ir rompendo aos poucos com o conservadorismo da igreja, participando das lutas estudantis junto com os marxistas, realizando o trabalho de alfabetização no interior do País e posteriormente se constituindo em movimento político com atuação independente da igreja, mas sem nunca perder os contatos com os membros dessa instituição que estavam participando dos trabalhos junto à população.
Inicialmente constituída como sociedade civil Ação Popular , a primeira reunião de pré-fundação foi realizada em 1962, no Convento dos dominicanos, em Belo Horizonte, sob forte influência do padre Henrique Vaz, onde foi eleita uma coordenação nacional e elaborado o Estatuto Ideológico da organização. No entanto, a fundação oficial da AP como organização política só veio a ocorrer em 1963, em Salvador, na Bahia, ocasião em que foi aprovado o Documento Base da organização, ainda com base filosófica idealista, como constata o autor, e onde se elegeu um Comitê Nacional, coordenado por Herbert de Souza, O Betinho, figura carismática imortalizada em uma bela música de João Bosco e Aldir Blanc.
Vale destacar que a Ação Popular, a partir de sua organização, passou a ter uma grande influência no movimento estudantil brasileiro e, em aliança com o PCB, dirigiu a União Nacional dos Estudantes (UNE) no período anterior ao golpe e manteve essa influência, chegando a eleger vários presidentes da UNE no período após o golpe militar. Influenciada pelas teses maoístas, a AP decidiu proletarizar seus militantes e cerca de um milhar deles foram deslocados para trabalhos de base nas fábricas e entre os camponeses brasileiros.
Nas mais duras condições de clandestinidade, a AP contribuiu de forma militante para um conjunto de lutas contra a ditadura, como a reorganização da UNE, as comemorações do primeiro de maio, no qual expulsou do palanque em São Paulo os pelegos e o governador Abreu Sodré, o atentado no aeroporto de Guararapes, as lutas camponesas pelo interior do País e nas lutas do ABC paulista, muito embora o forte da organização fosse mesmo o trabalho entre a juventude estudantil.
A partir de meados da década de 60, a AP começou a enviar delegações para a China com o objetivo de realizar treinamento militar e cada vez mais começou a ser influenciada pelas ideias do Partido Comunista Chinês e sua estratégia de guerra popular prolongada, o que levou a organização a um impasse, uma vez que nem todos concordavam com essa orientação, o que levaria ao primeiro dos muitos rachas que a organização enfrentaria ao longo de sua história. O primeiro racha ocorreu no segundo semestre de 1968 quando a organização fez sua opção pela luta armada.
A origem desta grande cisão ocorreu a partir do debate no interior da organização sobre as duas teses que disputavam os rumos da AP: a Tese 1, foi elaborada pela corrente majoritária e fortemente influenciada pelas teses maoístas, avaliava que “a sociedade brasileira é semifeudal e semicolonial, que as forças produtivas são entravadas pelo monopólio da terra, pelas formas de exploração do trabalho, resultando numa ditadura do conjunto do poder latifundiário burguês”. Por isso, “a guerra revolucionária é total e prolongada, cercando as cidades a partir do campo, para toma-las em conjugação com as forças da cidade”.
Já a Tese 2, Duas Posições, tinha visão completamente diferente do Brasil. Para a corrente minoritária, o Brasil era um país com a dominância do modo de produção capitalista, onde há ” a subordinação da agricultura pela indústria e ao mercado capitalista, pela dominação do campo pela cidade, pela predominância da grande produção sobre a pequena, tanto na indústria quanto na agricultura … pela predominância do capital financeiro sobre as outras formas de capital e pelo grau de transformação da propriedade fundiária em uma forma de propriedade correspondente ao modo capitalista de produção … Opera-se um poderoso movimento de concentração e centralização do capital que aumenta a dependência da agricultura ao capital financeiro”. Com essas características diz a Tese 2, a revolução seria de cunho marcadamente antimperialista e democrática e a força principal da revolução brasileira era o proletariado urbano e rural e seus aliados, os camponeses, trabalhadores explorados e a pequena burguesia em processo de proletarização.
Eram duas interpretações do Brasil radicalmente diferentes e é natural que não poderiam conviver na mesma organização, tanto que a corrente minoritária foi expulsa. Lendo com os olhos de hoje pode-se dizer que, mesmo derrotados, aquela corrente estava mais próxima da realidade brasileira que os jovens apaixonados pelas teses maoístas. Com essa cisão, a AP perdeu importantes dirigentes históricos da organização, além de militantes em várias regiões do País.
Para se ter ideia da importância que a Ação Popular teve no Brasil, vale ressaltar que uma parcela expressiva dos personagens que militam na política brasileira, independente de suas posições da juventude, são até hoje figuras de expressão nacional. Muito embora estejam do outro lado das barricadas, foram ou são ministros, grandes empresários, executivos de grandes empresas, governadores, senadores e deputados.
Por isso, o primeiro volume de Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular deve ser lido por todos aqueles que querem compreender a história da resistência à ditadura no Brasil. Escrito de maneira envolvente, com um rigor documental extraordinário, recupera para a história as lutas e a trajetória de uma geração de brasileiros que doou generosamente o melhor de suas vidas, inclusive sacrificando a própria vida, para a conquista da democracia e de uma sociedade próspera e justa. Aguardem o segundo volume. Nota: Dentro em breve resistir.info disporá deste livro para venda em Portugal. Os interessados podem desde já reservar o seu exemplar através do email resistir[arroba]resistir.info. [*] Diretor do Instituto Caio Prado Junior
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