O movimento trabalhista e a luta socialista na Venezuela atual

Em meados de junho de 2010 entrevistamos Pedro Eusse, secretário nacional do Partido Comunista da Venezuela ( PCV ) e membro do comitê executivo provisório da confederação trabalhista Unión Nacional de Trabajadores (UNT). Figuras revolucionárias do passado nos fitavam de quadros nas paredes do escritório do PCV no centro de Caracas. Evitando as interrupções do constante toque do telefone, Pedro falou apaixonadamente por duas horas acerca da centralidade dos trabalhadores organizados na luta revolucionária e sobre a necessidade de união no movimento trabalhista. Ele exprimiu suas esperanças na reconstrução da UNT em seu terceiro congresso, planejado para o outono de 2010.

Qual é sua formação política?

Inicialmente eu me filiei à Juventude do Partido Comunista da Venezuela no estado de Zulia, basicamente um estado produtor de petróleo do oeste do país. Quando me filiei à Juventude Comunista, estava justamente terminando a escola secundária e tinha começado a trabalhar numa empresa de produção agrícola. Eu tinha 17 ou 18 anos, e me envolvi no sindicato. Portanto, minha iniciação no Partido Comunista coincidiu com minha iniciação no movimento trabalhista.

Houve um episódio revelador da política sindical na Venezuela nesta época. Estive envolvido na organização de uma greve em nossa empresa contra abusos nas horas excessivas de trabalho. Em conseqüência, fui demitido. Dessa época em diante tenho me dedicado em tempo integral ao trabalho político, e ao trabalho com o movimento trabalhista especificamente.

Com o passar dos anos, assumi responsabilidades dentro do partido a nível nacional, como membro da executiva da Juventude Comunista na Venezuela. Isso foi lá pelo final dos anos 80, e eu estava em Caracas quando as revoltas do Caracazo ocorreram.

Mais ou menos à mesma época, assumi também responsabilidades na Central Unitaria de Trabajadores de Venezuela (CUTV), fundada em 1963. Comecei atuando com líder da juventude nesta confederação, a partir do final da década de 80, e mais tarde fui eleito secretário geral. Assim, minhas atividades sindicais estiveram muito integradas com meu trabalho político. A decisão para que me dedicasse a um papel de liderança dentro da CUTV foi do partido. Eu tinha experiência em luta sindical e portando era considerado apto para a tarefa.

Na atual conjuntura, estamos no processo de construção de uma corrente sindical chamada La Corriente Clasista de Trabajadores “Cruz Villegas” (CCT-CV). Cruz Villegas foi um líder da CUTV, um líder sindical comunista veterano na Venezuela, que foi torturado e preso na ditadura de Marco Pérez Jiménez (1952-1958). Cruz Villegas morreu há dois anos.

Então, a nova corrente está tentando manter o espírito da luta de classes de Cruz Villegas, e a CUTV, vivos. A nova corrente, CCT-CV, foi formada com a idéia de unir o movimento trabalhista. Para todos os propósitos práticos, desativamos a CUTV. A CUTV foi uma central de trabalhadores muito pequena, basicamente composta por comunistas. Foi muito forte na década de 60, quando foi fundada, e mantida com perspectiva pluralista, porque havia outras correntes envolvidas na corrente comunista. Mas todas as correntes eram de esquerda. A CUTV era a central trabalhista tradicional da esquerda do movimento trabalhista.

Entretanto, por várias razões, ela começou a encolher em força e em número. Uma das causas foi a estratégia adotada pelo partido da Acción Democrática (AD), que estava no poder nesta época, juntamente com a FEDECAMARAS (a federação do comércio), o Departamento de Estado dos EUA e as companhias petrolíferas transnacionais, para criar uma nova espécie de sindicato. O acordo político Punto Fijo, feito em 1958, basicamente necessitava de uma central de trabalhadores que expressasse seus interesses, e esta era a Confederación de Trabajadores Venezolanos (CTV). A CTV estabeleceu seu controle sobre os trabalhadores do setor público, todas as empresas do estado, e todas as empresas controladas pelo capital transnacional. Esta estratégia foi bem sucedida em reduzir o número e a força da CUTV, com o tempo.

O outro fator que contribuiu para a redução da CUTV foi a política internacional e a situação econômica, a liberalização do comércio, que foi impingida à Venezuela pelo Fundo Monetário Internacional, que exigiu uma série de políticas neoliberais. O setor têxtil, o metal-mecânico e outros setores na economia da Venezuela praticamente entraram em colapso. E essas eram áreas onde a CUTV havia tido presença significativa. À medida que a indústria se reduzia mais e mais, a CUTV acabou se vendo com quase nenhum afiliado.

Então, quando Hugo Chávez ganhou a presidência em 1998, e iniciou a Assembléia Constituinte em 1999, e todo este processo de mudança, todos nós na esquerda progressista e radical decidimos colocar um esforço tremendo para destruir o poder na CTV no movimento trabalhista. Queríamos defender os interesses dos trabalhadores e o processo revolucionário.

Assim, decidimos que continuar a trabalhar por meio da CUTV não seria a melhor maneira de contribuir para essa renovação do movimento trabalhista, mas, ao invés disso, deveria ser criada uma nova corrente sindical que operaria em espaços mais amplos. Então criamos esta nova corrente, e desativamos, ou deixamos suspensa, a CUTV.

Isso é parte da estória de como eu me formei politicamente, Hoje, sou membro da liderança provisória da nova confederação trabalhista, Unión Nacional de Trabajadores (UNT). Ainda não houve eleições.

Trabalhamos bastante para que a UNT regulasse suas funções básicas, de modo que se tornasse uma autêntica central trabalhista, com capacidade de luta, união e mobilização dos trabalhadores – de modo que seja independente do estado, do partido e dos patrões.

E, juntamente com outras correntes, conseguimos alcançar algum nível de reativação da UNT. Estamos capacitados a promover um congresso nacional no qual finalmente transcenderemos as divisões. É normal e inevitável que haja conflitos internos, o problema é quando esses conflitos se tornam paralisantes, divisores e destrutivos.

No passado, este tipo de divisão destrutiva esteve claramente evidente na UNT. Não sei o quanto você está ao par disso.

Pode nos falar sobre os acontecimentos que levaram à derrocada da UNT?

A UNT tinha o que se pode chamar de um defeito de origem. A UNT foi criada de modo muito burocrático, com pouco debate entre os próprios trabalhadores, e com pouca participação dos trabalhadores. Foi basicamente criada de cima, sendo essencialmente produto da vontade de alguns lideres.

A primeira liderança da UNT foi simplesmente determinada de cima. Não foi produto de consultas às bases. Não havia eleições. As posições eram simplesmente distribuídas. Portanto, nesta primeira fase, nós [a CCT] decidimos não participar da UNT, porque este tipo de prática não era válida. Nossas ações tinham que acompanhar nossas palavras. Se estávamos promovendo o sindicalismo democrático – não apenas uma democracia formal mas uma democracia de classe – se queríamos um sindicalismo que rompesse com os esquemas burocráticos e elitistas do passado, característicos da velha CTV, não deveríamos participar da UNT da forma em que ela estava inicialmente se formando. Queríamos criar um sindicalismo que acenderia uma nova esperança para os trabalhadores venezuelanos, e isso não iria acontecer com as características que a UNT mostrava no início.

O primeiro congresso da UNT, por exemplo, não foi um congresso autêntico porque não haviam delegados eleitos. Não houveram documentos preliminares submetidos ao debate. Havia basicamente um consenso de que a primeira tentativa era problemática, então um segundo congresso foi realizado em 2006, a fim de debater realmente o projeto, os estatutos e os princípios da central dos trabalhadores.

O segundo congresso foi um desastre, entretanto, que acabou em golpes. O descontentamento tinha sido alimentado por muito tempo. As diferentes facções viam a UNT como “sua” organização, e tratavam outras facções como inimigos irreconciliáveis. A situação era ainda mais lamentável dado que havia representantes internacionais do movimento trabalhista presentes ao congresso.

Participei do congresso como convidado. Na época estávamos num período de transição, tentando nos unir à UNT. Mas não havia ninguém para conversarmos. Se se queria falar com a UNT, tinha-se que falar com todas as diferentes tendências separadamente, já que não havia liderança.

O congresso fez com que uma das correntes mais importantes, a Fuerza Bolivariana de Trabajadores (FBT), deixasse a UNT, junto com a corrente trotskista liderada por Orlando Chirino, e várias outras correntes, dividindo o movimento trabalhista.

A FBT é uma das mais importantes – embora problemática – correntes no movimento trabalhista venezuelano porque foi o instrumento sindical do Movimiento Quinta República, a organização política de Chávez na época. Depois de sua separação, a FBT começou o trabalho de construir uma central de trabalhadores inteiramente nova e diferente, sobre a qual eles queriam controle total e incondicional. Essa nova central, que eles chamaram de Central Socialista de Trabajadores ( CST) não foi constituída na prática.

A nova central proposta seria uma ameaça ao movimento trabalhista independente, porque a FBT é contra qualquer confronto com o estado. O estado venezuelano continua a ser um estado burguês, ainda que tenha se submetido a algumas mudanças durante o período Chávez. Eles argumentam que o movimento trabalhista não deveria confrontar o estado porque o próprio estado ainda está em transformação. Sua falta de independência em relação ao estado tem sido manifestada várias vezes. Por exemplo, durante a greve da Sidor (Siderúrgica de Orinoco C.A.), a FBT defendeu os patrões e abandonou os trabalhadores, Fizeram isso abertamente. Neste período, o ministro do Trabalho, Jose Ramón Rivero, um militante da FBT, tinha relações próximas com o governador Rangel Gómez no estado de Bolívar, onde se situa a Sidor. Gómez é totalmente direitista – apesar de ser ostensivamente parte do processo bolivariano, como muitos outros “no processo” ele está realmente à direita.

Então, Rivero tomou o lado da multinacional argentina proprietária da Sidor, contra os trabalhadores. E a FBT se alinhou com Rivero, deixando de mostrar o menor sinal de solidariedade com os trabalhadores que foram violentamente reprimidos pela polícia e pela Guarda Nacional.

Outro exemplo é a greve que ocorreu em 2009 na fábrica da Mitsubishi em Anzoátegui. Neste caso, houve um ataque da polícia aos trabalhadores, que resultou em duas mortes. E o Ministério do Trabalho deu luz verde para que a Mitsubishi demitisse 11 dos 15 líderes sindicais na fábrica, desestabilizando o sindicato. Um número desconhecido de trabalhadores também foi demitido. O objetivo do Ministério do Trabalho e da Mitsubishi era destruir a capacidade de resistência do sindicato. Ao invés de ficar ao lado dos trabalhadores, a FBT condenou o sindicato, dizendo que ele estava cheio de anarquistas que sabotaram a companhia. Em nenhum momento expressaram solidariedade aos trabalhadores, ou questionaram a posição tomada pela companhia, ou os horríveis assassinatos de trabalhadores que aconteceram. Nem rejeitou ou condenou os disparos feitos a líderes sindicais e outros trabalhadores.

Dados esses fatos, como deveríamos trabalhar com esta corrente sindical? Ela deve ser derrotada. Então, com todos os problemas evidentes na UNT, não obstante é essencial que trabalhemos em construí-la, de modo a que ela se torne um instrumento autêntico para os trabalhadores, com independência dos patrões, do estado e do partido.

O Partido Comunista, e a corrente que o representa na UNT, tem feito várias propostas, que estão em discussão com as bases, numa tentativa de criar conscientização, entre os trabalhadores, sobre seu papel na sociedade. Temos defendido o estabelecimento de conselhos socialistas dos trabalhadores. Há também uma proposta de lei em defesa desta posição, atualmente sob deliberação da Assembléia Nacional.

O outro problema com a UNT desde o início foi a proposta para o extremo oposto do sindicalismo horizontal, sob o qual ninguém teria responsabilidades de liderança; todos patrocinariam igualmente a UNT. Nós [a CCT] nunca concordamos com isso, também. E, felizmente, desde que nos unimos à UNT combatemos esta idéia através da luta e do debate aberto.

Não concordamos com o horizontalismo porque um movimento sindical tem que ser um instrumento de combate, de luta. Deve ter a capacidade de responder, e de manter a unidade. No período em que não houve qualquer liderança, e todas as seções na UNT eram iguais, cada um dos coordenadores falava por si mesmo como se estivessem falando pela UNT. Assim um representante da UNT diria alguma coisa, e outro líder o denunciaria. Isso era absurdo. Tornou impossível a construção de um movimento sindical efetivo e de largo alcance. Tornou-se uma situação de permanente confronto, e gerou conflitos irreconciliáveis. A UNT acabou destruindo-se a si mesma.

É verdade que hoje na Venezuela existe uma democracia participante e protagonista, sem dúvida, mas isso não nega a representação – seja ao nível do estado ou em organizações sociais. Por exemplo, quando uma comunidade elege um porta-voz para seu conselho comunitário estão elegendo um representante que está subordinado à soberania e vontade das decisões populares através da assembléia comunitária. E é assim que deveria ser. Mas deve ser entendido que esta é uma forma de representação. Em resumo, necessitamos de representantes, mas não de representantes que usurpem o poder da coletividade. Representantes que expressem as posições a que o debate entre as bases chegou, através de mecanismos estabelecidos na assembléia da UNT.

Agora que esta orientação horizontalista foi derrotada, os debates e lutas atuais giram em torno das diferentes correntes que tentam consolidar mais influência e liderança dentro da UNT. Isto é normal e não deve ser visto como problemático. Só se torna um problema quando a luta por liderança termina por destruir a própria organização

Qual tem sido o papel do movimento trabalhista no processo?

A fraqueza mais importante do processo revolucionário na Venezuela atualmente é a ausência de um movimento trabalhista protagonista, com independência, com força, com propósitos, com suas próprias exigências. Ainda se necessita construir um movimento de trabalhadores com objetivos revolucionários – sem que se renuncie à importância das exigências por reformas.

Há revolucionários em todos os setores do movimento trabalhista, tal como em Guayana. Há muitos sindicatos conduzidos por reacionários ou reformistas, mas a base dos trabalhadores em Guayana tem feito grandes avanços em sua conscientização. Através do Plano Socialista para Guayana tem havido uma experiência de gestão direta por trabalhadores nessas empresas, determinando como os trabalhadores controlarão os meios de produção.

Os trabalhadores do setor petrolífero também avançaram, mas ainda há uma grande influência da burocracia. As correntes revolucionárias no setor petrolífero ainda são fracas. Muitos diriam, “sim, estamos com Chávez, estamos com o processo”, mas eles não se perguntaram qual é o papel transformador dos trabalhadores no processo. Você está com Chávez porque ele está aumentando seus salários e melhorando as condições de trabalho em seu setor, ou você está com Chávez porque vamos abolir o modo capitalista e produção e construir o socialismo?

Ainda que haja alguns bolsões de atividade, muitos dos sindicatos atuais na Venezuela se descrevem como bolivarianos, revolucionários e mesmo socialistas, mas são reformistas na prática. Esses sindicatos, portanto, não vêm seu papel na sociedade como transformadores da mesma e dos meios de produção, mas simplesmente como obtenedores de melhorias econômicas pouco significativas para os trabalhadores, melhores salários e contratos coletivos para seus membros. Eles não vêm seu papel como lutadores pela transformação.

Este é um grande problema de temos que enfrentar, já que a ausência de um movimento como este [sindicato revolucionário] permitiu que outros setores sociais, outras classes sociais tivessem influência no processo revolucionário. Estes setores têm conflitos específicos com o imperialismo norte-americano, com as transnacionais, mas também se opõem ao socialismo. A burguesia nunca será favorável ao socialismo, assim como a pequena burguesia. Há, naturalmente, indivíduos da burguesia ou pequena burguesia que apoiarão os objetivos de construir o socialismo, mas eles são exceção. Como classes, como instrumentos sociais, essas classes irão defender seus interesses – suas posições e privilégios – e esses interesses são evidentemente contraditórios com os interesses da classe trabalhadora.

A pequena burguesia capturou o controle da maior parte da administração pública e das empresas estatais. E assim temos essas camadas controlando a administração pública, sem qualquer tipo de controle social ou trabalhista e da comunidade, na indústria petroquímica, as empresas estatais em Guayana, e assim por diante. E eles agem no seu próprio interesse, através de mecanismos de corrupção, acumulando riquezas e recursos econômicos. Obviamente, este setor não promoverá a submissão dessas empresas ao controle social, no qual só teriam a perder.

O Presidente Chávez, especialmente nos últimos dois anos, tentou mudar a economia, o modo de produção e a forma de estado. Mas o problema é que se esses objetivos não forem assumidos com força, paixão e inteligência pelos próprios trabalhadores, a burocracia na administração pública – a pequena burguesia que tem controle sobre partes importantes do estado venezuelano – impedirá a consecução desses objetivos.

Se uma empresa é nacionalizada e depois gerida da mesma forma que uma empresa privada antes dela, os trabalhadores não sentirão que este é um projeto deles. Acontece freqüentemente que os chefes nas empresas públicas cometem contra os trabalhadores tantos abusos quando os chefes privados. Obviamente, esta situação não é automaticamente resolvida pela nacionalização. Somos favoráveis à continuidade das nacionalizações que têm ocorrido, e que continue esse processo de expropriações, mas as contradições têm que ser admitidas.

Por exemplo, apoiamos o movimento do governo de expropriar alguns dos monopólios que atualmente controlam a produção de alimentos no país, como a Polar. Mas o problema é que as empresas do estado que foram criadas para produção e distribuição de alimentos atingem apenas uma pequena proporção das necessidades nacionais. Não superamos a extrema dependência de importação de alimentos, Então há ainda um pequeno grupo de empresas que controlam aproximadamente 80% do alimento produzido no país, assim como o do alimento importado.

A única maneira pela qual o governo pode assegurar que esses pequenos grupos não usem seu poder para especular, e para se engajar politicamente de maneira contra-revolucionária, é através da expropriação.

Estamos propondo a nacionalização dos bancos, de modo a que os interesses privados não controlem o acesso aos recursos financeiros, e de modo a que esses recursos possam ser usados para fortalecer os setores produtivos fundamentais da economia.

Estamos ainda pedindo por nacionalizações mais profundas e de maior alcance, que incluam novas formas de gestão, envolvendo controle coletivo sobre a tomada de decisões. Precisamos nos mover além da estatização e em direção à socialização dos meios de produção. O problema é que os setores que eu mencionei – a burguesia e a pequena burguesia que o controlam – resistem a esta transição. Eles dizem “Certo, vamos nacionalizar as empresas, mas nós próprios as controlaremos”.

Esta é a contradição fundamental num nível geral que não será resolvida em favor dos trabalhadores, numa direção socialista revolucionária, sem um movimento trabalhista como o que eu sugeri que exigíssemos. É por isso que propusemos coisas como conselhos socialistas dos trabalhadores, e construímos um movimento de trabalhadores com orientação revolucionária, um movimento de trabalhadores que incorpore trabalhadores de setores públicos, privados e mistos da economia, e um movimento que incorpore todas as correntes que estão no processo revolucionário.

Qual é a relação entre os conselhos comunitários, de um lado, e o movimento trabalhista, de outro?

Há muito pouco relacionamento entre os dois. O movimento trabalhista é muito fraco para estabelecer relacionamento com as comunidades, que são parte importante do processo bolivariano.

Há entretanto exemplos isolados. Algumas comunas começaram a construir residências, por exemplo, e tentaram estabelecer relações com sindicatos da construção. Mas freqüentemente é um relacionamento muito complicado e conflituoso, porque os sindicatos da construção na Venezuela estão muito deteriorados. Alguns deles mal podem ser chamados de sindicatos, e seriam melhor descritos como máfias que controlam o acesso ao trabalho. Muitas vezes, os sindicatos tentam estabelecer controle sobre a comuna para determinar quem trabalha nos projetos de construção. Isso ocorreu quando as comunidades tentaram construir suas próprias escolas, clínicas médicas, centros esportivos e assim por diante. E criou-se uma dinâmica na qual as comunas tentam evitar relações com os sindicatos da construção. Porque, muitas vezes, os sindicatos da construção não atenderam os interesses nem dos trabalhadores nem da comunidade, mas apenas dos líderes sindicais.

Nossa posição, que expressamos a camaradas nos conselhos comunais e a trabalhadores da construção, é que os sindicatos existentes precisam se transformar para que possam trabalhar efetivamente com as comunas. Só o fato de os sindicatos serem hoje controlados por uma máfia não justifica uma perspectiva de oposição à sindicalização da indústria da construção em geral. Ter sindicatos é importante porque freqüentemente a infra-estrutura e a construção de moradias nas comunas é contratada fora – seja pela própria comuna seja pelo Ministério de Obras Públicas e Moradia – de empresas privadas. Então essas empresas privadas que possuem a maquinaria, tecnologia e recursos necessários tentam empregar trabalhadores ao menor custo possível a fim de lucrar o máximo possível, mesmo que isso signifique violação dos direitos dos trabalhadores. As comunas deveriam usar o trabalho sindicalizado, mas não há nenhum relacionamento planejado, organizado e político entre as comunas e o movimento trabalhista, o que é uma enorme fraqueza.

Para fins de esclarecimento, em sua perspectiva quais são as forças sociais mais importantes no processo bolivariano?

Há diversas forças sociais atuantes no processo bolivariano, como sugeri antes. A pequena burguesia tem a maior parte da influência no processo, setores progressistas da pequena burguesia na maioria dos casos, Esses setores foram radicalizados pela sua experiência com o neoliberalismo nos anos 80 e 90, quando setores da burguesia, a pequena burguesia e as classes médias foram jogadas em condições sociais de miséria, à medida em que eram substituídas por frações mais poderosas da burguesia.

Esta dinâmica foi o que ajudou a criar uma base muito grande para a oposição contra as políticas da AD e COPEI. E Chávez portanto recebeu um nível impressionante de apoio, e não apenas dos setores mais empobrecidos da população – camponeses, trabalhadores e o lumpen-proletariat – mas também camadas da classe média e da pequena burguesia.

Então, quando as discussões giram sobre a necessidade de que esse processo transite para o socialismo, as contradições sobem à superfície. Essas camadas da classe média, a pequena burguesia, e parte da burguesia nacional somente querem se fortalecer frente a fazer alianças com as transnacionais com apoio do estado venezuelano. E elas receberam esse apoio através das rendas do petróleo, Então quando forças populares exigem a socialização das rendas do petróleo, dos meios de produção e do processo político, esses setores armam uma oposição séria. Essa dinâmica cria uma situação contraditória.

No geral, quando olhamos o processo bolivariano, o setor com mais influência tem sido a pequena burguesia, tanto em seus componentes civis como militares. Há muitos oficiais comprometidos com a defesa do Presidente Chávez que são profissionais da classe média. Alguns deles constituem parte da pequena burguesia porque possuem alguma terra, e possuem propriedades.

A principal coisa a confrontar é que se não há qualquer comprometimento real com um novo modo de administração pública, um novo modo de gestão econômica, que é participativo e democrático e subordinado à vontade dos trabalhadores e das comunidades, essas contradições objetivas serão expressas.

Mas se não há posição clara sobre o papel do estado, as instituições e as empresas públicas, para revolucionar a forma de gestão e liderança, as contradições objetivas da situação continuarão a evitar o aprofundamento do processo revolucionário.

O que pode resolver esta situação? Um movimento trabalhista forte, em aliança com as comunas, pode levar o processo a uma direção revolucionária. Um dos obstáculos é que muitas das pessoas trabalhando com as comunas não partilham desta perspectiva. Elas vêem a formação dos conselhos comunitários meramente como um modo de atender exigências imediatas e de muito curto prazo das suas comunidades. Elas não vêem seu papel como transcendendo essas questões, como transformadoras da estrutura total da sociedade.

Os conselhos comunitários, os trabalhadores e os camponeses precisam confrontar os monopólios que ainda controlam grandes setores dos meios de produção, assim como a burocracia na administração pública. Se os conselhos comunitários são formados apenas para receber dinheiro do estado e para suprir necessidades básicas de suas comunidades, não desempenharão papel revolucionário.

Também é o caso de haver pessoas que trabalham através de conselhos comunitários para se apropriar do dinheiro que está vindo do estado e é destinado à comunidade. Isso explica porque em algumas comunidades há intensas lutas internas sobre quem controlará os recursos provenientes do estado. Esses conflitos são expressão de valores capitalistas residuais, e em particular de valores associados com um capitalismo passado que foi extremamente dependente do estado e da renda do petróleo. Essa tradição de luta por rendas petrolíferas gerou esses tipos de deformações e valores, que vão contra a produção, e gravitam, ao contrário, somente para capturar os recursos do estado.

Mudando de assunto por um momento, quais são os pontos fortes e fracos do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) como partido?

Começando com os pontos fortes, certamente há o caso de que Chávez e a revolução precisaram e ainda precisam de uma maneira de unificar indivíduos e correntes políticas que apóiam Chávez, e que não estão inclinadas a se unirem ao Partido Comunista da Venezuela (PCV) ou outros partidos existentes à esquerda.

Antes do PSUV, havia o Movimiento Quinta República (MVR), mas este não teve características de um partido. Foi fundamentalmente um instrumento eleitoral. Além disso, havia muitos movimentos fora do MVR que apoiavam o processo mas estavam isolados, e que estão agora integrados ao PSUV. Estes são desenvolvimentos positivos que permitiram, entre outras coisas, importantes vitórias eleitorais e políticas.

Mas as fraquezas do PSUV, do nosso ponto de vista, têm a ver com o fato de que é um partido policlassista que tenta juntar interesses de classe irreconciliáveis. Há indivíduos e setores dentro do partido afiliados a frações da burguesia urbana, assim como à classe de proprietários rurais, e fazendeiros. Há dentro do partido proprietários de pequenos, médios e até mesmo grandes empresas privadas. Esses setores coexistem com camponeses sem terra, trabalhadores, setores super-explorados da população, setores progressivos da classe média e intelectuais revolucionários.

Há portanto setores no partido cujos interesses os conduzem à necessidade de revolução e socialismo, e outros cujos interesses estão em manter o capitalismo, ainda que um capitalismo reformado. Todos esses interesses coexistem dentro do PSUV. Da mesma forma, há um nível similar de diversidade ideológica no partido.

Esta tensão interna e essas contradições permanentes tornam muito difícil para o partido organizar os setores populares e construir o socialismo.

Essas contradições internas se expressam em diferentes momentos, incluindo por exemplo os períodos eleitorais. Então temos representantes do PSUV que conquistaram prefeituras e governos que estão claramente alinhados com frações da burguesia e da pequena burguesia. E uma vez que conquistaram essas posições, eles usam seu poder institucional para realçar as contradições internas do partido. Isto é o que está acontecendo agora.

Quando efectuaram eleições internas, procederam precisamente como qualquer partido burguês faria. Cada candidato defende sua posição contra os outros, e quem quer que tenha mais dinheiro para promover suas causas através de propaganda e outros, ganha dos candidatos que não têm esses recursos. A ideologia do partido é também confusa devido aos interesses e correntes que competem, e assim por diante. Harmonizar e construir uma ideologia hegemônica dentro do partido é praticamente impossível.

Somos aliados do PSUV a despeito dessas fraquezas, desde que o partido tenha o apoio das massas, o que lhe permite vencer eleições. Ao nível eleitoral o PSUV conseguiu um patamar importante de eficiência. No momento atual, isso é uma necessidade.

Mas olhando além da conjuntura imediata em direção ao futuro, as fraquezas internas do PSUV podem muito bem colocar o processo revolucionário em risco.

Podemos ver que há uma nova contraofensiva do imperialismo que está sendo lançada na América Latina, com o golpe em Honduras, as novas bases militares dos EUA na Colômbia, a eleição do direitista Sebastian Piñera no Chile, as campanhas de desestabilização na Bolívia e no Equador, e assim por diante. Qual é a estratégia imperialista em relação ao processo bolivariano na Venezuela?

É evidente que há uma estratégia imperialista multifacetada contra a Venezuela. De um lado há uma estratégia para distorcer a opinião pública contra o processo revolucionário através da mídia privada mundial e dento do país. Os instrumentos de dominação ideológica são armas mortais, não somente contra a revolução venezuelana mas contra os processos revolucionários da América Latina. Eles estão continuamente gerando uma falsa imagem do processo – que Chávez é um ditador, que quer uma ditadura, que viola direitos humanos, etc, etc.

Nos últimos anos tem havido uma campanha de propaganda que diz que o Presidente Chávez apóia o terrorismo, e que o processo revolucionário está conectado ao tráfico de drogas. É o mesmo conjunto de instrumentos usado no passado contra outros processos revolucionários.

Este aspecto da estratégia imperialista não tem tido tanto êxito quanto se esperava dados os esforços nela investidos. Chávez provou ser muito ágil em construir relações internacionais diretas e de amplo alcance, o que tem ajudado imensamente o processo. Então esta campanha imperialista para manipular a opinião pública internacional está colidindo diretamente com a orientação internacional da liderança do processo bolivariano.

A outra possibilidade, além da campanha mediática para satanizar Chávez, é o ataque militar direto. Não podemos nunca excluir a possibilidade da ofensiva militar contra a Venezuela. Esta possibilidade está clara na construção de forças militares que praticamente cercam a Venezuela – na Colômbia há sete bases com presença militar estadunidense, eles mantiveram presença no Peru e Paraguai, e no Caribe com a reativação da Quarta Frota. Isso deve continuar a aumentar, porque não há nenhuma descontinuidade nos negócios externos do estado norte-americano ente Bush e Obama – talvez haja diferenças nas formas de diplomacia política, mas há uma profunda continuidade nos níveis de estratégias militares e econômicas.

Nunca tivemos ilusões de que a política externa de Obama seria diferente. O presidente dos Estados Unidos é um empregado do imperialismo, seja ele preto ou branco.

Além da estratégia da mídia e da elevação da presença militar norte-americana na América Latina, cercando a Venezuela, há ainda a estratégia de mover paramilitares da Colômbia para a Venezuela. O estado colombiano é um operador político contra os processos revolucionários na América Latina; foi ativado para este propósito. E, além do movimento dos paramilitares, há uma provocação política aberta contra a Venezuela, que pode se tornar uma provocação militar. A liderança colombiana sob a presidência de Juan Manuel Santos é uma ameaça porque ele pode provocar um conflito militar com a Venezuela a fim de justificar uma intervenção imperialista. Isto é perfeitamente possível.

Há também a estratégia da intromissão imperialista nas contradições internas do processo, por exemplo entre os militares da Venezuela. Os militares venezuelanos foram criados com a visão imperialista de que seu papel era policiar o país contra ameaças internas; há oficiais que se opõem ao processo e que ainda compartilham dessa visão. Naturalmente, eles foram substancialmente enfraquecidos, porque Chávez construiu as forças revolucionárias com os militares. Mas alguns oficiais dizem que estão com o processo mas estão esperando o momento oportuno para se reativarem. Esta é uma possibilidade muito real. Já tivemos a experiência da tentativa de golpe de abril de 2002. Pessoal militar que parecia estar ao lado do presidente foram os operadores por trás do golpe de estado. Então esta pode ser uma das linhas de ação das quais o imperialismo tenta tirar vantagem.

E, naturalmente, o imperialismo usa as forças internas de oposição na Venezuela para fomentar instabilidade de desestabilização econômica, para se envolver em especulações, e assim por diante. Sabemos que há contra-revolucionários ocupando posições no estado. Eles podem ser ativados em momentos oportunos, Os problemas que têm ocorrido na indústria alimentícia são provavelmente não o resultado de mera irresponsabilidade e corrupção, mas sim sabotagem intencional.

Todos esses componentes fazem parte de um conjunto de linhas de ação que objetivam enfraquecer o processo interno e fomentar um golpe de fora do processo.

Por estas razões é importante fortalecer a revolução. O papel do PSUV, a despeito de todas as suas fraquezas, será importante. Que o PSUV possa ativar massas populares nestes momentos será importante, para destruir quaisquer iniciativas contra-revolucionárias.

Temos argumentado, todavia, que a revolução pode se proteger por meio de uma união coletiva com sua liderança. Então Chávez pode se alinhar ao PSUV, mas também ao PCV.

É importante construirmos um tipo de frente abrangente, com liderança coletiva, de forma que Chávez possa liderar junto com o PSUV, o PCV e outros fatores da revolução que podem ser pequenos mas têm uma natureza revolucionária. Podemos estabelecer uma frente politico-social, para transformar o estado e neutralizar a contraofensiva dos inimigos deste processo.

Até o momento, não nos unimos nesta frente. Há unidade quando há eleições, mas não durante o resto do tempo. Esta é uma grande fraqueza do processo.

[*] Susan Spronk leciona na School of International Development and Global Studies na Universidade de Ottawa. É pesquisadora associada do Projeto de Serviços Municipais e publicou diversos artigos sobre formação e classes e política de águas na Bolívia. Jeffery R. Webber ensina política na Universidade de Regina. É autor de Red October: Left-Indigenous Struggles in Modern Bolivia (Outubro vermelho: As lutas da esquerda indígena na Bolívia moderna – Brill, 2010), e Rebellion to Reform in Bolivia: Class Struggle, Indigenous Liberation and the Politics of Evo Morales (Rebelião para reformas na Bolívia: A luta de classes, a liberação ondígena e a política de Evo Morales – Haymarket, 2011).

O original encontra-se em http://www.socialistproject.ca/bullet/394.php. Tradução de RMP.

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/venezuela/eusse_22jul10_p.html