Denunciar a guerra do opressor e não homenageá-la

Entre tudo que pode haver de estranho em um regime que se proclama democrático, vale destacar as homenagens. Acredita-se que a democracia eleja homenagear quem teve o mérito de por algum viés da vida pública dedicar-se ao debate livre entre as diversas frentes de uma sociedade, o que, sobretudo, inclui dar ouvidos às frentes populares, àquelas frentes das classes trabalhadoras que buscam equalizar a vida comum. O equilíbrio da vida comum inclui a garantia de direitos gerais de acesso ao patrimônio público e aos valores identitários de um todo geopolítico – no caso brasileiro, tanto o país, quanto um estado e um município –, bem como dos nichos sociais. Bem se sabe que o acesso a tal patrimônio e tais valores é regulado, controlado e vigiado pelo poder político e econômico dominante, poder esse que cerceia quem e classes que não lhes integram e que não respondem de modo submisso a suas leis gerais. Nisso, se há homenagens e devem ser feitas, o poder político e econômico dominante não as faz a respeito de quem tem mérito quanto à democracia, mas a quem tem mérito quanto ao que lhe representa.

Em Goiânia, mais de cinquenta anos depois do conhecido Golpe Militar que sequestrou a democracia no país, o articulador desse golpe e primeiro presidente do regime instalado, a Ditadura Militar, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, ainda persiste gravado na memória da cidade na avenida que apresenta seu nome, a conhecida Castelo Branco. Esse presidente, militar jamais responsável por obra relevante ao patrimônio nacional, arbitrário e violento, autor da destituição do governador eleito do estado de Goiás, Mauro Borges, é nome da antiga Avenida Maranhão, nome muito mais devido, ainda que não necessariamente próprio ao município de Goiânia. Enquanto circulou em sua segunda edição, a moeda Cruzeiro, do padrão transitório Cruzeiro Novo, de maio de 1970 a fevereiro de 1986, trazia como esfinge na cédula de Cr$ 5.000,00, o rosto do Marechal Castelo Branco. Iniciado o período democrático, em diversas instâncias, como essa, tal homenagem foi anulada. Sabe-se, anular jamais apaga a história, e esta, decerto, não deve ser apagada, para que nos lembremos de quem nos oprimiu, de quem sequestrou a democracia, bem como para que nos lembremos de quem batalhou por ela.

É premente que se anule de Goiânia, capital deste estado, Goiás, que diversas vezes teve participação no processo democrático do Brasil – a exemplo das primeiras manifestações eclodidas em meados de 2014 pelo passe livre no sistema de transporte público, de interesse, como é próprio da democracia, de equalizar a vida comum, tornando-a isto: realmente comum, pois um povo socialmente organizado deve ser uma comunidade, jamais um bojo de marionetes a serviço do poder político e econômico dominante. A professora e vereadora Marta Jane, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), bem como toda a militância deste Partido, onde me incluo, propõe mudar o nome da Avenida Castelo Branco para Avenida Bernardo Élis. Este goiano, à parte de ser o primeiro e único cidadão do estado que teve cadeira na Academia Brasileira de Letras, integra diversas antologias do conto no Brasil, a exemplo da Antologia do Conto Brasileiro Contemporâneo do renomado professor e crítico literário Alfredo Bosi, da Universidade de São Paulo (USP). Dotado de intensa, sensível e perspicaz competência estética verbal, o contista e romancista Bernardo Élis captou a vida goiana rural e do interior do estado, dando a saber das origens e formação desse povo, como os demais, cerceado pela brutal força militar que se instalou no país em 1964 e se manteve até 1985.

A iniciativa da professora e vereadora Marta Jane tem o interesse de trazer para Goiânia muito mais do que uma homenagem, mas a recordação vital e permanente de um escritor atento à vida do povo, escritor de ouvidos cuidadosos aos falares goianos de antes e de sua época. Lembremo-nos que em sua obra mais destacada, o romance O tronco, Bernardo Élis narra a respeito da violenta disputa pelo poder entre fazendeiros latifundiários do sul de Goiás no início do século XX. Além de a proposta de Marta Jane cobrar do poder público goianiense a recordação vital e permanente de Bernardo Élis, cobra também que o povo de Goiânia, bem como de Goiás, passe a olhar para quem lhe deu ouvidos, para quem foi seus atentos olhos e ouvidos, no caso, postos á escrita, como também foi o caso do historiador Horieste Gomes, e também da poeta Leodegária de Jesus, primeira mulher a publicar um livro de poemas em Goiás, em 1906. Sobre esta poeta, vale acrescentar, prestou-se a Universidade Federal de Goiás (UFG), ao reabilitar sua gráfica de linotipos em 2014, a publicar seu livro Orchidea, de 1928. Observe-se, ainda de iniciativa da Universidade Federal de Goiás, no ano de comemoração dos 50 anos da Faculdade de Letras, esta unidade acadêmica inaugurou seu segundo bloco de atividades com o nome deste escritor aqui reclamado, Bernardo Élis.

É possível imaginar-se algumas adversidades à proposta, caso o poder público não seja sensível e seja pouco ou nada inteligente, pois haverá quem possa dizer: “O povo já está acostumado a chamar a Avenida Castelo Branco por esse nome e ninguém se lembra da Ditadura Militar.” Importante frisar: lembra-se, sim. À parte a revolta pública dessas ou daquelas classes sociais sobre o atual governo Dilma (Partido dos Trabalhadores – PT), é crítico, grave, aliás, crônico o perigo de erguer-se cartazes, placas e faixas a respeito do retorno do Regime Militar ao Brasil, ou seja, do retorno a um regime sequestrador da democracia. Nenhum compromisso político, partidário nem ideológico tem o PCB com o PT nem com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). A militância comunista tem compromisso com a democracia, com o bem comum popular, com as frentes populares que vêm sendo criminosamente cerceada, reprimida violentamente por dedicar-se à equalização da vida pública. Sim, é fato, o povo está acostumado a chamar a referida avenida de Castelo Branco, mas pode muito bem desacostumar-se, como foi o caso da antiga Avenida Z, hoje Avenida Ismerino Soares de Carvalho, prefeito de Goiânia entre 1945 e 1947. Se os nomes vão em vêm, assim como se o povo precisa empregá-los e, logo, com eles se acostumar, faz muito mais sentido, é muito mais vital e inteligente que uma mudança dessa ordem atenda a Bernardo Élis, legítimo representante da voz goiana, do que ao arbitrário usurpador do poder público brasileiro, o Marechal Costa e Silva.

Em tempos em que o Brasil cada vez mais toma consciência sobre a relevância patrimonial da Literatura para a formação do povo, bem como diversos agentes não-governamentais e diversas iniciativas se voltam para as políticas públicas sobre a necessidade cada vez mais ampla de acesso ao livro literário por parte do povo, é fundamental a mudança de nome da Avenida Castelo Branco para Avenida Bernardo Élis, pois ao povo, bem como à humanidade, é mais próprio lembrar-se daquele que denunciou a crueza da guerra, do que daquele que a praticou, que a tornou um exercício constante de gestão pública, que, de resto, como bem se sabe, terminou por afundar o país em duas décadas de opressão, cujas consequências ainda sofremos.

(Jamesson Buarque, professor da UFG e vice-diretor da Fac. de Letras)

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