Sai da concha e mostra toda a tua garra
(Falsa Tartaruga, personagem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll)
Jacques Gruman
Um filmete gravado na praça Vermelha, em Moscou, registrou a celebração pelo 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial(1). As lágrimas do público simbolizam o que significou a invasão nazista na União Soviética. Dezenas de milhões de mortos (os eslavos estavam numa das escalas mais baixas dos dogmas raciais do nacional-socialismo), milhares de cidades e aldeias varridas do mapa, escravização maciça de cidadãos soviéticos para trabalharem nos projetos megalomaníacos em Berlim, assassinato sistemático de quadros do Partido Comunista, extermínio da população judaica. Hitler planejava transformar Moscou numa grande represa. Apesar das condições extremamente adversas, foi em território soviético que começou a grande reação que terminou com a derrota do nazifascismo. Stalingrado ainda vibra nos corações de quem não se rendeu ao revisionismo histórico, que canoniza líderes ocidentais que flertaram com o nazismo antes da guerra e omite o papel decisivo do Exército Vermelho. A bandeira vermelha tremulando sobre as ruínas do Reichstag é uma imagens mais fortes do século vinte.
Olhando o espetáculo belo e majestoso representado na praça Vermelha, pensei como cada geração paga tributo por referências espectrais. Se cruzássemos com um irlandês no século dezenove, estaria na ponta da língua a chamada Grande Fome, que enxotou centenas de milhares de compatriotas para fora do país e matou outros tantos. Um país miserável, superpovoado, fortemente dependente da produção de batatas, foi dizimado por um fungo que eliminou a fonte de renda e sustento de boa parte da população. Isso não se apaga quando morre o último faminto. Já um bessarabiano, no imediato pré-Primeira Guerra Mundial, devia estar pensando nos destinos possíveis para fugir da miséria crônica. Levas pegavam navios para testar o Sonho Americano. Era, por exemplo, o que aconteceria com meu avô paterno, caso não tivesse tido uma emergência ocular de última hora, que o impediu de embarcar. Ativou o plano B e foi dar nas costas baianas. O resto é (a minha) história.
A Segunda Guerra Mundial teve dimensão tamanha que vazou para mais de uma geração. Até hoje continua a busca por imagens e narrativas que se incorporem à já monumental produção fotográfica, cinematográfica, ficcional, acadêmica e documental da época. A impressão que tenho é de que essa pesquisa não cessará tão cedo. São tantos os fantasmas que assombram sobreviventes e seus descendentes, que há uma corrida recorrente em busca da memória e de sua preservação. Não esquecer virou um imperativo. Não faz muito, foi exibido um documentário sobre como os nazistas lidaram com a música de Félix Mendelssohn. Se o espectador se abstrair da época abordada, a obra parece descrever uma ficção monstruosa. Mendelssohn foi um judeu alemão de família próspera. Integrado à sociedade alemã do século dezenove, converteu-se ao cristianismo para furar o bloqueio cultural e social que persistia contra os judeus. Acrescentou o sobrenome Bartholdy e compôs algumas das mais populares peças clássicas de seu período. A Marcha Nupcial ainda é executada em casamentos. Pois bem, os nazistas tiveram que enfrentar um dilema. Por seus padrões, Félix era judeu e, como tal, sua música não podia “contaminar os puros ouvidos arianos”. Sua obra foi proibida nos concertos das grandes salas alemãs. No entanto, como eliminar da tradição musical um compositor de tão forte raiz local ? A verdade é que tentaram, mas não conseguiram. Quer na clandestinidade (o maestro Kurt Masur conta que aprendia piano com as janelas fechadas, pois seu professor trazia partituras de Mendelssohn e executá-las podia dar cadeia), quer na impossibilidade de encontrar um substituto à altura (tentaram, em 44 inacreditáveis vezes, alternativas para a Marcha Nupcial nas apresentações shakespeareanas dos Sonhos de uma noite de verão; tudo em vão, o público rechaçava). Mais uma bela história de resistência.
Acho que minha geração convive com dois espectros. O primeiro é generoso, fraterno. Foi bem resumido pela intelectual argentina Beatriz Sarlo, que está lançando o livro Viagens – Da Amazônia às Malvinas. As primeiras resenhas falam do despojamento de um grupo de amigos argentinos, que, nos anos 60, viajaram pela América Latina, travando contato com populações secularmente exploradas, com culturas ignoradas, com um ímpeto revolucionário que parecia invencível. “Conhecemos uma América Latina épica, muito diferente da que existe hoje”, diz Sarlo. “Éramos populistas sentimentais”, acrescenta, com boa dose de humor e, diria eu, de rigor portenho. A narrativa faz lembrar as viagens de motocicleta do Che Guevara na década anterior. Era uma juventude em busca de uma utopia construída a partir das populações exploradas e excluídas. Dos invisíveis na História oficial. Onde estará este sonho ?
O segundo foi verde-oliva. O golpe de 1964, mais do que abortar um programa de reformas, reduziu drasticamente a participação da política no cotidiano. As consequências ainda estão por aí. A truculência produziu tortura, desterro, mentiras, morte. Os “revolucionários” de fancaria insistem em negar a prática sistemática de torturas. Calam-se sobre a colaboração entre as ditaduras irmãs, que constituiuuma multinacional do terror. Boicotaram o trabalho das Comissões da Verdade. Pensam que cinco décadas é uma eternidade, suficiente para jogar uma pá de cal no “passado”. O general Leonidas Pires Gonçalves morreu no dia 4 passado. Foi saudado por Sarney como um grande homem. Certa vez, falando sobre a ditadura, a quem serviu fielmente, o militar sentenciou: “Não entendo porquê se discute tanto uma coisa do passado, há 50 anos. Você quer parar o país por causa de quatro, cinco mortos ? Eles ganharam no tapetão. Não querem falar da subversão de esquerda”. Infelizmente, os que “ganharam no tapetão” ainda choram mortos sem corpos, tratam de feridas que teimam em não cicatrizar. A sociedade brasileira tem memória curta. As conclusões da Comissão Nacional da Verdade provocaram impacto durante não mais do que um mês. Cópias do relatório final já devem estar cobertas por uma fina camada de pó. Vitória póstuma do general Leonidas e de todos os que, civis e militares, cultivaram o espectro da burocratização da política, traíram o povo brasileiro, empurraram uma geração para a apatia e o cinismo. Está dando um trabalhão virar o jogo.
1. https://www.youtube.com/watch?v=53DyhoxqB48