Haiti: saída das tropas da ONU não significará fim da opressão ao Haiti

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“O fim da Minustah não significa o fim da ocupação econômica e, suspeito, militar, no Haiti. Ela [ocupação imperialista], provavelmente, vai ter uma outra forma, se, de fato, a Minustah acabar mesmo”, explica o historiador. A razão são os interesses das transnacionais presentes em solo haitiano, que se beneficiam da legislação frouxa e da instabilidade política no país.

“Situações como essas são produzidas pela ganância de empresas, como a Levis, a Disney, a brasileira Coteminas [produtoras de vestuário], Halliburton, entre outras, que querem pagar salários baixíssimos, os mais baixos do continente americano, para continuarem mantendo suas margens de lucro”, assinala Sá.

A real solução para a instabilidade no Haiti passa pela política, e não pela intervenção militar, defende Borba de Sá. “A solução para o colonialismo não passa pelo colonizador, nunca passou […] O povo deve ter a chance de acertar suas contas com sua própria elite, e não tem tido essa chance por conta da ocupação das tropas estrangeiras.”

AditalAdital: Como vocês, representantes dos movimentos sociais contra a ocupação da Minustah, receberam a decisão do governo brasileiro de retirar suas tropas do Haiti?

Essa decisão não chegou a pegar a gente de surpresa porque existem muitas disputas dentro do governo, dentro das próprias forças armadas, nas esferas internacionais, nas Nações Unidas, sobre a continuidade da missão no Haiti, porque ela é um fracasso retumbante. Em todos os sentidos, mas, principalmente, no objetivo que ela se propôs a cumprir: democracia. Hoje, [a Minustah] é uma ocupação que legitima um presidente que está atrasando por mais de um ano as eleições, para poder governar sozinho por decreto. Ou seja, do ponto de vista institucional, político, ela veio com um mandato de ajudar na realização de eleições e, hoje, atrapalha. Em relação aos direitos humanos, ela veio para proteger esses direitos, mas os viola, um grande fracasso neste sentido também.

Então, a saída da Minustah representará o fim desses problemas para o Haiti?

Minha expectativa é que, se a Minustah acabar de verdade, alguma outra “solução” de força vai vir para substituir esse lugar, porque os interesses econômicos dependem de uma situação de caos constante, que joga para baixo o preço da mão de obra, dos recursos naturais, lucrando assim muito com a pobreza, a desgraça, o sofrimento.

Não, de modo algum, infelizmente. Claro, [a retirada] é uma vitória e eles, nessa decisão, certamente, acusam essa pressão política que a gente [movimentos sociais] vem realizando há muito tempo, mas, certamente, não é uma decisão tomada para reverter a opressão. Por exemplo, não tem nenhuma avaliação crítica da ocupação. A missão cumpriu seus objetivos? Estão saindo porque realizaram o proposto inicialmente? Estão saindo porque assumiram o fracasso? O mínimo que se esperaria é que quem inventou essa intervenção militar explicasse porque está terminando, não simplesmente deixe-a discretamente, melancolicamente, terminando aos poucos. Já foi levantado aqui, hoje, [durante o “Seminário nacional sobre o Haiti: construindo solidariedade”, em maio último, em São Paulo] que esse prazo de mais de um ano é necessário para fecharem todos os contratos que ainda não foram fechados, ou seja, privatizar tudo que dá para ser privatizado ainda no Haiti, vender para as companhias estrangeiras as terras e os direitos de exploração ainda não outorgados… Então, a gente vê com muita preocupação o futuro do Haiti pós Minustah. Não que a gente queira a Minustah, evidentemente, vamos acompanhar a retirada das tropas, mas porque a gente não acredita na benevolência desses que são os mesmos atores que criaram essa situação.

O exército haitiano existe, é um problema e sempre foi. Um exército que foi dominado pela elite branca francesa durante muito tempo, por isso que até os próprios ditadores haitianos durante o século XX, François Duvalier e seu filho [Jean-Claude Duvalier], criaram esquadrões paramilitares próprios para contornar o exército, porque não é um exército afeito nem a ditadores negros.

O próprio Aristide [ex-presidente Jean-Bertrand Aristide] dissolveu o exército haitiano nos anos 1990. Ele tinha sofrido um golpe desse exército, depois o dissolveu, uma atitude corajosa que deveria ser apoiada. A gente costuma apoiar a Costa Rica por ter dissolvido seu exército, mas ninguém falou nada do Haiti quando ele fez a mesma coisa. O problema foi a forma como foi tomada essa decisão, de cima pra baixo, sem plano de desmobilização. Foram criados “deuses da guerra”, locais, um ex-general, um ex-coronel, por exemplo, que têm pessoal, algum dinheiro e capacidade de criar milícias semiprivadas para vender proteção a quem pode pagar: as transnacionais, a elite haitiana… Ou seja, essa violência, esse caos que a imprensa brasileira retrata como um estado quase “natural” no Haiti, é criado deliberadamente, produzido ativamente.

A polícia nacional haitiana é formada, hoje, por reminiscências desse antigo exército dissolvido, esse exército rancoroso, golpista e colonial, que, agora, tenta juntar cacos e fragmentos para tentar construir uma força que possa atender aos interesses desse governo golpista que está aí sendo sustentado pela comunidade internacional há mais de 10 anos. Reprimem o povo haitiano, mas não conseguem porque é uma situação impossível, só uma grande força militar internacional é capaz de sustentar essa relação de exploração, que é insuportável.

Não acho que a solução seja polícia ou exército. A primeira solução é que os povos imperialistas deixem o Haiti, aceitem que o Haiti ficou independente 200 anos atrás, porque parecem não aceitar. O trabalhador e trabalhadora haitianos têm direito à soberania, a viverem uma vida sem a exploração das transnacionais, sem a exploração do agronegócio norte-americano.

O primeiro passo para se pensar no que fazer é pensar quem deve fazer. Serão esses mesmos atores? Essa chamada comunidade internacional, que está criando um problema a mais no século, utilizando o Haiti para seus próprios interesses econômicos e políticos? Não nos parece. A solução para o colonialismo não passa pelo colonizador, nunca passou. Os ingleses adorariam que sim, os franceses também. Hoje, os americanos [estadunidenses] e, infelizmente, às vezes, os brasileiros, parecem pensar da mesma forma, e a gente discorda completamente desse tipo de atitude.

Pelo que vimos até aqui, o problema e a solução para o Haiti passam, então, pela política.

Não há a menor dúvida. É, inclusive, importante lembrar que existe sim política no Haiti. Essa imagem que a imprensa brasileira passa, muitas vezes, de uma guerra irracional dos haitianos contra eles mesmos é uma construção mentirosa. O Haiti tem uma sociedade muito desenvolvida, tem uma sociedade civil organizada, robusta, com movimentos sociais, sindical, de mulheres, movimentos por direitos de toda forma, contra a ocupação estrangeira… É uma sociedade que produz bons economistas, bons historiadores, bons advogados, e que merece ser tratada como é, como uma sociedade. Que sim, possui conflitos políticos, mas que são fomentados de fora há muitas décadas, se não séculos. Essa sociedade precisa ter a chance de resolver seus conflitos políticos. Claro, a elite haitiana tem uma grande parcela nessa culpa, porque ela se associa ao capital estrangeiro para explorar o seu próprio povo. O povo deve ter a chance de acertar suas contas com sua própria elite, e não tem tido essa chance por conta da ocupação das tropas estrangeiras.

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