POR UM ESTADO LAICO
O vale-tudo eleitoral entre Dilma e Serra trouxe como um elemento definidor do voto de certas camadas da população, temas morais ancorados na fé religiosa. Destes, destacam-se a descriminalização do aborto e a aprovação da união civil de pessoas do mesmo sexo, utilizados inicialmente pelo comando de campanha tucano como forma de atacar a candidatura petista acusando-a de defensora de ambos os pontos. Com isso o PSDB visa um só objetivo: arrancar votos de Dilma junto a camadas conservadoras da população, como católicos tradicionais e evangélicos.
Em sua cruzada rumo ao Palácio do Planalto, Serra tem contado com o apoio de membros do clero católico e de pastores evangélicos. Estes, em cultos e missas, conclamam seus fiéis a não votarem em candidatos que apóiam os temas acima indicados, numa clara campanha contra Dilma. Altos membros da hierarquia católica são acusados de mandar imprimir panfletos apócrifos pedindo aos fiéis que não votem na candidata petista. Em algumas igrejas evangélicas pastores exibem vídeos onde aparecem procedimentos abortivos e ao final pedem que não seja dado voto aos candidatos que defendem tal “crime”. Em troca do apoio de líderes evangélicos Serra acena para algumas igrejas, no mais puro clientelismo, com a oferta de benefícios e vantagens, como parcerias destas com o Estado para prestar serviços de assistência social, como intermediárias do programa Viva Leite e facilitando o credenciamento junto ao Estado de creches dirigidas por evangélicos.
Dilma, demonstrando ter sentido o golpe baixo dos tucanos, rapidamente mostrou-se como pessoa que respeita o direito e a integridade da vida em toda a sua plenitude. Lançou carta dirigida aos evangélicos e católicos onde se compromete a não implementar qualquer medida em seu governo tendente a descriminalizar o aborto. Em resposta ao panfleto apócrifo dos tucanos, em algumas cidades circulam panfletos anti-Serra igualmente apócrifos que acusam ser o candidato tucano o responsável por legalizar, quando Ministro da Saúde no governo de FHC, procedimentos médicos destinados à realização de abortos dentro do marco exclusivamente legal – grave ameaça à vida da mãe e do feto e estupro.
Seria ingenuidade supor que religião e política são assuntos que não se misturam. As igrejas e as doutrinas religiosas que embasam suas crenças, não são a-políticas, estando ambas perpassadas pelos conflitos de classe presentes em um contexto histórico e social determinado. A história tem demonstrado que as doutrinas religiosas, formadas em alguns casos a partir de uma verdade revelada em um ou mais textos sagrados, tem sua leitura e interpretação feita a partir do olhar de quem as lê em um contexto histórico e social determinado. Nesse sentido, a história nos prova que as religiões sempre foram instrumentos políticos a serviço dos interesses das classes dominantes para explorar e enganar as massas populares. Só em circunstâncias muito especiais parte da Igreja, como ocorreu principalmente na América Latina com a Teologia da Libertação, exerceu um papel contestador das estruturas de poder e de dominação do capitalismo dependente, chegando até a apoiar movimentos armados de esquerda em luta contra a miséria e a opressão.
Mas no atual contexto histórico, onde o catolicismo e o protestantismo são fortemente influenciados por tendências fundamentalistas, o uso eleitoreiro de temas relacionados à questão da fé e das convicções religiosas, como o direito ao aborto e a legalização da união homo-afetiva, torna-se um sinal preocupante. Tanto Serra, ao apelar para o fundamentalismo religioso visando ganhar votos, como Dilma, ao ceder às pressões desse mesmo fundamentalismo para não perder votos, ferem uma das principais características do Estado moderno, herança das revoluções burguesas, que é a separação entre Igreja e Estado, com a afirmação do seu caráter laico. A burguesia, em seu papel revolucionário, considerou o poder político e o próprio Estado como emanação da vontade do povo e não de Deus. Essa separação foi um requisito necessário para a burguesia em ascensão derrotar as forças do feudalismo, incluindo a Igreja Católica, instaurando um novo modo de produção baseado na exploração do trabalhador assalariado juridicamente livre e na propriedade privada dos meios de produção. Desse modo, coube ao Estado burguês, em essência, garantir a igualdade jurídica dos cidadãos e o direito à propriedade privada. Assuntos relacionados à crença religiosa passaram a ser considerado de ordem exclusivamente privada, cabendo ao Estado assegurar a liberdade de opinião e de crença. Porém, assuntos religiosos jamais deveriam se sobrepor ou influenciar as decisões de Estado.
Mas para compreender o peso adquirido ou atribuído nessas eleições a temas relacionados à orientação religiosa, mobilizando um perigoso obscurantismo presente em certas camadas de católicos e evangélicos, será preciso entender o atual contexto histórico e social em que vivemos, não descolando o fenômeno do fundamentalismo de sua raiz social. Esta se localiza no atual estágio de barbárie capitalista vivida diariamente pela maioria da população. Os sofrimentos causados pelo capitalismo como o desemprego, a competitividade profissional, o individualismo exacerbado, a precarização, a falta de redes de assistência e de amplos serviços de seguridade estatais, o crescimento da criminalidade, entre tantos outros males que lançam parcelas consideráveis da população, especialmente o proletariado, em uma disputa selvagem pela sobrevivência, geram um ambiente de incerteza quanto ao presente, de insegurança quanto ao futuro e de profunda angústia existencial.
É desse contexto, de crise do modo de produção capitalista com suas conseqüências funestas para os trabalhadores, que muitas seitas e religiões de caráter fundamentalista engordam seu número de fiéis ao oferecerem uma salvação das dores e padecimentos telúricos pela via da fé. Porém, seu fundamentalismo se resume a assuntos de ordem moral, pois demonstram estarem bem antenadas com os valores de um capitalismo neoliberal que prega o sucesso individual e uma teologia da prosperidade capitalista, onde a fé em Cristo é o caminho mais curto para o sucesso profissional e material e prova dessa própria fé. Tais seitas, portanto, se apresentam como aparelhos ideológicos do Estado capitalista, ao apresentarem saídas e respostas individuais e alienadas aos problemas materiais causados pela crise estrutural do capitalismo, com seus reflexos no plano da individualidade e da sociabilidade.
A força de persuasão do fundamentalismo também é extraída da desarticulação das organizações de massa do proletariado e da diminuição na influência dos partidos socialistas e comunistas nas últimas décadas, herdeiros de uma racionalidade iluminista e únicos capazes de oferecer uma saída coletiva e racional para os problemas trazidos pela barbárie capitalista. Ambas são frutos da derrota sofrida pelos trabalhadores com a queda do socialismo no leste europeu e pelas mudanças observadas no mundo do trabalho nas últimas três décadas, com seus reflexos na desarticulação política e ideológica do proletariado. É nesse ambiente, marcado pela ignorância e preconceito, onde a irracionalidade e a força cega do mercado se manifesta no plano da sociabilidade com um irracionalismo cego e fundamentalista, que a elite política do capitalismo brasileiro em luta pelo controle do aparelho de Estado, como tem demonstrado Serra e Dilma, disputa seus preciosos votos.
Um grave problema nessa disputa eleitoral, portanto, é que Serra, ao se tornar porta-voz desses fundamentalistas religiosos, e Dilma, ao se mostrar permeável a tais pressões, sinalizam que o Estado brasileiro pode dar guarida jurídica e legal a todo tipo de discriminação, principalmente contra a mulher e os homossexuais, além de favorecer uma intolerância religiosa que já ocorre Brasil afora, contra religiões de matriz africana, como fazem algumas seitas evangélicas. Um outro problema é que assuntos de natureza religiosa, que deveriam se restringir à esfera exclusivamente privada, ganham relevo público servindo para dividir a população, principalmente os trabalhadores, onde o elemento definidor do voto e o próprio debate político se deslocam de propostas que no mínimo mitiguem as desigualdades sociais, para temas relacionados à vida privada que não mudam a vida do povo. Mais um problema dessa permeabilidade demonstrada por Dilma e Serra ao fundamentalismo religioso, é que ao cederem a pressão de setores militantes dessas seitas e religiões, desconsideram as opiniões de muitos crentes religiosos que adotam postura mais aberta e esclarecida em relação aos problemas trazidos pela contemporaneidade, bem como de uma parcela nada pequena da população brasileira que se declara agnóstica e em menor medida atéia.
Os comunistas têm uma visão materialista e dialética do mundo, não pautando nossas análises por critérios religiosos e metafísicos. Nossa atuação é tangida pelo propósito de transformar a realidade em um sentido progressista e revolucionário, visando acabar com a exploração do homem pelo homem e eliminar toda forma de miséria, seja ela do estômago ou do espírito. Reconhecemos a religião como um fenômeno social cuja prática, em toda a sua diversidade, deve ser respeitada. Porém, as crenças que ela envolve devem se restringir à esfera privada, não se misturando com assuntos de Estado e jamais orientando a ação deste, seja ele qual for. Nesse sentido, não apenas em uma sociedade socialista na qual os trabalhadores já tenham o poder em suas mãos, mas mesmo nas sociedades capitalistas, nos posicionamos pela defesa de um Estado laico onde não exista qualquer tipo de interferência da religião em seus assuntos e no delineamento de suas políticas públicas.
Diante desse quadro, os comunistas e lutadores populares têm um importante e difícil papel a cumprir. A defesa do caráter laico do Estado passa pela luta contra uma intolerância e um preconceito religioso que serve aos poderosos como meio de fragilizar, dividir e desorganizar ainda mais os trabalhadores. Isso exige uma disputa hegemônica, onde os valores socialistas sejam capazes de oferecer uma saída aos dilemas impostos à humanidade, superando as raízes sociais desse obscurantismo, cuja morada é a atual barbárie capitalista.
Campinas, outubro de 2010.
*Membro do Comitê Central do PCB