Diferentes estilos e uma mesma ameaça
Para compreender a natureza das diferenças e justificar a opção eleitoral entre as chapas Serra-Índio e Dilma-Temer às vezes se lança o expediente fascismo x socialdemocracia. Não é justo. Os fascistas, em toda a sua brutalidade e aversão à política, não tinham esse profundo horror aos pobres característico dos demotucanos, e os socialdemocratas sempre foram notórios reformistas e críticos do capitalismo, ao contrário dos lulistas-sarneyzistas.
PSDB e PT não encarnam esses papéis do corporativismo, de um lado, e das reformas sociais, de outro, pois ambos reproduzem a torto e a direito o consenso liberal de nossa época, fazendo do Estado brasileiro um grande parceiro e financiador das mega-corporações, do sistema financeiro e do latifúndio.
Mas há, realmente, trajetórias e estilos muito distintos, que justificam que estes dois campos não tenham ainda se fundido, e que justificam a periculosidade maior de um deles. De um lado, há os que simplesmente não dialogam com os movimentos populares, não colocam nenhum boné na cabeça e nem matam as bolinhas de papelsup>1 no peito – “eles que se explodam, bando de marginais e desocupados”. De outro, há os que fingem dialogar (Conferência Nacional de Comunicação, Plano Nacional de Direitos Humanos,…), por ações que simplesmente se evaporam diante do compromisso maior de não afrontar os poderes estabelecidos e nem criar outros.
Os governos de Getúlio Vargas, estes sim serão lembrados por terem explorado tanto elementos típicos do fascismo (1930 a 1945) como elementos típicos do reformismo progressista (1951 a 1954).
O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de censura e propaganda oficial do período de Estado Novo (1937-1945), assim louvava a superioridade do Brasil de Vargas:
Nos outros países, os operários obtiveram suas reivindicações sociais pelas lutas, lutando eles mesmos contra o governo, enquanto que no Brasil o presidente Vargas, espontaneamente, se pôs ao lado do operário brasileiro, para lhe oferecer uma nova situação – a revolução se fez nas camadas operárias, começada e desenvolvida pelo próprio chefe do governo.
(…) A legislação trabalhista – nascida do movimento de outubro [traduzindo, do golpe de 1930] – tem por objetivo substituir a noção de luta de classes pelo conceito orgânico de colaboração entre as classes2.
O pai dos pobres, que foi uma mãe para os ricos, conseguiu na década de 1930 instaurar uma paz de cemitério, reprimindo os sindicatos e demais organizações independentes dos trabalhadores, mas também assegurou alguns direitos que vinham sendo reivindicados por estes desde o início do século. A industrialização do país pôde crescer vertiginosamente sem os contratempos que os industriais teriam no caso de haver independência dos sindicatos e no caso de as velhas oligarquias do país não cederem alguns milímetros de seu poder. Já no início de seu governo, em 1930, o presidente havia prometido “disciplinar os fatores de produção”. E em 1941, em plena 2ª Guerra Mundial, expressou que essa disciplina almejada já seria um fato nacional:
Só os povos bem organizados, de vigilante espírito nacionalista, subsistem. E nós subsistiremos, porque estamos unidos, disciplinados e dispostos a quaisquer sacrifícios pelo Brasil.
A exatos dez anos depois, no início de seu outro período de governo, agora democrático, Vargas teve de governar sem os mesmos dispositivos de poder ditatoriais, sem controle da imprensa e de boa parte dos sindicatos. Aí então o apelo já não se fazia em prol da disciplina…:
É preciso, pois, que o povo se organize, não só para defender os seus próprios interesses, mas também para dar ao governo o ponto de apoio indispensável à realização de seus propósitos.
(…) Preciso de vós trabalhadores do Brasil, meus amigos, meus companheiros de uma longa jornada; preciso de vós tanto quanto precisais de mim. Preciso de vossa união; preciso que vos organizeis solidariamente em sindicatos; preciso que formeis um bloco forte e coeso ao lado do governo, para que este possa dispor de toda a força de que necessita para resolver os vossos próprios problemas. Preciso de vossa união para lutar contra os sabotadores para que eu não fique prisioneiro dos interesses dos especuladores e dos gananciosos em prejuízo dos interesses do povo. (…) uni-vos todos em vossos sindicatos, como forças livres e organizadas. As autoridades não poderão cercear a vossa liberdade, nem usar de pressão ou de coação. O sindicato é vossa arma de luta, vossa fortaleza defensiva, o vosso instrumento de ação política. Na hora presente, nenhum governo poderá subsistir, ou dispor de força eficiente para as suas realizações sociais, se não contar com o apoio das organizações operárias.
Neste mesmo ano de 1951, Vargas reage às acusações de que ele estaria incitando o povo à desordem:
Meus propósitos foram sempre o equilíbrio social, a harmonia dos interesses entre classes produtoras e classes trabalhadoras [sic], a concórdia política e a justiça na distribuição dos bens e das riquezas da coletividade. Não preciso incitar o povo à reação nem açular à violência porque o povo sempre sabe quando deve agir e contra quem deve fazê-lo.
Dois anos depois – um antes de se matar – Vargas seguiu apostando no poder de resistência do povo, apelando para a sintonia do governo com os interesses dos trabalhadores:
Hoje, essa legislação [trabalhista], que permite a harmonia das classes, é o vosso patrimônio precioso. Saberemos defendê-lo para vós e aumentá-lo para os vossos filhos.
Vargas faz do receio popular em perder os direitos trabalhistas conquistados, assim como do potencial de organização popular, verdadeiros trunfos na manga para fazer pressão sobre os outros poderes. Sua política reformista, mesmo que vacilante, se chocava com os interesses de setores políticos e empresariais ultraconservadores, imperialistas e pró-imperialistas, que a partir daí começaram a trabalhar com a perspectiva de uma configuração de poderes em que não houvesse mais pressões das fábricas, do campo, das ruas ou do palácio presidencial. Estes que se bateram pelo direito de desenvolver a economia do Brasil de forma ainda mais integrada ao “primo” EUA foram os vitoriosos com o suicídio de Vargas em 1954 e com o golpe militar realizado dez anos depois.
Mas tendo tudo isso acontecido em nossa história, ainda assim o risco de que o povo desperte de seu sonho intenso é sentido pelas elites brasileiras. De modo que parece necessário ao candidato a vice pela chapa da situação, Michel Temer, retomar o discurso de harmonia social, e com diferenças muito chocantes:
O Brasil é um país seguro para investimentos, porque vive um momento de pacificação social e segurança jurídica. Falo de um Brasil pacificado internamente. Se os movimentos sociais não estiverem pacificados, se os setores políticos não estiverem pacificados, se os setores financeiros não estiverem pacificados, se aqueles mais pobres não estiverem pacificados, se a classe média não estiver inquieta, isso gera uma insegurança que é prejudicial” (Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2010, caderno A, p. 8).
Podemos ver que os estilos destoam completamente. Já as ameaças de mudança, que implicam em “riscos aos investimentos”, estas seguem (e seguirão) apontando para o potencial de organização do povo em torno dos seus interesses, sem tutela. Muitos dos direitos trabalhistas e previdenciários serão colocados no balcão de negócios pelo próximo governo, seja ele qual for, em função da crise capitalista internacional.
Será que a “inquietação da classe média” nos salvará desse retrocesso em relação aos direitos conquistados? Ou o exemplo de resistência vem da França?
1 Uma informação muito importante tem sido omitida nessa história do papelão do Serra e da Globo. Ali na confusão estavam alguns poucos representantes dos quase 6000 mata-mosquitos da FUNASA que foram demitidos no governo FHC quando Serra era ministro da Saúde. A falta destes profissionais contribuiu para aquela que deve ter sido a maior epidemia de dengue que o Rio de Janeiro já teve notícia, da qual este que aqui vos escreve foi uma das vítimas. Bolinha de papel ou rolo de fita crepe na cabeça não reparam um milésimo dos danos que esse sujeito já fez.
2 Extraído (este trecho e os seguintes que se referem a Vargas) do livro A construção discursiva do povo brasileiro, de Maria Emília Lima, editora Pontes.