O fim da política
Uma das principais discussões dos teóricos da Ciência Política brasileira é sobre a qualidade da democracia do país. Como cientista político e agente político, percebo que esta discussão, embora necessária, está cada vez mais subordinada (e seqüestrada) por uma matriz norte-americana, cujos focos de pesquisa e interesses são, no que concerne à democracia brasileira, estreitos em termos político-ideológicos e propriamente políticos. Não me ocupo, a seguir, de uma análise das causas dessa subordinação (um dia, nossos cientistas políticos, tão solenes em falar obviedades a partir de estatísticas eleitorais, talvez consigam olhar o Brasil sem as viseiras teóricas anglo-saxãs). Pretendo, em breves linhas, tratar de algo perigoso e invisível, pois aparentemente natural no cotidiano da política e dos políticos brasileiros: a consagração de uma ideologia de natureza neofascista e o fim da política, efeito direto do enfraquecimento do nosso regime semidemocrático.
A olhos vistos, estão visivelmente desmanchando-se, no Brasil, alguns elementos condicionantes do que podemos chamar de uma institucionalidade política de corte liberal. Esta institucionalidade nunca foi robusta, está / estava apenas em formação, em forma e conteúdo, por meio de institutos e órgãos públicos e privados que lhe davam / dão uma funcionalidade e um perfil. Sua fraqueza acentua-se, entre outras coisas: a) pela judicialização da política; b) pela ausência / desprezo da isonomia na disputa eleitoral (assegurada pelos próprios TSE / STF); c) pelo abusivo poder discricionário da mídia em ignorar candidatos diferenciados, em termos político-ideológicos; e d) pela falta total de vigilância / controle sobre a ação do capital privado (industrial e financeiro, sobretudo) em “apoiar” uma rede de candidatos do capital, cartelizando a disputa em todos os níveis.
Estas causas produzem, a cada eleição, um consenso fraudado da representação política nas casas legislativas do país. Poderíamos, nós comunistas do PCB, até “gostar” desse desmanche, dado que talvez pudesse representar dialeticamente a gestação de algo novo, um conteúdo prenunciando uma nova política. Pensar assim (na perspectiva do “quanto pior, melhor”) seria uma rematada estupidez política. Desse quadro não sairá nada de superior, antitético, para conformar uma síntese. O que vemos é a gestação de um ovo da serpente, tanto mais letal na medida em que os políticos burgueses, lambuzando-se no festim dos milhões de votos desse consenso fraudado, nessa democracia de papel, consagram-se sob as bênçãos do capital, das togas autoritárias e da imprensa vil e venal.
A serpente desse ovo é neofascista. Não necessita da força, da ameaça, da perseguição. Ela simplesmente inocula na vida política das instituições e na mentalidade política dos cidadãos uma visão naturalizada dos embustes da semidemocracia brasileira. E cria até mistificações do tipo “Ficha Limpa”, pois esta (embora uma iniciativa positiva) não vem acompanhada da necessária vigilância e efetivo controle sobre o uso (em geral, sujo, para compra de votos) dos milhões de reais “doados” por essas almas de empresários caridosos, durante as campanhas eleitorais. Quem não sabe que qualquer empresário, na verdade, empresta dinheiro aos candidatos da ordem político-ideológica burguesa, e depois cobra com juros de agiota político (que tal auditar as licitações nas quais concorrem empresas da construção civil que “apóiam” os candidatos com chances fortes de vencer?). No Brasil, ser honesto é favor.
Em Pernambuco, nestas eleições, podemos identificar, como fenômenos particulares daquele enfraquecimento institucional referido, o delineamento de dois projetos sociais, políticos e econômicos antagônicos, como propostas de governo, à esquerda e ao centro. Ainda que, nestes campos ideológicos, haja nuances quanto ao grau de radicalidade das propostas político-sociais de cada grupo / coalizão partidária, para menos ou mais, vemos consolidar-se no Estado, a cada eleição, duas agendas opostas que talvez reflitam a) o estreitamento das margens de intervenção / influência, à esquerda, nos processos político-eleitorais, e b) a hegemonização, pelo centro, desses mesmos processos, provocando ao mesmo tempo aquele estreitamento.
Para efeito de ificação, definimos aqui como esquerda política do Estado os partidos PCB, PSOL e PSTU. E de centro o PT e o PSB, pois ainda que seus estatutos e discurso militante retoricamente aludam ao vocábulo socialista, efetivamente, estas duas agremiações concebem e praticam a política em si e as políticas públicas com arranjos institucionais de centro, à guisa de tentar equilibrar a relação capital-trabalho na gestão estatal – o que apenas decalca a mesma prática e concepção do lulismo, em nível nacional. Não tratamos, aqui, dos partidos de direita e / ou centro-direita pelo fato dessas agremiações não formularem uma agenda político-social na qual seja possível discernir diferenças de fundo com a centro-esquerda amestrada pela e financeira e industrial que se apropria do Estado na teoria e na prática. Esta é, aliás, a grande desgraça do DEM, PSDB e PPS: prepararam um belo jantar para os convivas estranhos (PT e PSB) degustarem não apenas os pratos, mas também se apropriarem da cozinha, ou seja, do Estado. Olhem com cuidado e tentem encontrar nas agendas político-sociais de ambos os candidatos das coalizões partidárias de centro e de direita concepções de gestão pública, grau de domínio da tecnocracia, grau de intervenção do poder estatal etc, algum fundamento político-ideológico que, em essência, os antagonizem. Quanto ao PV, não sabemos ainda o que é ideologicamente, ainda que seu discurso também se incline para uma concepção político-ideológica de centro. A rigor, o PV, hoje, podia estar tanto coligado com o PT quanto com o PSDB.
Najudicialização da política (e no seu oposto antitético, ou seja, a politização do Judiciário), vemos a falência das instituições cujo papel é manter / aprimorar os sistemas de controle e fiscalização em nome dos princípios republicanos. Nos últimos anos, a influência do Executivo sobre o Poder Judiciário institucionalizou uma relação de promiscuidade – e aqui incluímos o PT e o PSDB, na mesma medida, pois o fenômeno não começou nas gestões de Lula. O candidato Serra teria ligado para o ministro Gilmar Mendes? Os ministros do STF abençoados pelo PT votam com independência?
A ausência / desprezo da isonomia na disputa eleitoral (assegurada pelos próprios TSE / STF) e o abusivo poder discricionário da mídia em ignorar candidatos diferenciados, em termos político-ideológicos, são outros graves sinais do neofascismo. Como se concebe que uma lei regulamente e permita, pela mídia, tratamento desigual para iguais? Ou não devem ser considerados iguais, na disputa, os candidatos inscritos para concorrer? Afinal, qualquer candidato ao Executivo exercerá seu mandato no início da nova legislatura. Já imaginaram a situação, conforme essa lei autoritária, de o PCB eleger 40 deputados federais ou 10 senadores e os seus candidatos aos governos estaduais e à presidência da República não terem tido espaço nos debates das TVs? Não é absurdo, ainda, uma TV privada, que opera mediante concessão pública do sinal, decidir se convida ou não determinados candidatos majoritários? O PT e o PSDB, que se acusam sobre o tema do cerceamento da liberdade de imprensa e de expressão, sequer tocam nesta questão. É claro que o PT, caso fora do poder e submetido a esta situação, estaria vociferando e pregando “fora, Presidente”, como nos velhos tempos.
Por último, a falta total de vigilância / controle sobre a ação do capital privado (industrial e financeiro, sobretudo) em “apoiar” uma rede de candidatos do capital, cartelizando a disputa em todos os níveis, é outro sinal da falência do processo político-eleitoral. No dia 3 de outubro haverá uma derrame de dezenas de milhões de reais, país afora, no tradicional mercado da compra e venda de votos. Muitos “fichas limpas”, por meio dos seus cabos (bandidos) eleitorais, estarão distribuindo desde 5 a 50 reais pelo voto, sobretudo nas periferias miseráveis das capitais e grandes cidades. Centenas de candidatos serão eleitos neste vergonhoso mercado. As burras cheias pelos Caixas 2 vão se abrir generosamente para dar corpo ao consenso fraudado. O PT e o PSDB querem realmente uma reforma política que crie, por exemplo, o financiamento público e fiscalizado das campanhas? Em dezesseis anos de poder sempre postergaram, em interesse próprio, essa necessidade.
A campanha político-eleitoral de 2010 sedimentou, na forma e no conteúdo, uma institucionalidade política conformada pelo poder do capital privado, que perverte o instituto da representação parlamentar, mesmo nos limites da ideologia política liberal. Não somos adeptos do profetismo político, mas desse quadro de promiscuidade ideológica, corrupção eleitoral e falência das instituições não deverá sair uma democracia robusta. Sobretudo porque, como a história nos ensina, a direita brasileira não suporta viver muito tempo na oposição. O problema, contudo, reside no fato de que o PT, no exercício do poder, não difere em essência dessa mesma direita “social-democrata”, em termos de concepção de Estado e modelo de governança.
O que se conformar na política de Pernambuco estará essencialmente relacionado com o quadro nacional. Caberá à única oposição político-ideológica no Estado, ou seja, aos partidos de esquerda, diagnosticar a situação e formular uma agenda de lutas junto aos movimentos sociais e populares, sobretudo, mas não exclusivamente. Os desafios são gigantescos para poucos militantes e pequenas estruturas. Mas, se resistimos até agora, porque não podemos começar a construir, desde já?
Roberto Numeriano é membro do Comitê Central do PCB e dirigente estadual.