Como o sul pagou pelas crises do norte e pela sua própria submissão
Eric Toussaint*
Como os portugueses hoje bem sabem as crises da dívida da periferia estão ligadas às crises que surgem nos mais poderosos países e são utilizadas para subordinar os países mais fracos.
O texto que hoje apresentamos de Eric Toussaint é uma perspetiva histórica da crise da dívida dos países da «periferia» desde o século XIX ao século XXI.
Este texto é uma introdução a uma série de 6 artigos que tratam da «dívida como um instrumento de subordinação da América Latina», em tudo idêntico ao que está a acontecer aos países do sul da União Europeia.
Não sendo regra, resistir e derrotar a pressão dos países imperialistas não foi tarefa impossível, como veremos neste estudo.
A partir dos anos 1820, os governos dos países da América Latina, recém-saídos das guerras de independência, lançaram-se numa onda de empréstimos. Os banqueiros europeus procuravam avidamente oportunidades para endividar estes novos estados, porque isso era extremamente benéfico para eles [1]. Inicialmente, estes empréstimos serviram ao esforço de guerra para garantir e reforçar a independência. Na década de 1820, os empréstimos estrangeiros assumiram a forma de títulos de dívida emitidos por Estados por meio de banqueiros ou corretores de bolsa em Londres. Então, a partir da década de 1830, atraídos pelos altos rendimentos, os banqueiros franceses tornaram-se muito activos e entraram em concorrência com o centro financeiro de Londres. No decorrer das décadas seguintes outros centros financeiros entraram na competição: Frankfurt, Berlim, Antuérpia, Amesterdão, Milão, Viena… A forma utilizada pelos banqueiros para emprestar aos Estados limitava os riscos a que estavam expostos porque em caso de suspensão de pagamento da dívida, os obrigacionistas eram os diretamente afetados. Teria sido diferente se os banqueiros tivessem emprestado directamente aos estados [2]. No entanto, quando estes banqueiros adquiriam eles próprios uma parte dos títulos vendidos ou vendidos por outros banqueiros, tinham dificuldades no caso de não pagamento. Além disso, a existência de um mercado de títulos ao portador permitia aos banqueiros efectuar múltiplas manipulações que lhes permitiam um alto rendimento.
O recurso ao financiamento externo revelou-se contraproducente para os países em causa, em particular, porque esses empréstimos eram contratados com condições muito favoráveis para os credores. As suspensões de pagamentos eram numerosas e levaram a retaliações pelos países credores que utilizaram em várias ocasiões a intervenção armada para obter o reembolso. As reestruturações de dívidas serviam normalmente os interesses dos credores e das grandes potências que os apoiavam e fizeram entrar os países devedores num círculo vicioso de endividamento, dependência e «desenvolvimento do subdesenvolvimento», para usar uma expressão do economista André Gunder Frank [3].
A arma da dívida foi usada como um meio de pressão e subordinação dos países endividados. Tal como sublinhou Rosa Luxemburgo em 1913, os empréstimos «são o meio mais seguro para os velhos países capitalistas manterem sob a sua tutela os jovens países, para controlar as suas finanças e exercer pressão sobre a sua política exterior, aduaneira e comercial» [4].
Felizmente, o México, em duas ocasiões, saiu de forma vitoriosa do confronto com os seus credores (em 1867 sob a presidência de Benito Juarez e, mais tarde, na onda da revolução mexicana liderada por Emiliano Zapata e Pancho Villa, que ordenou a suspensão da dívida em 1914). O Brasil também enfrentou com sucesso os seus credores, entre 1933 e 1943, bem como o Equador em 2007-2009, sem esquecer Cuba no que respeita ao Clube de Paris de 1962. Quando se prepara uma nova crise da dívida na América Latina, é fundamental retirar ensinamentos dos últimos séculos Não fazer isso é condenar-se a reviver as tragédias do passado.
A dívida externa como arma de dominação e subordinação
O uso de dívida externa como arma de dominação desempenhou um papel fundamental nas políticas imperialistas das principais potências capitalistas ao longo do século XIX e continua do século XXI, sob formas que evoluíram. A Grécia, desde o seu nascimento nos anos de 1820-1830, foi completamente submetida aos ditames das potências credoras (especialmente Grã-Bretanha e França) [5]. O Haiti, que se tinha libertado da França durante a Revolução Francesa e tinha proclamado a independência em 1804, foi novamente submetido aquele país em 1825 por causa da dívida [6]. Atunísia, endividada, foi invadida pela França em 1881 e transformada em um protetorado-colónia [7]. O mesmo destino foi imposto ao Egipto pela Grã-Bretanha em 1882 [8]. O Império Otomano, a partir de 1881, foi submetido directamente aos credores (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália…) [9], o que acelerou o seu estouro. A China, no século XIX, foi forçada pelos credores a fazer concessões territoriais e abrir totalmente o seu mercado. O Rússia czarista, altamente endividada, também poderia ter-se tornado presa das potências credoras se a revolução bolchevique não tivesse levado em 1917-1918 à rejeição unilateral das dívidas.
Das diferentes potências periféricas [10] que poderiam potencialmente aceder ao papel das potências capitalistas imperialistas na segunda metade do século XIX, ou seja, o Império Otomano, o Egipto, o Império Russo, a China e o Japão, apenas a última conseguiu a mutação [11]. Na verdade, o Japão não recorreu praticamente ao endividamento externo para realizar um desenvolvimento económico significativo e se tornar uma potência capitalista imperialista na segunda metade do século XIX. O Japão experimentou um grande desenvolvimento capitalista autónomo, como resultado das reformas do período Meiji (iniciado em 1868). Importou as técnicas de produção mais avançadas de então, enquanto impedia a penetração financeira estrangeira no seu território, recusando-se a recorrer a empréstimos estrangeiros no país e suprimindo os obstáculos à circulação de capital autóctone. No final do século XIX, o Japão passou de uma autarquia secular a uma expansão imperialista vigorosa. É claro que a ausência de dívida externa não foi o único factor que permitiu ao Japão saltar para um desenvolvimento capitalista vigoroso e levar a cabo uma política externa agressiva, elevando-se ao nível das grandes potências imperialistas. Outros fatores, que seria demasiado longo elencar aqui actuaram igualmente, mas, obviamente, a ausência de dívida externa desempenhou um papel fundamental [12].
Em contraste, a China, que até a década de 1830 realizava um desenvolvimento muito importante e constituía uma potência económica de primeiro nível [13], ao recorrer a empréstimos externos permitiu às potências europeias e aos Estados Unidos marginalizá-la gradualmente e submetê-la progressivamente. Aqui também estiveram envolvidos outros fatores, tais como as guerras impostas pela Grã-Bretanha e a França para impor o livre comércio e as exportações de ópio forçadas à China, mas a dívida externa e as suas consequências desastrosas desempenharam um papel muito importante. Na verdade, para pagar os empréstimos estrangeiros, a China teve que sacrificar concessões territoriais e portuárias a potências estrangeiras. Rosa Luxemburgo menciona, entre os métodos utilizados pelo Ocidente para dominar a China o «sistema da dívida pública, empréstimos europeus, controle financeiro europeu, com o resultado da ocupação das fortalezas chinesas, a abertura forçada de portos francos e a concessão ferroviária, obtidos sob a pressão dos capitalistas europeus» [14]. Joseph Stiglitz, quase um século depois de Rosa Luxemburgo, também se refere a isso na sua obra A grande decepção.
A crise da dívida externa na América Latina do século XIX ao século XXI
Desde a independência, em 1820, os países latino-americanos conheceram quatro crises de dívida.
A primeira foi declarada em 1826, produzida pela primeira grande crise capitalista internacional que começou em Londres em dezembro de 1825. Esta crise da dívida durou até os anos 1840-1850.
A segunda começou em 1876 e terminou no início do século XX [15].
A terceira começou em 1931 como uma extensão da crise que eclodiu em 1929 nos Estados Unidos. Ela terminou no final dos anos 1940.
A quarta rebentou em 1982 ligada às decisões tomadas pela Reserva Federal dos Estados Unidos em termos de taxas de juro, combinadas com a queda dos preços das matérias-primas. Esta quarta crise terminou em 2003-2004, quando o aumento dos preços das matérias-primas aumentou consideravelmente o rendimento das divisas. A América Latina também se aproveitou de taxas de juros internacionais que caíram drasticamente como resultado das decisões do FED, seguida pelo BCE e o Banco da Inglaterra a partir da crise bancária no Norte, que começou em 2008-2009.
Prepara-se uma quinta crise como consequência da queda acentuada dos preços das matérias-primas, que começou em 2013-2014, e da evolução da economia das principais potências imperialistas – que hoje incluem China (perspectiva de taxas crescentes de juros determinada pelo FED, explosão da bolha do mercado de ações… causando uma repatriação de capitais para os Estados Unidos, Europa e talvez China). A crise, que já afeta totalmente Puerto Rico ]16] é um prenúncio, mas são especialmente a Venezuela e a Argentina, que estão em risco de, quando uma nova crise estourar, sofrer com grande amplitude, com a particularidade de que uma parte de sua dívida é subscrita com a China, novo actor maior na América Latina.
As origens destas crises e os momentos em que rebentam estão intimamente relacionadas com o ritmo da economia mundial e, especialmente, a dos países mais industrializados. Cada crise da dívida foi precedida por uma fase de sobreaquecimento da economia dos países industrializados do Centro, no decurso da qual houve superabundância do capital, parte do qual foi reciclada nas economias da Periferia. As fases preparatórias da eclosão da crise, durante a qual a dívida cresce fortemente, correspondem ao final de cada longo ciclo expansivo dos países mais industrializados, excepto neste caso, porque, desta vez, não pode falar de longo ciclo expansivo, salvo em relação à China (e outros BRICS). A crise é geralmente causada por fatores externos aos países periféricos endividados: uma recessão ou crash financeiro atacando uma ou mais das principais economias industrializadas, uma mudança de política na taxa de juros decidida pelos bancos centrais das grandes potências do momento.
O que foi dito acima está em desacordo com a narração das crises que domina o pensamento histórico-económico [17] e veículado pela média e governos. De acordo com a narrativa dominante, a crise que eclodiu em Londres, em dezembro de 1825, e se espalhou para outras potências capitalistas, resultou do sobre-endividamento dos Estados latino-americanos; a dos anos 1870, do sobre-endividamento da América Latina, do Egipto e do Império Otomano; a da década de 1890 que quase causou a falência de um dos principais bancos britânicos, do endividamento da Argentina; a dos anos de 2010, do endividamento da Grécia e, mais genericamente dos «PIGS» (Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha).
As crises da dívida e as ondas longas da economia capitalista internacional
Há uma relação entre o estouro dessas quatro crises e as ondas longas do capitalismo. As ondas longas do desenvolvimento capitalista desde o início do século XIX foram analisadas por vários autores, incluindo Ernest Mandel que forneceram um contributo substancial, nomeadamente quanto ao impacto do factor político sobre o desenvolvimento e o resultado das ondas longas, contribuição que continua sem ser concluída [18]. Ernest Mandel propõe a datação seguinte para as ondas longas desde o final do século XVIII ao início do século XX [19]:
• forte crescimento a partir de 1793 terminando na grande crise de 1825
• crescimento lento em 1826-1847 com a forte crise em 1846-1847
• forte crescimento 1848-1873, com forte crise em 1873
• crescimento lento em 1874-1893 com a crise bancária em 1890-1893
• forte crescimento de 1894-1913…
As fases de expansão forte, bem como as fases de expansão lenta, são subdivididas em ciclos mais curtos que variam de 7 a 10 anos e acabam em crise.
Depois de um crash financeiro da Bolsa de Londres em 1825, a primeira crise moderna da superprodução de mercadorias (1826) abre o caminho para uma longa onda de crescimento lento (1826-1847) e a primeira crise da dívida na América Latina (que começa em 1826-1827).
A segunda crise eclodiu em 1873 como resultado de um crash na bolsa de Viena seguido por outro em Nova York. Segue-se uma longa depressão nas economias industrializadas de 1873 a 1893 e a crise da dívida na América Latina na década 1870.
Como resultado da crise de Wall Street, em 1929, a depressão da década de 1930 na economia global leva à crise da dívida na América Latina que eclodiu ao mesmo tempo, mas levando a um cenário diferente do da crise anterior. De facto, como resultado, em especial, da decisão de não pagar a dívida por catorze países africanos, a crise da dívida conduz a um boom industrial de longa duração nos principais países (em particular Brasil e México) em contradição com a crise dos países do Centro.
A quarta crise que começou em 1982 foi causada pelo efeito combinado da segunda recessão económica global (1980-1982) do pós-guerra, da queda dos preços das matérias-primas (que está ligado a essa recessão) e da subida das taxas de juro decididas pela Reserva Federal dos Estados Unidos em 1979.
As quatro primeiras crises duraram 15 a 30 anos. A quinta está em preparação. Afectaram o conjunto dos Estados independentes da América Latina e do Caribe, quase sem excepção.
No decorrer dessas crises, eram frequentes as suspensões de pagamento da dívida. Entre 1826 e 1850, durante a primeira crise, a maioria dos países suspendeu o seu pagamento. Em 1876, onze países latino-americanos tinham suspendido o pagamento. Em 1930, onze países do continente decretaram uma moratória. Entre 1982 e 2003, México, Bolívia, Peru, Equador, Brasil, Argentina, Cuba e outros, suspenderam o reembolso em algum momento, por um período de vários meses ou vários anos. A suspensão decretada pela Argentina entre o fim de 2001 e Março de 2005, num montante de cerca de 90.000 milhões de dólares permitiu um crescimento económico sustentado.
Na maioria dos casos, as suspensões de pagamentos são seguidas por reestruturações da dívida favoráveis aos interesses dos credores. Os exemplos de estados periféricos que vitoriosamente repudiam as suas dívidas são muito raros, mas existem. É o caso do México durante o mandato do liberal Benito Juarez, o primeiro presidente indígena da América Latina [20]. O México, que suspendeu o pagamento da dívida odiosa, em 1861, conseguiu expulsar o Corpo Expedicionário Francês em 1866 após quatro anos de duros combates e a imposição de um imperador europeu, Maximiliano da Áustria. Em 1867, o México repudiou a dívida reclamada pela França. Igualmente raros são os casos em que um Estado organizou uma auditoria da dívida a fim de questionar o seu pagamento. Foi o caso do Equador, em 2007-2008. Os seus exemplos são ricos em ensinamentos.
As ondas longas na evolução do capitalismo
Vejamos o que diz Michel Husson: «A teoria das ondas longas já tinha sido objecto do Capítulo 4 de O capitalismo tardio(Mandel, 1972) antes de ser desenvolvida durante uma série de palestras dadas em Cambridge em 1978, o que levou à publicação de The Long Waves of Capitalist Development em 1980 (As ondas longas do desenvolvimento capitalista: uma interpretação marxista). Uma das propostas essenciais desta teoria é que o capitalismo tem uma história, e que esta não obedece a um funcionamento cíclico. Conduz a uma sucessão de períodos históricos, marcada por características específicas, que faz alternar fases expansivas e fases recessivas. Essa alternância não é mecânica: não basta esperar 25 ou 30 anos. Se Mandel fala de onda em vez de ciclo, é claramente porque a sua abordagem não está focalizada num esquema geralmente atribuído – e, provavelmente, erroneamente – a Kondratieff, de movimentos regulares e alternados dos preços e da produção.
Um dos aspectos importantes da teoria de ondas longas é quebrar a simetria das inflexões: a passagem da fase de expansão à fase depressiva é «endógena, no sentido de que resulta dos mecanismos internos do sistema. Ao contrário, a passagem da fase depressiva para a fase de expansão é exógena, não automática e pressupõe uma reconfiguração do ambiente social e institucional. A ideia-chave aqui é que a transição para a fase de expansão não é um dado adquirido e exige reconstituir uma nova «ordem produtiva». Isso leva tempo, e não há, portanto, um ciclo semelhante ao ciclo conjuntural, cuja duração pode ser relacionada com o tempo de vida do capital fixo. Esta é a razão pela qual esta abordagem não dá qualquer prioridade às inovações tecnológicas: na definição desta nova ordem de produção desempenham um papel essencial as transformações sociais (a correlação de forças entre capital e trabalho, o grau de socialização, as condições de trabalho, etc.)”.
(Ver Michel Husson: www.
Adaptando um pouco a apresentação cronológica de Ernest Mandel
1. 1789-1848: Período da Revolução Industrial, das grandes revoluções burguesas, das guerras napoleónicas e da constituição do mercado mundial de bens manufaturados: fase “ascendente ” da onda 1789-1825; fase de crescimento lento 1826-1848.
2. 1848-1893: Período do capitalismo industrial de “livre concorrência”, com uma fase de ascensão de 1848-1873 e uma fase de crescimento lento de 1873-1893 (longa depressão do capitalismo de “livre concorrência”).
3. 1893-1913: Apogeu do imperialismo clássico e capital financeiro. É uma fase ascendente com crescimento forte.
4. 1914-1940: Período de declínio do capitalismo, a era da guerras inter-imperialistas, revoluções e contra-revoluções. Fase de crescimento lento, com crise de amplitude muito grande.
5. Desde 1940 nos Estados Unidos e na América Latina e depois da Segunda Guerra Mundial para a Europa:fase de crescimento forte no âmbito da terceira idade do capitalismo (capitalismo tardio), após as derrotas sofridas pelo movimento operário nos anos 1930. Esta fase de forte crescimento (o “trinta gloriosos” de acordo com alguns autores) acaba nos Estados Unidos no final dos anos 1960 e na Europa durante os anos 1970. A partir do início da década de 1980, entra-se numa fase de crescimento lento. A quarta crise da dívida na América Latina (e mais geralmente dos chamados países em desenvolvimento) começou em 1982.
De acordo com Michel Husson, «Desde a publicação do livro de Mandel, a economia mundial mudou drasticamente. Com a ascensão dos países chamados “emergentes”, estamos testemunhando uma verdadeira “mudança radical no mundo” cuja medida pode ser tomada com a ajuda de alguns números. Assim, os países emergentes realizaram em 2012 metade das exportações industriais do mundo, quando a sua participação foi de apenas 30% no início da década de 1990. Desde o início de 2000, o total da progressão da produção industrial mundial foi realizada nos países emergentes. O capitalismo parece assim encontrar um segundo fôlego relocalizando a produção em países que registam ganhos de produtividade significativos, e onde o nível salarial é muito baixo». (…)
Reflectir sobre os «velhos» países capitalistas «ou sobre o conjunto da economia global, já não é o mesmo: o crescimento da produção (incluindo a produção industrial), os ganhos de produtividade e o desenvolvimento da classe trabalhadora estão, desde o início do século XXI, no Sul. Há aqui mais que uma dessincronização que poderia ser colocada na conta de fatores específicos» (…).
«Em última análise, o que é verdadeiro para os velhos países capitalistas do Norte, ou seja, a incapacidade de pôr em prática as bases de uma nova” onda longa expansiva” não parece totalmente aplicável a toda uma série de países que reagrupam uma fração significativa da população mundial. Poderia no limite, falar-se de uma onda longa expansiva a seu respeito. Se é um modo de crescimento que aumenta as desigualdades e a barbárie (que evoca por outro lado, o auge da Inglaterra do século XIX), é uma outra questão: o ponto decisivo é que nos países em causa, a acumulação de capital e o crescimento do emprego assalariado dão provas de um dinamismo impressionante».
Acrescento da minha parte que a fase de forte expansão nos países emergentes (com a China à cabeça) e de um grande número de países em desenvolvimento, mostra sinais de perda de energia ou esgotamento a partir de 2014 a 2015, enquanto as economias dos velhos países industrializados permanecem atoladas na continuação de um crescimento lento.
Uma das ideias que este artigo adianta, é que existe uma estreita relação entre as fases de expansão forte do capitalismo global e a acumulação de dívidas nos países periféricos (e, neste caso, a América Latina) estimuladas em particular, pela vontade das economias capitalistas mais fortes de aumentar os fluxos de capitais para a periferia (devo salientar que temos agora que colocar a China entre as economias capitalistas mais fortes). A rotação da fase de crescimento forte desemboca geralmente numa crise da dívida nos países periféricos e pode-se dizer sem exagero que «provoca» uma crise da dívida. No presente período histórico, vivemos num período de dobragem (sem um crescimento forte nas antigas economias capitalistas) que poderia levar a uma nova crise da dívida na América Latina e outros países periféricos (na África e Ásia), – os primeiros a ser afetados serão os países que dependem fortemente da exportação de matérias-primas para pagar a sua dívida – juntando-se à dos países periféricos no interior ou nas margens da Europa (Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda, Chipre, Ucrânia, outros países do ex bloco de Leste, etc.) ou da esfera dos Estados Unidos (Porto Rico dá o exemplo).
Notas:
[1] Fizeram o mesmo com a Grécia em 1824-1825, concedendo dois empréstimos de um montante igual a 100% do PIB desse país, que se estava formando. Ver: http://cadtm.org/Grecia-nacio-
[2] Foi o que aconteceu nos anos 1960-1970. Durante esse período, os banqueiros concederam empréstimos diretamente. Quando eclodiu a crise da dívida do Terceiro Mundo, em 1982, eles livraram-se dos contratos graças à intervenção dos estados imperialistas e a dupla Banco Mundial / FMI que os autorizaram a regressar à securitização da dívida como era praticada em todo do século XIX até a década de 1930. Voltaremos a isso mais adiante. Abordei a questão em A bolsa ou a vida de 1998, reedição revista e ampliada em 2004. http://cadtm.org/La-bolsa-o-
http://bibliotecavirtual.
[3] Gunder Frank, André. 1972. Le développement du sous-développement: l’Amérique latine, Maspero, Paris, 399 p. https://books.google.es/books/
[4] Rosa Luxemburgo, A Acumulação de Capital, Maspero, Paris, Vol II, p. 89. Em espanhol, La acumulación de capital http://grupgerminal.org/?q=
[6] Sophie Perchellet, Haiti. Entre colonização, divida et dominação, CADTM-PAPDA, Liège-Porto Principe, 2010 http://cadtm.org/Haiti-Entre-
[7] «A dívida como uma ferramenta para a conquista colonial do Egipto»
http://cadtm.org/La-deuda-
[8] «A França apoderou-se da Tunísia usando a dívida como arma. http://cadtm.org/Francia-se-
[9] Ver http://cadtm.org/L-Empire-
[10] Periféricas em relação às grandes potências capitalistas europeias (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Holanda, Itália, Bélgica) e em relação aos Estados Unidos.
[11] Jacques Adda é um dos autores que chamam a atenção para isso. Veja Jacques Adda. 1996. Mondialisation de l’économie, tomo 1, p. 57-58.
[12] Para saber mais sobre os diferentes factores porque não se deve recorrer à dívida externa, ler Perry Anderson de 1979 O Estado absolutista (Siglo XXI Editores) sobre a transição do feudalismo para o capitalismo no Japão. Além disso, Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch ressaltam que efectivamente o Japão não recorreu a empréstimos externos e saiu-se melhor do que os outros. Ver Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch, “As armadilhas da dependência externa: Grécia, 1829-2015″, Brookings Papers.
[13] Kenneth Pomeranz, que trabalha para pôr em evidencia os fatores que impediram que a China se tornasse uma das grandes potências capitalistas, não atribui importância à dívida externa, embora seja verdade que o seu estudo se concentra no período anterior a 1830-1840. A sua análise é, contudo, muito rica e sugestiva. Veja Kenneth Pomeranz (2000), A Grande Divergência, Princeton University Press, 2000, 382 páginas.
[14] Rosa Luxemburgo, A Acumulação do Capital:
http://grupgerminal.org/?q=
[15] No caso da Venezuela, que se recusou a pagar a sua dívida, levou a um verdadeiro teste de força com os imperialistas USA, alemães, britânicos e franceses, que enviaram em 1902 uma frota militar multilateral para bloquear o porto de Caracas e obter, pela diplomacia das canhoneiras, o compromisso da Venezuela de retomar o pagamento das dívidas. A Venezuela acabou de pagar essa dívida em 1943. Veja Pablo Medina e al. 1996 “ABC da dívida externa.” p. 21-22 p. 37, p. 50.
[16] Ver http://cadtm.org/Puerto-Rico-
[17] Ver em particular os escritos de Sismondi e Tugan Baranovsky no séc. XIX tal como os grandes titulos da imprensa da época e os discursos dos governos europeus.
[18] Mandel, Ernest, As ondas largas do desenvolvimento capitalista: uma interpretação marxista. Madrid: Siglo XXI Editores, 1980/1986. ISBN 84-33-0558-3 O livro de Ernest Mandel sobre as ondas longas pode ler-se na web em http://digamo.free.fr/
[19] Ver E. Mandel , El capitalismo tardio. México: Ediciones Era, 1972/ 1979
[20] Benito Juarez (1806-1872) era zapoteca, um dos povos nativos do México (região de Oaxaca)
Agradecimentos:
O autor agradece a Brigitte Ponet, Damien Millet, Claude Quémar e Pierre Salama, pela sua releitura e sugestões e a Pierre Gottiniaux pelas ilustrações. O autor é inteiramente responsável pelos eventuais erros.
*Professor na Universidade de Liège, Eric Toussaint é porta-voz da rede internacional do Comité de Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), que ajudou a criar.
Tradução de Guilherme Alves Coelho
http://www.odiario.info/como-o-sul-pagou-pelas-crises/