A greve sem direito
A greve é vista pelo STF como atuação indesejada e não como um direito para recriar o direito e conferir melhoria da condição social dos trabalhadores.
Jorge Luiz Souto Maior, Valdete Souto Severo
Cumprindo o compromisso de realizar a “reforma trabalhista”, como assumido expressamente pelo Ministro Marco Aurélio na sessão do dia 14/09/16, e depois de já ter imposto retrocessos aos direitos dos trabalhadores em vários julgamentos recentes, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 693.456, chegou ao resultado de declarar que o direito de greve não existe.
Mesmo fazendo intensa digressão histórica sobre o direito de greve e reafirmando que os servidores públicos possuem tal direito, o Ministro relator, Dias Toffoli, acolheu a tese, já defendida anteriormente pelo Ministro Gilmar Mendes, de que “por definição a greve é uma opção de risco”, admitindo, com todas as letras, que o desconto dos dias parados constitui “um instrumento necessário à ponderação de interesses em choque a fim de chegar-se ao fim da paralisação”.
Ou seja, buscou-se uma fórmula jurídica para impedir a greve e não para garantir o seu exercício. A intenção explícita do STF, registrada claramente no voto do Ministro Barroso, foi a de “desestimular greves alongadas”.
É a greve vista como atuação indesejada e não como um direito para recriar o direito e conferir efetividade ao princípio da melhoria da condição social dos trabalhadores.
O direito de greve, ademais, bem se sabe, serve ao sistema, vez que confere padrões regulatórios ao conflito trabalhista, delimitando-o. Mas até se chegar à forma jurídica que, sutilmente, mantém sob controle os movimentos operários, o enfrentamento se fazia de modo explicitamente ostensivo.
Alguns fatos pinçados da nossa história recente podem ajudar a compreender isso. Em 1906, quando uma greve geral mobilizou os trabalhadores em Porto Alegre e em São Paulo, a repressão policial foi intensa: muitos trabalhadores foram feridos, espancados e presos pela polícia. O mesmo ocorreu nas greves deflagradas em 1907. Naquele ano, foi aprovada a primeira lei para expulsão dos imigrantes, considerados perigosos especialmente porque traziam consigo doutrinas e pensamentos subversivos (Lei Adolfo Gordo). Em 1908, após uma greve geral que contou com o apoio do comércio, uma Circular do Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo pedia que cada indústria indicasse nome, endereço e características dos operários considerados “mentores da sua classe”, para que a polícia pudesse prendê-los, a fim de evitar a continuidade dos movimentos paredistas. Em 1917 e 1919, anos de intensa luta organizada dos trabalhadores, a violenta repressão, ao contrário de arrefecer, acirrou os ânimos, incentivando uma greve geral de 24h, que resultou em violência na Praça da Sé. Mesmo durante a Ditadura Militar, os trabalhadores, seja através das “lutas subterrâneas”, como as greves de fome em 1967 e 1969, seja mediante embate direto, seguiram resistindo. Em 1968, as greves em Osasco e Contagem mobilizaram 15 mil trabalhadores. Mais de cem greves foram registradas em 1978, e o dobro no ano seguinte. A paralisação de quatro setores da Mercedes-Benz, por aumento de salário, seguidos por trabalhadores da Ford e da Scania, em 1978, são exemplos da força que o movimento paredista adquiriu mesmo enquanto ainda vigorava o AI-5.
O forte esquema de repressão estatal, traduzido em perseguição aos “agitadores”, aumento significativo do efetivo policial e intervenção direta nas relações de trabalho, impedindo os patrões de realizarem “acordos” para conter disputas, foi a tônica da atuação estatal em relação às greves durante quase todo o Século XX.
Do mesmo modo, a política de cooptação identificada pela instauração de sindicato único, pela imposição do chamado “imposto sindical”, pela doação de terrenos aos sindicatos para construção de colônias de férias, pela concessão de bolsas de estudos para filhos de trabalhadores, pelo incentivo aos convênios de assistência médica e jurídica, a serem prestadas pelos sindicatos, pelos programas de construção de casas populares, nada disso evitou que as greves continuassem ocorrendo.
Ainda assim as greves continuaram ocorrendo e da maior parte delas resultaram conquistas para a classe trabalhadora, revelando que a greve é um fato social que não tem como ser eliminado pelo Estado. É por isso que, refletindo um movimento de sobrevivência e de necessidade, garantiu-se aos trabalhadores na Constituição de 1988 o direito fundamental de greve, concedendo-lhes a faculdade de decidir sobre a oportunidade de seu exercício e os interesses que devam por meio dele defender.
Permitindo-se aos trabalhadores buscar melhores condições de trabalho e de vida dentro dos padrões do próprio sistema, impede-se que as tensões conduzam a rupturas, que nem mesmo a força bruta é capaz de remediar.
Concretamente, o direito de greve é uma das formas jurídicas mais eficientes para domesticar o conflito trabalhista, mas só tem condição concreta de cumprir esse papel se o sistema estiver disposto a fazer concessões, ainda que mínimas, à classe trabalhadora. Concessões que, ademais, não se efetivaram por benevolência ou caridade, já que a greve, como fato social, foi arduamente arrancada do capital até ser positivada como direito fundamental, carregando consigo um processo histórico de luta, dolorida e sangrenta.
Ao se estabelecer que o desconto dos salários é um efeito automático e incondicional da greve, vista apenas como uma “atividade de risco”, o STF estimulou uma intolerância sistêmica contra os interesses da classe trabalhadora.
Isso implica, concretamente, negar a existência do direito de greve.
Nesses moldes, a greve é reconduzida ao seu status originário de fato social, alheio à ordem jurídica vigente, ao menos enquanto não se tiver a audácia de dizer que a greve é um crime, como se fez nos momentos ditatoriais.
Dito de outro modo, quando o Supremo Tribunal Federal trata a greve como indesejável ou como mera “opção de risco” dos trabalhadores, deixa de lado todo o padrão regulatório da greve enquanto direito, o que, paradoxalmente, acaba por libertar a greve.
Ora, se a atuação coletiva dos trabalhadores na busca de melhores condições de trabalho é vista como ato ilícito, vez que vai acarretar aos grevistas, de forma automática e incondicional, a perda do salário, não há porque os trabalhadores se submeterem aos limites do direito para realizarem a greve.
Explicando melhor: o que diz a Lei n. 7.783/89, assim como a jurisprudência trabalhista desde sempre, é que os efeitos da greve, no aspecto do recebimento do salário, devem ser definidos em conformidade com a consideração de ser a greve legal ou ilegal, não abusiva ou abusiva. Dentro desse padrão, os trabalhadores eram induzidos a seguir as determinações legais para obterem um julgamento favorável neste aspecto. Mas como a decisão do Supremo disse que deflagrada a greve o ente público deve (e não pode) efetuar o corte de ponto imediatamente, sendo que os grevistas somente terão direito ao salário se a greve for motivada por ilegalidade cometida pelo empregador, perde-se qualquer utilidade em deflagrar uma greve nos moldes da lei.
Interessante perceber que aquilo que o Supremo chama de direito de greve, quando diz que a ordem jurídica só garante o recebimento dos salários pelos grevistas quando o empregador comete ato ilícito, não se trata, propriamente, de direito de greve, mas de mera incidência do velho preceito civilista do “exceptio non adimpleti contractus”.
Fato é que a ojeriza demonstrada pelo Supremo à greve e aos interesses dos trabalhadores gerou o efeito de retirar a greve dos contornos do direito, fazendo com que seja indiferente para os trabalhadores seguir as demais previsões legais.
Se já vão perder os salários mesmo, então não precisam deflagrar a greve em assembleia sindical; não precisam avisar o início da greve com antecedência; estão livres para realizar greves com conteúdo político e fora dos limites de uma categoria profissional específica; não necessitam manter algum percentual de trabalhadores em atividade; não devem aguardar a data-base para pleitearem aumento; e estão livres para realizar greves de ocupação, até porque seriam todos estes os mecanismos mais eficazes para se atingir o objetivo almejado pela própria decisão do Supremo, que é o de que a greve não se alongue…
E alguém dirá: bom, mas nessas condições os trabalhadores poderão ser punidos, inclusive com dispensa por justa causa. Mas punidos como se já o foram com a perda dos salários? Lembre-se que impera no Direito do Trabalho a proibição do “bis in idem”, ou seja, o impedimento de que se atribua mais de um efeito negativo ao trabalhador pelo mesmo ato praticado.
E se os trabalhadores estão em greve e não recusam essa condição, não se predispondo, pois, a extinguirem o vínculo, esse se mantém inevitavelmente.
A ausência ao trabalho, mesmo se considerada injustificada, como efeito de uma juridicamente forçada dupla declaração de ilegalidade da greve, por ter esta se concretizado por meio de algumas das formas acima enumeradas, só produziria algum efeito jurídico após 30 (trinta) dias.
E não se poderá, juridicamente, impor aos trabalhadores uma volta ao trabalho, vez que vetado o “trabalho forçado ou compulsório”, entendido como tal, nos termos da Convenção nº 29 da OIT (adotada em 1930), todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de uma sanção e para o qual a pessoa não se ofereceu espontaneamente.
Enfim, contraditoriamente, a decisão do Supremo abre um caminho para os trabalhadores, pois, afastando o direito, retoma a greve como fato social e efetivo instrumento de resistência e de luta.
São Paulo, 23 de novembro de 2016.
Créditos da foto: Gervásio Baptista/ SCO/ STF
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