A mitificação e a mistificação do capitalismo

imagempor Daniel Vaz de Carvalho

“A luta para que o céu se tornasse mensurável foi ganha através da dúvida. Mas a luta da dona de casa pelo leite é todos os dias perdida pela credulidade” (Bertholt Brecht, Galileu Galilei).

“Quando os pobres sabem que é preciso trabalhar ou morrer de fome, trabalham. Se os jovens sabem que não terão socorro na velhice, eles economizam” (William Nassau, economista e político inglês, 1790-1864).

1 – “Os anos de ouro”

A mitificação do capitalismo começa por uma visão idílica, mitificada, dos “anos de ouro do capitalismo” apregoando o seu “extraordinário sucesso” e a estagnação e fracasso do socialismo. Por um lado, fecham os olhos às devastações e todas as espécies de horrores cometidos pelo imperialismo, pelo neocolonialismo e pelas ditaduras, para impor o capitalismo.

Por outro, a realidade socialista é totalmente deturpada, num acervo de mentiras e omissões. Apenas como exemplo, entre 1950 e 1972 a produção industrial dos países socialistas cresceu 8,4 vezes a dos países capitalistas desenvolvidos, 3,1. Em 1940 era na URSS 5,8 vezes a de 1928. [1]

O sistema capitalista é apresentado como tendo permitido a ascensão de classes sociais, produzido mais riqueza, melhoria do nível de vida e direitos. O que esquecem é que tudo isto foi obtido – onde foi – não pelo capitalismo, mas contra o capitalismo, pelo proletariado organizado sindical e politicamente. Porém, o que de positivo e progressista se obteve está, em termos capitalistas, sempre a ser posto em causa, como evidenciam a austeridade, o neoliberalismo, o imperialismo, já não falando dos diversos modelos de fascismo: a ditadura terrorista do grande capital, com ou sem braços esticados.

Mas onde ficaram então os tais “anos de ouro”, aliás para muito poucos. Na realidade, “nos países do Sul o capitalismo são “massas de seres humanos sem voz, sem nada, o povo das favelas a perder de vista, campesinato miserável sofrendo para se alimentar, a brutalidade das condições de trabalho, a humilhação, a desumanidade. No Norte, tão rico, são espectros errantes que olhamos, mas não vemos, sem teto, sem direitos, são os “novos pobres”, desapossados, ofendidos, desumanizados.” [2]

Os “anos de ouro”, deveram-se às cedências da oligarquia em consequência das lutas dos trabalhadores e da admiração dos povos pela URSS e demais países socialistas face aos seus êxitos e à aquisição de amplos direitos económicos e sociais.

Não são pois de admirar as objurgatórias dos escribas afetos ao capital sobre o que inventam ter sido o “jugo soviético”. Contudo nada os sensibiliza o jugo (este sim bem real) da UE, da NATO, do FMI, não esquecendo a CIA e colaterais sobre os povos [3]

Há contudo que reconhecer que o capitalismo soube incutir no comum das pessoas a sedução pelo consumismo. Os EUA tornaram-se assim, para muitos, objeto de admiração acrítica, não entendendo que o que os atrai nos EUA é também um dos maiores defeitos do seu sistema: com 5% da população mundial consome 25% dos recursos mundiais…

O mito do consumismo tornou-se fonte de realização individualista, uma das bases do carácter alienatório do capitalismo, que Marx descreveu e Eric Fromm desenvolveu neste aspeto em “Ser e Ter”.

A propaganda e o enaltecimento da riqueza e do modo de vida dos ricos, determina modos de pensar acríticos, deixando na sombra mediática as causas da corrupção, do luxo escandaloso, das desigualdades obscenas. Simultaneamente, o sindicalismo de classe é caluniado como reduto de privilegiados e elemento obsoleto e egoísta à custa dos outros trabalhadores – que o sistema deixa sem direitos ou no desemprego.

2 – Mitos e realidades

Um dos mitos é o do êxito hedonista e individualista. O capitalismo diz: o êxito, é uma conquista individual, estás num mundo competitivo, mas tu vais conseguir… se seguires as regras. Ora as “regras” são as da semiescravatura da “flexibilidade laboral” – precariedade – da austeridade, da globalização capitalista, que coloca o proletariado dividido e isolado, competindo entre si, e em que o seu projeto de vida se limita à sobrevivência a curto prazo, porque doutra forma ou noutro país se obtêm lucros mais elevados.

Ao mesmo tempo que sem corar afirmam que “não é possível conservar o emprego a todo o custo”, apoiam políticas para defender os interesses da finança “custe o que custar”. Mas isto é apenas um dos resultados das “reformas estruturais”, de facto impossíveis de impor antes do fim da URSS.

A lógica já enunciada pelos seus defensores com o argumento da competitividade e da “justiça social” (!) é de que não se justifica que trabalhadores europeus tão qualificados como trabalhadores das Filipinas, Bangladesh ou Índia ganhem mais que estes. Claro que nem lhes passa pelo crânio que devam ser estes a ganhar mais.

O “comércio livre” e seus tratados são propagandeados como permitindo aos países pobres sair da pobreza e proporcionar aos consumidores acesso a bens mais baratos. A defesa dos interesses nacionais e populares é então caluniada como “protecionismo”. Com objetivos sedutores no papel, seja com argumentos tecnológicos, seja pela “competitividade”, as transnacionais (TN) obtêm o poder de destruir a vida das pessoas, mas são intocáveis e faz-se apelo à vinda do seu capital como um indiscutível bem, ignorando as consequências económicas e sociais e as exigências impostas.

Ora as TN sempre foram um perigo para os povos. Em seu benefício foram e são desencadeadas guerras, povos são atirados para o caos social e tragédias humanas. Não deixa de ser curioso que os estrénuos adeptos do “comércio livre”, ignorem o efetivo jugo das TN sobre os povos, ao abrigo de uma mítica “economia de mercado”.

Como habitualmente a defesa dos interesses dos mais ricos vem sempre mascarada com bons sentimentos para com os mais pobres. Na Inglaterra do século XIX os defensores do comércio livre diziam que a pobreza era causada pelo protecionismo e direitos aduaneiros – nunca pelo sistema de exploração capitalista! Note-se que quando a França e a Alemanha, desenvolveram as suas indústrias passaram a defender o protecionismo! A exploração desenfreada, essa manteve-se…

O mito da eficiência capitalista, oposto ao desempenho económico e social do Estado, conduziu a massivas privatizações, fonte de corrupção e tráfico de influências em que o interesse público não foi defendido, como o Tribunal de Contas relatou.

As privatizações são uma tentativa de salvar o grande capital da crise e da baixa da taxa de lucro pela monopolização da economia e da precariedade social. Um estudo do Transnacional Institute [4] concluiu sobre as privatizações que não há qualquer prova que demonstre que as empresas privadas fornecem serviços de forma mais eficaz que as públicas; em contrapartida fizeram cair salários, degradar condições de trabalho, aumentar desigualdades. Na realidade, ao fomentar a criação de monopólios estão a subverter o próprio conceito de eficácia capitalista…

Registe-se que nos primeiros seis meses de 2016, em Portugal, um conjunto de oito empresas privatizadas teve 1,33 mil milhões de euros em lucros, quase metade do défice público no mesmo período (2,8 mil milhões de euros). [5]

3 – A mistificação

O totalitarismo neoliberal, o “pensamento único”, não permite que Ideias, textos, autores, por exemplo apresentados neste site ou nos sites aí citados, sejam discutidos, analisados, sequer mencionados, na comunicação social controlada. No passado, a Igreja justificou a ordem monárquica como imutável e de natureza divina. Agora, papel equivalente está atribuído aos media para que a população não conceba outro sistema, outra economia política.

Os media não se limitam a ser agentes de desinformação, tornaram-se agentes da conspiração imperialista contra a soberania, o progresso e a paz dos povos. A propaganda procura de todas as formas que a lógica dos oprimidos seja um mero reflexo da dos opressores. Gente arregimentada anda há anos a perorar contra o “despesismo” do Estado em funções sociais, sem as quais quase 50% dos portugueses estaria na pobreza, porém recusam na prática a fiscalidade progressiva e ignoram o que seja a soberania do Estado sobre a riqueza criada no país.

A intoxicação das consciências sobre os direitos sociais e o papel do Estado na economia prossegue. A direita e a propaganda ao seu serviço apresentam as ditas “reformas estruturais” como fatores de “crescimento económico e emprego”. Mas essas “reformas” não são mais que as condições para a oligarquia, assumindo uma arrogância sem limites, ficar livre do controlo democrático e prosseguir atos de vigarice e mesmo criminosos,

Os oligarcas são apresentados como beneméritos da sociedade, agentes do crescimento, único recurso contra a pobreza, quando os factos provam justamente o contrário: absorvem pelas estratégias monopolistas e domínio sobre o poder político o resultado do trabalho alheio, seja do proletariado seja das MPME, e a riqueza do Estado, em nome da confiança dos mercados – eufemismo atrás do qual se esconde a oligarquia.

Os 30 mais ricos detêm de património líquido, segundo a Forbes, cerca de 950 mil milhões de euros; o 1% mais rico dispõe de 50% da riqueza mundial. Como relata a OXFAM: “Têm tudo e querem mais”.

O resultado são sociedades disfuncionais onde os psicotrópicos se tornam escape. O sistema produz seres humanos na insegurança quanto ao futuro, na apatia ou no desespero, na ansiedade que leva à depressão e à insanidade. Seres abatidos em nome da competição a favor de uma minoria de ultra-ricos. Seres amputados da tal “liberdade de escolha”, que serve à propaganda para dominar vontades.

4 – A transformação necessária

Uma época de proezas tecnológicas coexiste com uma economia baseada num irracional facciosismo, com a barbárie de criminosas guerras de agressão, duras políticas anti-sociais de austeridade, tudo e todos subordinados a bandos de gananciosos e vigaristas financeiros.

As políticas vigentes opõem-se a qualquer ideia de progresso e desenvolvimento social, a finalidade é tornar os ultra-ricos mais ricos e os povos dominados pela hipocrisia. A concepção que vigora é que ao povo basta-lhe ter um trabalho, quaisquer que sejam as condições, e consumir aquilo a que a publicidade incita. Contudo, nem isto o capitalismo se mostra capaz de satisfazer.

Engels em 1844 denunciava as horrorosas condições de trabalho vigentes, incluindo de mulheres e crianças. Houve de facto leis para limitar estas situações, mas com o movimento operário e socialista incipiente era como se não existissem. Compreende-se que para a direita o ideal seja o fim da contratação coletiva e dos sindicatos de classe de que são naturais inimigos.

O neoliberalismo, colocou o Estado ao serviço do grande capital, estabeleceu a infame “concorrência fiscal” e livre circulação de capitais para o ónus dos défices recair sobre as massas populares. Transformar a sociedade tem que ver como o papel do Estado se altera. É em volta do poder e do papel do Estado que se desenrola o mais intenso da luta de classes: o confronto entre a oligarquia e a democracia.

O papel do Estado democrático na defesa dos interesses do país e do seu povo foi usurpado pela ficção da “soberania partilhada” e da “governação à distância” que exprimem o domínio das potências hegemónicas na UE e na NATO. Que soberania partilha a Alemanha com Portugal, com a Grécia, com a Espanha, até com a França? Que solidariedade europeia existe quando os países periféricos são tratados como os PIGS? Que entidades “independentes” – da vontade dos cidadãos – têm o direito de determinar, como no fascismo “o que é melhor para os portugueses”?

O mito das “ajudas” capitalistas, como os fundos estruturais da UE, já foi comparado ao “queijo na ratoeira”. Na ratoeira da ingerência, das privatizações e das sanções. Nesta ratoeira a política de direita tem sido promovida, defendida e branqueada, traduzindo-se em pobreza, desindustrialização, desmantelamento da agricultura e pescas, desigualdades crescentes e estagnação

Instaurou-se um sistema que tenta resolver o acréscimo de contradições e demolidoras crises a que deu origem, aprofundando os erros e se mantém pela propaganda, pela chantagem e ameaças.

Um sistema incapaz de corrigir os erros e resolver os problemas que cria tem de ser substituído. As necessidades dos povos devem sobrepor-se aos tratados, sem o que estes se tornam “pactos de agressão”.

Neste sentido, o princípio básico de uma política democrática deveria ser: transformar o necessário para a maioria, no possível. Mas este possível, tem como condição necessária a maioria assumir a sua consciência de classe, uma consciência política e social capaz de fazer frente tanto à ideologia reacionária da propaganda oligárquica como às mistificações da social-democracia.

http://resistir.info/v_carvalho/mitificacao_e_mistificacao_17out16.html

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