‘Secundas’: desobediência e organização

imagemJean Tible – Teoria e Debate

Duas imagens em movimento expressam novas subjetividades que tomam corpo no Brasil recente, isto é, na última década.

A primeira, de novembro de 2015[2]. A secundarista Ana Júlia fala na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná e pergunta a quem pertence a escola para defender a legitimidade e legalidade do movimento de ocupação, essa presença intensa nos colégios e universidades (cujo pico alcançou o número de mil, país afora) que lhe teria mais ensinado sobre cidadania e política que muitos anos de aula. Ana Júlia vai em seguida criticar várias iniciativas do governo golpista nas últimas semanas (a dita reforma do ensino médio e a PEC 241/55) e também da extrema-direita emergente e sua escola sem partido. Tal projeto consistiria na promoção de uma escola homofóbica e racista, a criação de um exército não pensante de jovens. A isso ela opõe o movimento de ocupações que transformou adolescentes em cidadãos ativos. Ela interpela as forças da ordem no sentido amplo: os deputados, primeiro, mas também o país como um todo.

Os “secundas” executaram “um dos gestos coletivos mais ousados na história recente (…), esse movimento destampou a imaginação política”. Desse modo, “já não se tolera o que antes se tolerava, e passa-se a desejar o que antes era impensável. Isso significa que a fronteira entre o intolerável e o desejável se desloca – e sem que se entenda como nem por quê, de pronto parece que tudo mudou: ninguém aceita mais o que antes parecia inevitável (a escola disciplinadora, a hierarquia arbitrária, a degradação das condições de ensino), e todos exigem o que antes parecia inimaginável (a inversão das prioridades entre o público e o privado, a primazia da voz dos estudantes, a possibilidade de imaginar uma outra escola, um outro ensino, uma outra juventude, inclusive uma outra sociedade!)”[4]. Os “secundas” assustam.

Desobediência

A escola é uma prisão. No que poderia ser uma piada foucaultiana[6]. Dizer que a escola é uma prisão é uma verdade (cadeados mil, hierarquias sem sentido, autoritarismos variados, diretores de escolas que agem como carcereiros), mas pode se ater a uma denúncia importante, porém impotente. Além disso, todos os setores políticos e sociais no Brasil seriam a favor da educação; a educação como grande consenso nacional, ainda que um consenso oco. A força pragmática e a ação dos estudantes desestabilizaram isso tudo e abriram brechas para pensarmos e mudarmos essas questões pra valer.

As escolas ocupadas mudam essa chave. Uma apropriação simbólica e concreta8; a escola de luta como pré-figuração de uma escola reinventada ou que nem escola seja mais. Cuidando de si e dos outros[10]. Podem-se compreender, nesse plano, as mudanças menos como projetos de crescimento progressivo institucional (com demandas “mais realistas”, isto é, menos imaginativas e mais comportadas) e mais numa ação de romper a camisa de força da política institucional via mobilização “por fora”[12] e coloca a “necessidade de um cuidado das conexões (…), dos laços que ligam movimentos de tipos diferentes, organizados a partir de interesses e problemas diversos”[14]. Todo um ecossistema autônomo no sentido amplo (Movimento Passe Livre –MPL e muitos outros coletivos e iniciativas como a Marcha da Maconha, ocupações dos aparelhos culturais contra a extinção do Ministério da Cultura, cryptorave, mulheres e LGBT contra a cultura do estupro, torcidas organizadas contra a Globo, Marcha do Orgulho Crespo) e os “secundas” abriram um novo imaginário radical. Num sentido talvez diferente do qual essa palavra é em geral empregada, eles deram uma certa direção para as esquerdas. Ninguém luta mais (ou não deveria) sem levar em conta essas invenções, enfrentamentos e ousadias recentes – as ações diretas, atos, ocupações de praças, aberturas e corpos em luta.

Claro que o significado de “aprender” com os “secundas” não é óbvio e exige uma série de exercícios de criação política, assim como “honrar” os zapatistas, as curdas, junho de 2013 ou o petismo em seu tempo subversivo. Os “secundas” mesmo estão vivendo e sofrendo as agruras de continuar, para além da explosão e exuberância das mobilizações, e tendo que encarar uma pesada repressão (durante as ocupações e depois), as dificuldades de manter o comando das escolas ocupadas e suas articulações e o fato de não conseguirem constituir maiorias que os apoiem nas escolas. A clássica questão da organização nesses novos tempos se coloca para as esquerdas, tanto as partidárias quantos as autônomas, passando pelas híbridas. Como escapar da “lei de ferro das oligarquias partidárias”[16]? Como lutar e trabalhar produtivamente as tensões e laços entre “revolta” e “organização”, “espontaneidade” e “dia a dia”, “horizontalidade” e “estrutura”. Não podemos fazer desses pares um conjunto de alternativas infernais. Ao contrário, esse tensionamento permanente pode nos permitir pensar-fazer horizontalidades estruturadas, organizações descentralizadas, política distribuída, (con)federação de lutas, redes de apoio mútuo, plataformas de colaboração, criação coletiva e produção de novas relações. Não domesticar essas oposições, mas experimentar sua coabitação e usá-la para a invenção de outras ecologias políticas[17]. Não por acaso, Rosa Luxemburgo volta a incendiar e inspirar práticas e imaginários.

Jean Tible é militante e professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo. É autor de Marx Selvagem (Annablume, 2013; 2. edição, 2016) e co-organizador de Junho: Potência das Ruas e das Redes (Fundação Friedrich Ebert, 2014) e Cartografias da Emergência: Novas Lutas no Brasil (FES, 2015). Textos e livros disponíveis em: https://usp-br.academia.edu/JeanTible

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/-Secundas-desobediencia-e-organizacao/13/37496

Categoria