Nota Política do PCB de Santa Maria – RS

A CONSTRUÇÃO DA CIDADE CULTURA E A FESTA DA CALOURADA DE 2023/1

Nas postagens de diversos órgãos de imprensa referentes à Calourada de 2023/1, promovida pela Prefeitura Municipal de Santa Maria em diálogo com o DCE-UFSM e outros setores, chovem comentários reacionários adjetivando as juventudes de toda sorte de grosserias. São “vagabundos”, “baderneiros”, “sem vergonhas” aqueles que reivindicam acesso à cultura e ao lazer na cidade que, historicamente, é reconhecida como Cidade Cultura. De outra mão, os comentários demandam investimento público em saúde, educação, segurança e tantos outros direitos, sem entretanto reconhecer a cultura como parte necessária destas reivindicações.

Há 80 anos, o Brasil determinava a jornada de 8h de trabalho diárias, limitando-a a 44h semanais. Em 2023, aplicada a Contrarreforma Trabalhista, trabalha-se muito mais, sem considerar as horas gastas em transporte, em trabalho doméstico executado sobretudo pelas mulheres, ou então em estudo e qualificação – do qual frequentemente abrimos mão ao constatarmos a impossibilidade de dedicar 10 ou 12 horas diárias ao trabalho, em geral informal e precarizado, dar conta de um descanso mínimo e da reprodução cotidiana da vida. Neste contexto, a reivindicação da jornada de trabalho de 30 horas semanais sem redução salarial apresentada pelas e pelos comunistas durante as eleições de 2022, através da campanha da camarada Sofia Manzano, não foi arbitrária. Quem, na Cidade Cultura, desfruta de descanso, lazer, desporto, arte e cultura?

Longe de tantos estereótipos, os grupos que ocupam as ruas e praças do centro de Santa Maria à noite são compostos por jovens trabalhadores, frequentemente submetidos a rotinas exaustivas de conciliação entre trabalho e estudo. Cosmopolita, Santa Maria recebe estes jovens de inúmeras regiões do estado, do país e do continente, sem dar vazão, de forma acessível e popular, à confraternização desta diversidade que tanto enriquece nosso município. Os grandes empresários de Santa Maria absorvem estas juventudes em suas lojas e comércios. Não porque se interessam em gerar empregos e fortalecer a economia local do ponto de vista daqueles que, contando trocados, a consomem, mas porque, com as contrarreformas neoliberais que ajudaram a implementar, podem explorar ainda mais sua força de trabalho, inclusive recusando-se a formalizar as relações empregatícias e assegurar direitos trabalhistas mínimos. Não é do interesse destes setores que suas empregadas e empregados se preocupem com o acesso à arte, com o consumo de produções culturais que tenham como objetivo simplesmente o descanso: querem nosso tempo e nossa energia voltada apenas para o seu enriquecimento.

A Lei Complementar 9.397/2022, de autoria do Vereador Getúlio de Vargas (Republicanos), versa sobre a proibição do consumo de bebidas em vias públicas entre as 00h e as 7h, e vem sendo idealizada desde o final do século passado. Aprovada em outros locais, chegou a ser vetada por se tratar de iniciativa inconstitucional. Menos como Cidade Cultura, Santa Maria vem apresentando seu profundo conservadorismo expresso na criminalização e ódio à juventude que se apresenta, na verdade, como setor estratégico para a economia local. Os defensores desta legislação alegam que se trata, apenas, de respeito ao sossego público. Embora seja certo que, exaustas, as trabalhadoras e trabalhadores santamarienses merecem descansar, fato é que o objetivo fundamental por trás da iniciativa não envolve nenhum respeito aos trabalhadores, mas se refere muito mais à higienização do centro para a especulação imobiliária e ao incentivo aos grandes empreendimentos que mercantilizam a cultura e o lazer acima da vida humana – cujo caráter é bem expresso pelos principais responsáveis pela tragédia que vitima nosso município há 10 anos, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, responsáveis pelo incêndio da Boate Kiss. O combate ao lazer da juventude nos espaços públicos e o sossego às casas noturnas fazem parte da lógica privatista que sonda Santa Maria.

O desrespeito à nossa vida é cristalinamente expresso na campanha realizada pelos comerciantes da cidade durante o período pandêmico. A campanha “Empresas abertas salvam vidas”, fortemente apoiada por vereadores do mesmo setor que hoje apoia a Lei contra o consumo de álcool, não expressava a mesma preocupação com a vida e a saúde da população que hoje é usada como fantoche para a defesa da proibição do consumo de bebidas na cidade durante a madrugada. Um dos elementos apontados pelo autor do Projeto de Lei encontra pouco aporte na realidade material, já que o Vereador aponta que os jovens ocupando estes espaços podem, a qualquer momento, “entrar em um carro e atropelar um grupo de pessoas”. Ironicamente, a juventude que ocupa as ruas para o lazer em nossa cidade é a juventude mais precarizada e que, raramente, tem à sua disposição um automóvel, ficando refém de um precário sistema de transporte público hegemonizado há meio século pelas mesmas empresas. Um ponto não abordado pela comissão são as casas noturnas da cidade, estas sim frequentadas por donos de automóveis que, frequentemente, saem embriagados pela cidade e reclamam junto às autoridades o alto custo das multas decorrentes dos riscos que oferecem à vida alheia.

Na verdade, do ponto de vista do transporte público, a Calourada 2023/1 avança no que se refere ao acesso ao evento, com linhas de ônibus gratuitas que acessam apenas as regiões do centro e Camobi. Resta saber, por outro lado, se o acesso à cultura ficará restrito a um eventual anual, ou se haverá políticas capitaneadas pela Prefeitura Municipal no que se refere à ampliação do direito de acesso à cidade, com redução da tarifa, ampliação da frota, das linhas e dos horários, bem como da infraestrutura de transporte coletivo de modo permanente. Embora incontestavelmente louvável iniciativa de ampliar o acesso a este serviço, de nada basta que, da parte de um importante instrumento de articulação das lutas populares de Santa Maria como é o caso do DCE-UFSM, esta movimentação esteja restrita ao período que antecede a eleição da entidade. Senão, de que outras formas é possível justificar tamanha energia dedicada ao evento, quando em 2022 esta mesma entidade não pôde articular sequer uma agitação digna contra o aumento da tarifa no ano em que se perspectivava, por parte dos setores populares, o processo de encampamento e municipalização deste serviço tão essencial à classe trabalhadora santamariense?

Mais ainda, considerando as propostas da gestão no que se refere à retomada do debate sobre o Passe Livre, que nunca ocorreram. Como direito essencial para acessar os demais serviços, o acesso ao transporte deve ser pauta prioritária para aqueles que, eleitos para representar a classe trabalhadora, propõem-se a defender seus interesses. Ao fim e ao cabo, são estas políticas de restrição ao acesso à cidade que fundamentam a nova configuração da festa da Calourada, divulgada em 2 de março, idealizada através de lobby destes setores empresariais junto à Prefeitura. Embora a mudança de local da Praça do Brahma para a Gare da Estação, espaço histórico do município, tenha causado grande polêmica, as contradições mais explícitas dizem respeito à manutenção de uma política de gentrificação do centro e criminalização da juventude.

Em primeiro lugar, se o sossego público é a principal preocupação, qual foi a resposta dada pela Associação de Moradores Próximos à Ferrovia sobre a mudança de local? A Prefeitura de Santa Maria está, finalmente, operacionalizando uma política de garantia de moradia digna a estes trabalhadores? Parece-nos evidente que, quanto mais precarizado e explorado for o setor da classe trabalhadora, menos recebe atenção e investimento do Poder Público. Em segundo lugar, preocupa a escolha do novo local como endosso ao projeto privatista que ameaça a Gare da Estação, bem como ainda ameaça o Centro Desportivo Municipal (Farrezão), há alguns anos. De outro modo, o centro concentra importantes investimentos imobiliários de grande valia a empresas como a Construtora Jobim, recentemente envolvida em escândalo relacionado às infelizes, homofóbicas e sorofóbicas falas de seu diretor, Gustavo Jobim. O que acontecerá com o local caso o parasitismo das empreiteiras tomar sua posse? A festa dos calouros se tornará um espaço de acesso pago e privado? Qual é a política defendida pelas direções do movimento estudantil para este espaço?

A realização da festa do Brahma na Praça Saturnino de Brito é expressão de uma manifestação espontânea e tradicional de ocupação dos espaços públicos pela juventude santamariense. Enfrentando cada dia maiores restrições ao acesso popular à cultura, as e os jovens trabalhadores de Santa Maria desenvolveram seus próprios circuitos de juventude, conectando os fluxos entre os poucos espaços disponíveis para a confraternização e lazer. Alterados com frequência por intervenção direta da Prefeitura, hoje espaços tradicionais de ocupação cultural recebem deliberada restrição de energia elétrica, policiamento intensivo para apreensão de bebidas ou drogas ilícitas, mas pouca atenção quando se trata de crimes de ódio ou violência explícita. A falta de iluminação nas Praças do Brahma e dos Bombeiros, espaços típicos de reunião das juventudes, não nos parece combinar com a política de fortalecimento da segurança pública, cujas abordagens policiais e o aumento da repressão se direcionam, em especial e violentamente, à juventude negra e periférica.

Esta chamada “cultura de front”, no qual se ocupam ruas e imediações de bares e boates, foi resposta à necessidade de viabilizar o que Santa Maria tanto pena a compreender como direito básico: o acesso à cidade e à cultura. O respeito à memória e à tradição destas juventudes não deve moralizar a mudança de local da Calourada já que, para as e os santamarienses, o espaço aberto e o rígido cumprimento das legislações de segurança são fundamentais para que a cultura seja experimentada com garantia do respeito à vida. Complementarmente, a segurança não se refere apenas ao local de realização do evento ou à garantia de policiamento, uma vez que, para aquelas e aqueles que têm em sua pele um alvo racial, a presença da Brigada Militar e das demais forças de segurança pública representam mais risco de violência do que garantia de respeito à vida. O perímetro desenhado por estas forças no entorno da Gare não deve permitir, em hipótese alguma, que neste ou em qualquer outro canto da cidade, permita-se a repressão e a agressão contra as juventudes. Nesse sentido, a defesa da presença das forças militarizadas como sinônimo de segurança – ainda, defendendo a garantia da não repressão das juventudes -, parece-nos, no mínimo, confusão ideológica por parte do DCE-UFSM, que trabalhou no sentido de viabilizar policiamento sem manifestar o evidente caráter intrinsecamente repressor destas instituições, particularmente no que toca a grupos minoritários da classe trabalhadora.

A proporção que a movimentação das juventudes toma em ocupar o espaço da Praça do Brahma deve ser celebrada como vitória. São raras as vezes em que um movimento organizado de forma autônoma toma tal grandiosidade a ponto de se tornar um episódio no calendário anual da cidade e, ainda, ser incorporada pelo Poder Público a fim de garantir sua organização. Infelizmente, o que ocorre após sua institucionalização é a decadência total da participação da juventude nas tomadas de decisão sobre este evento, restando apenas o DCE-UFSM como representante da comunidade acadêmica, que lamentavelmente não honra seu papel.

No que toca à Calourada, o Diretório Central das e dos Estudantes da UFSM (DCE-UFSM), veio a público em março divulgar sua participação no evento organizado e financiado pela Prefeitura. Ainda que não manifestem contrariedade à realização no Brahma, não exploram as reais motivações pelas quais a mudança de local ocorre, perdendo uma importante oportunidade de politizar suas bases no sentido da defesa e construção de uma cultura popular em Santa Maria. O DCE-UFSM manifesta que sua participação no evento fora pensada na expectativa de disputar o espaço, construído em diálogo com as bases estudantis. Todavia, o constrangimento foi tão grande que, em respeito à democracia estudantil, a entidade foi obrigada pelo Conselho de Entidades de Base da UFSM a publicar, em 16 de março, uma retratação pública sobre sua arbitrariedade na decisão pela adesão no evento construído em lobby com empresários locais pela Prefeitura de Pozzobom (PSDB).

Conforme as palavras da entidade, um pedido de desculpas não faz o tempo voltar e, por esta razão, não basta que estas iniciativas, por mais bem intencionadas que sejam, ocorram somente em resposta aos interesses sempre espúrios daqueles que comercializam nosso direito à cultura. Em seu programa, a gestão Esperançar expressa seu compromisso com a retomada de festivais igualmente tradicionais do movimento estudantil santamariense, como o Nossas Expressões; a retomada dos espaços tradicionais de atividades culturais, como a Ponte Seca e a Casa do Estudante Universitário I; além da defesa do Caixa Preta, dos Jogos Universitários e da construção de um Centro Cultural nas instalações da Boate do DCE. Frente a estas promessas de campanha – e tantas outras que enfrentam a mesma situação de paralisia, talvez, em alguma medida, porque não se comprometeram a emplacar lutas pela revogação do Código Disciplinar Discente, que obstaculiza a realização de eventos culturais na Universidade -, parece-nos que a Juventude do PT e o Levante Popular da Juventude, organizações que dirigem o
movimento estudantil da UFSM, deixam a desejar também em outras iniciativas que dizem respeito ao fortalecimento da contracultura santamariense.

Esta gestão, como continuidade de uma tradição dirigente que festeja mais de duas décadas de direção do movimento estudantil da UFSM, deve ainda aprender a honrar seus compromissos junto à base que dirige. Para as e os comunistas do PCB e de seu complexo partidário, o respeito à democracia estudantil, entendida como construção real e cotidiana, é precisamente o que confere a envergadura necessária para intervir nas grandes lutas educacionais do município. De nossa parte, aquilo que é de interesse da classe trabalhadora deve ser construído junto com a classe trabalhadora. Importa-nos mais agora que resultado terá esta movimentação. Coerente com o que vem defendendo, ainda que de forma contraditória, o DCE-UFSM deve se comprometer não apenas com a não privatização e com a ocupação dos espaços públicos pela juventude, mas também com a construção ampla de uma política de cultura popular para Santa Maria.

Sem ilusões com o projeto democrático-popular encabeçado pela gestão Esperançar e seus dirigentes, o Partido Comunista Brasileiro, sua juventude, sua corrente sindical e seus coletivos manifestam sua intransigente defesa de um programa de cultura que efetivamente responda às demandas da classe trabalhadora santamariense. As e os comunistas reivindicam a construção permanente de centros culturais no município, geridos pela classe e para a classe. Iniciativas como as Batalhas de Rima organizadas pelo CO-RAP, o Caixa Preta, o Teatro Por Que Não? e as ações trabalhosamente realizadas pela Casa do Estudante Universitário I em defesa de sua própria existência são expressões de resistência popular cultural nesta cidade que tanto depende de sua juventude e que tanto a criminaliza.

Desta sorte, a construção de uma contracultura efetivamente capaz de intervir na disputa ideológica de Santa Maria deve reivindicar, por parte de seus setores mais radicalizados, a insubmissão à lógica mercantilista e restritiva dos editais públicos que tanto reforçam a competição entre artistas locais, quase sempre autônomos e pejotizados, e excluem, em especial, as camadas mais precarizadas deste setor, sem realmente assegurar segurança e dignidade trabalhista para aquelas e aqueles que efetivamente dedicam suas vidas à construção e manutenção de uma cultura coerente aos interesses das e dos trabalhadores. Será preciso, reforçamos, garantir espaços permanentes que proporcionem o acesso à cultura como parte indispensável da vida digna. Em tempo, compreende-se que é de direito das juventudes ocupar o espaço público urbano para o lazer sem represálias por parte da Prefeitura e de suas forças de segurança que, de outra parte, deveria ser responsável pela garantia de condições dignas para o exercício deste direito – como a iluminação das praças, a desburocratização da concessão do espaço, o transporte
ampliado e a segurança sem repressão.

EM DEFESA DA OCUPAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS, DO ACESSO À CIDADE E DA CULTURA POPULAR SANTAMARIENSE!

PELA CONSTRUÇÃO DE CENTROS CULTURAIS MUNICIPAIS AUTOGERIDOS PELA CLASSE TRABALHADORA!

CONTRA A REPRESSÃO POLICIAL!

PELO DIREITO AO TRANSPORTE PÚBLICO GRATUITO, COM ACESSIBILIDADE E DE QUALIDADE!