O DOMINGO SANGRENTO[1]
Artigo de Thiago Araújo, militante da célula de Direitos Humanos do PCB-RJ e mestre em Sociologia
O primeiro dia do ano foi marcado por uma rebelião prisional no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, Amazonas. Ao fim de cerca de dezessete horas de duração, o cárcere se transfigurara num rio de sangue e corpos desmembrados. O senhor que atualmente ocupa a Presidência da República, caracterizou o ocorrido como um “acidente pavoroso”, seu Secretário Nacional de Juventude, mais incauto e fazendo jus à escória que o acompanha, não poupou esforços ao demonstrar que há pessoas que carecem de um nível mínimo de inteligência para perceberem a sua própria ignorância, reproduzindo, com firme convicção, uma pérola de crueldade e cretinismo: “Eu sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, né? Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”.
No entanto, o que pensamos nós, comunistas, sobre o domingo sangrento? Não obstante episódios como estes sirvam para que tenhamos em conta o grau de barbárie que caracteriza as relações sob a ordem do capital, é imprescindível que atentemos para o que eles expressam. Procurarei discorrer sobre alguns pontos que me parecem ser centrais para a compreensão do ocorrido, respeitando, obviamente, as possíveis discordâncias que possam decorrer deste pequeno ensaio.
1) PUNIÇÃO À VENDA: A CRISE DO SISTEMA PRISIONAL COMO UM “ACIDENTE”
Ao tratar um massacre como acidente, Temer expressa justamente aquilo que particulariza o modo pelo qual a burguesia expõe os problemas constitutivos do modo de produção capitalista. Se crises econômicas são vistas como contingências ocasionadas por uma má gestão estatal, mas remediáveis por apertos nos gastos públicos, esvaziamento de direitos e redução de encargos trabalhistas, o mesmo não poderia deixar de ocorrer com a crise do sistema carcerário. Massacres como estes são tidos como imprevistos desagradáveis, atribuíveis às feras que lá deveriam estar para serem ressocializadas, mas adotam um comportamento bestial, que só pode ser resolvido mediante processos de privatização, responsabilização dos gestores e apelos de agravamento penal.
Como é patente, os clamores privatistas não percorrem os processos de criminalização, dependentes de uma razão instrumental que legitime juridicamente a punição dos miseráveis. Todavia, não há o menor problema em transferir a gestão das prisões às entidades mais competentes para lidar com o problema: grandes corporações, que não sofrem com a burocracia inerente ao Estado, sendo habilidosas como gestoras e, portanto, reduzindo os gastos públicos. Dois inconvenientes para a burguesia: a) o Complexo Penitenciário Anísio Jobim já fora privatizado; b) as evidências empíricas apontam o exato contrário em relação às privatizações de presídios[2].
Diante de um quadro tão constrangedor, há que se esvaziar o debate acerca da real competência e verdadeiros interesses dos gestores privados, resumíveis da seguinte forma:
(…) prisões privadas tomaram dinheiro dos ricos para construir prisões para trancafiar os pobres e cidadãos desproporcionalmente minoritários, dando aos ricos uma oportunidade de enriquecer ainda mais pelos pobres aprisionados. (SELMAN; LEIGHTON, 2010, p. 4)
A mídia burguesa decidiu pelo ardil[3], ignorando tais fatos e expressando preocupações condoídas pela situação dos presídios brasileiros, que, ao que parece, encontram-se em estado de superlotação – algo que a criminologia crítica denuncia há décadas. A solução não poderia ser mais pueril: se há uma carência de vagas, que se construam mais presídios. Temos, assim
a) O problema que interessa resolver: aumento dos lucros das corporações envolvidas e incapacitação seletiva dos criminalizados.
b) O problema que não merece menção: a natureza deletéria do sistema prisional, utilizado como braço armado do capital para o controle dos miseráveis.
2) IMMANIS PECORIS CUSTOS, IMMANIOR IPSE[4]: MAIS UM ATAQUE AOS DIREITOS HUMANOS.
As vozes que se levantam, bradando para que aquilo que não deve ser mencionado seja pautado, sempre são vistas com repulsa. Esta tem sido, desde sua gênese, a história dos comunistas – e o mesmo não poderia deixar de ocorrer com Luís Carlos Valois, o juiz da Vara de Execuções Penais que insiste em ver os presos como seres humanos e, por essa razão, é respeitado por todos os presos.
Como é possível que tamanha barbaridade não seja resolvida mediante o agravamento da barbárie? Denunciando a ideologia e a repressão burguesas, Valois cumpre o seu papel de juiz com esmero e dedicação, respeitando os limites de intervenção estatal e procurando fazer cumprir (mesmo que parcialmente) a Lei de Execuções Penais, tendo sido apelidado de “São Francisco de Assis do sistema penitenciário[5]”. Como explicar que alguém que deveria estar em seu cargo justamente para dificultar a vida de feras decida tratá-los como semelhantes? Se “bandido bom é bandido morto” figura como dogma, este juiz “humanista” deve ser bandido também.
O blog do Fausto Macedo, um serviçal do Estadão, fez justamente isto, ao tentar vincular Valois à Família do Norte[6] (FDN) – responsável pelas mortes do massacre. Como se não bastasse, o magistrado já sofreu ameaças do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização que rivaliza com a anterior[7].
Não tomemos isto como um ataque isolado; como um acidente que se inicia em uma postagem e se encerra em uma devida retratação. O ataque sistemático aos movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos e demais organizações com corte de classe vem, desde há muito, sendo empreendido sem quaisquer limitações. O bombardeio contra o “juiz garantista” é mais um aviso do que está por vir.
Em uma postagem recente em sua página no facebook, Valois deu um depoimento melancólico, expressando os traumas sofridos pelas cenas macabras que presenciou, algo que poderia pôr em cheque a sua própria atuação, visto que seria impossível continuar sem que pudesse ver os presos como seres humanos. Ele nos lembra de Ivan Ilitch, que “(…) a cada momento, e não obstante todo o esforço na luta, (…) estava cada vez mais perto daquilo que o horrorizava[8]”.
Este não foi o primeiro ataque, nem será o último. Não foi o primeiro massacre prisional e, malgrado significativo, também não será o último[9]. A violência intrínseca ao sistema de justiça criminal encontra seu eco mais profundo nos processos de estigmatização e criminalização inscritos ao sistema carcerário. Portanto, é imprescindível que nós comunistas sejamos, também, abolicionistas penais.
Que nossos valores e nossa consciência de classe sejam capazes de nos unir e nos organizar em torno de um projeto de mundo radicalmente diferente deste: um projeto comunista. Parte deste projeto impõe uma paráfrase radical ao clássico de Brecht: o que é um massacre prisional perto da construção de um presídio? Somos todos Valois, à medida em que somos os “inimigos públicos”, os “defensores de bandidos”, os “lunáticos” que ousam sonhar e realizar e que, por isto, se recusam a naturalizar a barbárie.
[1] Dedico o presente artigo a Luís Carlos Valois, intelectual inventivo e juiz democrata que, navegando contra a maré, dá mostras dos altos e graves deveres de sua prática profissional.
[2] Cf. SELMAN, Donna; LEIGHTON, Paul. Punishment for sale: private prisons, big business, and the incarceration binge. New York: Rowman & Littlefield, 2010; HERIVEL, Tara; WRIGHT, Paul. Prison profiteers: who awakes money from mass incarceration. New York: The New Press, 2007.
[3] Ainda que o problema seja de responsabilidade da corporação que gere o presídio, isto, em nenhuma medida, serve para questionar o próprio processo de privatização. Basta que se leia a matéria de O Globo (08/01/2017), que entra no debate com mais acusações de corrupção (o rótulo que parece encapsular a totalidade da vida social) e lança mão de nova expressão: doação premiada.
[4] “Guardador de um rebanho de monstros, ele próprio mais monstruoso ainda”. IN: HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, 162.
[5] http://www.conjur.com.br/2017-jan-04/juiz-atou-presidio-am-ver-presos-pessoas
[6] Facção aliada ao Comando Vermelho (CV).
[8] TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 74.
[9] O Domingo Sangrento já vem se espalhando, como rastilho de pólvora, por outros presídios brasileiros. Trata-se de um problema estrutural, uma vez que
Ilustração: Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, foi palco de rebelião que deixou seis dezenas de mortos Foto: Marcio SILVA. AFP