A aberração toma conta dos salões ou a etnografia da cena cotidiana?

imagemPor Milton Pinheiro.

O Brasil talvez seja um dos lugares mais inóspitos do mundo para se viver nesse momento tão complexo, quando os interesses das classes dominantes estão pautando a vida social através da mídia, no comportamento celerado do congresso nacional, no judiciário, nas ações da polícia e até nas ruas.

Não pretendo debater nesse pequeno texto o caráter da conjuntura política. Não entrarei no mérito dos desenlaces premeditados pelo lumpesinato da política no balcão do congresso nacional. Não está no escopo deste artigo examinar as artimanhas das frações da burguesia, e a suas ações, na fermentação de PECs e MPs para proteger os interesses do rentismo e de outros setores no consórcio que saqueiam o fundo público.

Não quero discorrer sobre a relação do governo usurpador, e seu mordomo ilegítimo, com a formação de quadrilha que opera a divisão do erário público identificado pelas delações premiadas… Não debaterei a sanha “ética” e “moral” desses segmentos médios da população brasileira, que em desespero político, brada em defesa de um golpe militar, esquecendo o que foi a corrupção e os serviços públicos durante o período burgo-militar de 1964-1985… Não, não vou analisar o papel dos comerciantes da fé que fizeram do templo um balcão de negócios. Por fim, embora muito importante, não examinarei o combate aberto que setores relevantes dos trabalhadores e da juventude estudantil realizam nas ruas, nas escolas e universidades ocupadas, nas fábricas e no campo.

Contudo, depois de muitos “nãos”, quero dizer que temos alguns “sins” para examinar sem muitas pretensões uma determinada forma de contaminação nacional: sim, temos a manifestação de bizarrices que tem tomado conta dos salões… Sim, temos a construção acelerada do obscurantismo… Sim, o reacionarismo contaminou o pragmatismo de setores médios da sociedade… Sim, está sendo construído um profundo ódio contra os pobres em nosso país… Sim, a ignorância e a farsa têm sido o prato diário dessa manada média da população nacional… Sim, eu acuso, a burguesia retrógrada e a classe média pragmática – a partir dos seus extratos superiores – alimentam com farto combustível o fascismo cotidiano.

Mas a forma como se apresenta essa ópera bufa, de triste e refutável qualidade, no espaço social do Brasil colonizado, tem um perfil estético que se manifesta como guerra de posição no cenário da vida cotidiana. Será que poderíamos discorrer sobre esse levante estético bizarro para tentar compreender a manada que toma conta dos salões?

Creio que, sem nenhum preconceito, mas apenas por interesse antropológico, podemos entrar no campo da etnografia para descrever a manifestação do lixo “social” que infecta com a sua presença viral os espaços públicos.

Ao adentrarmos o espaço comum dos aeroportos encontramos sempre a galinhada verde em animado papo sobre o Brasil. Trata-se da sua náusea em morar entre nós e a manifestação da preferência por Miami, sempre de forma comparativa.

De repente um jovem mental, mais velho do que a noção de que a mulher tem que casar virgem, invade sua página nas redes de contágio e diz – muito irritado – que o PT é comunista e que o escroque do Olavo de Carvalho está certo.

Nos defrontamos com moças e senhoras, daqueles extratos superiores da manada média, com enormes relógios dourados, cordões e pulseiras de igual coloração, envolvida por roupas e bolsas de tecido de oncinha e adornado de lantejoulas. Sem falar nos famosos óculos, estilo “mulher” de prefeito do interior, que em situação de comicidade deveria ser usado para evitar tempestades de areia em algum deserto… Em situação de bizarria similar, senhores e playboys demonstram os mesmos habitus. É a presença indefectível da cafonice e da ostentação que invade o convívio social e vulgariza a estética.

Agora, em proporção trágica, para essa turma obsoleta – com prazo de validade vencido – encontra-se a manifestação do comunismo em tudo: até na bandeira do Japão… Manifestação mais que segura da obtusidade que anima a interpretação política daqueles que são, e ficarão, conhecidos na história do tempo presente como coxinhas.

Sempre podemos ter algo mais “complexo” para identificar a desrazão. Vejamos, tem algumas manifestações da forma estética, sem conhecimento do conteúdo, que ficam apenas na apresentação do invólucro: usa barba de árabe, mas é islamofóbico. Veste-se como a juventude questionadora dos anos 1980, mas seu sonho não passa da tentativa de ser gerente de alguma ‘firma” e para tal o perfil mais adequado é o rapaz vazio do trivago. O perfil ecológico dessa escória se resume à estética do hippie de boutique, ou coxinha sustentável, que prefere hospital para cachorro do que recurso para o SUS. Todos são iguaizinhos, pensando que são únicos e diferentes.

Outra cena bizarra que invade o cotidiano é ver manadas de coxinhas manifestando-se por diversos salões do Brasil contra a corrupção vestidos com a camisas da CBF, entidade de caráter “feudal” com largo histórico de corrupção. Será aberração ou decomposição do caráter dessa gente, em seus extratos superiores?

Mas, eis que de repente, surge algo curioso. O pobre, mesmo impactado pela indigência, mostra-se ágil na interpretação do cotidiano. Ele tem suas táticas de sobrevivência: observo na Avenida Paulista – onde a aberração tomou conta do salão – a manifestação dessas estratégias inovadoras. O mendigo já efetivou a companhia de um cachorrinho para solicitar a esmola: “contribua para que possa comprar a ração do cachorro e, se possível, uma marmitex para mim”. Para além da genialidade do pobre, podemos identificar a desumanidade da “classe” média.

Outras alegorias que podem nos ajudar a entender essa visão do inferno, como instrumento para explicar essa pretensa etnografia das aberrações, pode ser a bizarria que se aproxima do bar intergaláctico do filme Blade Runner, de Ridley Scott, quando pessoas de extratos inferiores na pirâmide da manada média participam de manifestações, com nítido caráter de colonizado, e que essas pessoas por sua “cor”, classe social, condição socioeconômica sempre sofreram a ação violenta dos opressores. E elas manifestam-se, vindo da zona leste de São Paulo, defendendo a candidatura de Donald Trump no salão da Paulista; quando candidatos negros e homossexuais, nas últimas eleições posicionaram-se contra as políticas de reparação e combate as opressões; ou quando esteticamente se agrupam na polarização das camisas, usando a marca Tommy Hilfiger, cujo dono afirmou que no Brasil sua marca tem que ser cara para impedir que pobres a usassem.

Essa quadra histórica, quando tudo pode se transformar no seu contrário, é perturbadora para a ideia de progresso social e civilizatório. O governo do ilegítimo Michel Temer, a partir da ampliação das balizas da autocracia burguesa, está criando um Estado de Exceção, alimentando com seu (des) governo a tragédia social.

Não iria muito longe do ponto de vista ideológico para sugerir uma resposta política dos de baixo neste momento histórico, afinal, como afirmava um pensador social alemão, a humanidade só se propõe aquilo que ela possa realizar. Portanto, ficaria apenas em um bom debate feito sobre a introdução de um determinado artigo na atual constituição italiana que nos remete a um clássico direito social: “Quando os poderes públicos violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição, a resistência à opressão é um direito e um dever do cidadão”. Portanto, é mais que imperioso entendermos que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência” (Walter Benjamin, Teses “Sobre o conceito de história”).

Trabalhadores, às barricadas!

Milton Pinheiro é cientista político e pesquisador da área de história política. Professor do Programa de Pós-graduação em História, cultura e práticas sociais da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Tem vários livros publicados, entre eles, Ditadura: o que resta da transição (Boitempo, São Paulo, 2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

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