Diante da dor dos outros*

imagempor Golbery Lessa

Antes dos grandes massacres existe um período de luta em torno da estigmatização dos adversários e os massacrados são sempre os perdedores desta contenda discursiva. Esse jogo sórdido expressa uma decadência civilizacional determinada pelo fato de os principais protagonistas não estarem à altura das tarefas impostas pela história em termos de compreensão da realidade e propostas políticas. Uma coisa é aceitar a dimensão bélica da esfera política, incontornável nas revoluções populares e nas guerras contra o fascismo, outra é acatar a ideia absurda de extermínio moral e físico dos adversários. As constantes e crescentes inciativas de estigmatização dos adversários políticos no Brasil dos últimos anos, principalmente a partir de 2013, deveriam nos mobilizar mais seriamente para a efetivação de ações individuais e coletivas com o objetivo de sustar a atual marcha da insensatez que tem inviabilizado o debate e preparado tragédias.

Apesar de ter singularidades, o conteúdo e a forma da atual onda de mútua estigmatização entre os brasileiros não é uma novidade na história do país e nem é determinada pela existência das redes digitais. Ao contrário do afirmado por uma persistente lenda nacional, a sociedade brasileira nunca foi particularmente pacífica, sempre desrespeitou a alteridade e os padrões de civilidade no espaço público. Para Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, o “homem cordial brasileiro” não seria bondoso, mas movido pelo coração, pelas paixões, boas ou más, em detrimento da razão. Acolheria com maior amor e mataria com mais o mais ódio. Esta constatação verdadeira não deveria surpreender num país estruturado a partir da escravidão e do consequente massacre sistemático de índios, negros e brancos pobres.

Não existe justificativa racional para que a análise da moralidade dos governantes seja o centro do debate público, mesmo sendo verdadeiro que o tema não é irrelevante para as questões relativas ao Estado. A moral de indivíduo ou grupo A ou B não pode ser o centro do debate porque o determinante do grau de corrupção de um sistema político é o desenho concreto e as possibilidades estruturais das instituições. Ao longo da história do Brasil e de outros países, foi frequente o fato de que o baixo nível moral das intervenções e das atitudes no espaço público tenha ocorrido no contexto de um presumido esforço de combate à corrupção. Isso aconteceu e ainda acontece porque a alegação repetida de que os outros grupos são corruptos e de que o próprio grupo é honesto dispensa a apresentação de ideias concretas sobre os rumos das instituições sociais e relativas a um programa político factível. O moralismo político é refúgio de grupos incapazes de expressar um discurso coerente e de propor um projeto plausível e minimamente inclusivo de outros setores sociais.

As possibilidades de um grupo político usar ou não o moralismo no debate público e, portanto, de praticar ou não a estigmatização da alteridade, dependem da relação entre os interesses objetivos da classe que se propõe a representar e as necessidades do progresso social, bem como do tipo de adversário que enfrenta. As classes ultrapassadas pela marcha da história, como foi a nobreza a partir do avanço do capitalismo, e passou a ser a burguesia com o amadurecimento desse sistema econômico, se expressam em partidos com dificuldade de fazer uma defesa racional persuasiva de seus projetos políticos, pois suas propostas são excludentes das aspirações de outros grupos sociais. Basta observar o caráter descaradamente cínico do neoliberalismo. Esta tendência histórica se agrava nos países periféricos, nos quais a exclusão total das classes populares ocorreu até no período ascendente da sociedade capitalista.

O moralismo do discurso de Carlos Lacerda contra Getúlio Vargas, nos anos 1950, não era apenas um recurso de retórica, expressava principalmente a impossibilidade de a UDN (União Democrática Nacional) apresentar um programa político mais inclusivo e patriótico do que o defendido pelo getulismo, pois os pressupostos ideológicos udenistas eram antipopulares e pró-imperialismo norte-americano. No presente, o moralismo estigmatizante dos partidos de direita, dos setores conservadores da classe média e de uma parte poderosa do Judiciário expressam, em essência, o caráter excludente e indefensável do neoliberalismo, a ideologia que, no fundo, os move e orienta, e que esteve escondida sob grossas nuvens de lacerdismo até a consumação do impeachment. Efetivado o golpe contra o governo Dilma, o moralismo desses setores tem sido substituído por uma cada vez mais cínica e constrangedora defesa das ideias neoliberais e dos seus representantes políticos mais destacados, como Michel Temer e João Dória. A política de conciliação de classes efetivada pelo PT principalmente a partir de 2003 causou uma mudança na sua base social, na qual foram acrescentados setores da grande burguesia industrial-financeira e do agronegócio, e inoculou neste partido, paulatinamente, ideias provenientes da visão de mundo das classes dominantes. Isso explica porque, mesmo não tendo a mesma radicalidade presente na direita, o moralismo e a estigmatização dos adversários também passaram a se expressar no discurso de vários setores petistas, fato que tem potencializado o rebaixamento do debate público no país. Para colocar o debate político nos trilhos da racionalidade e da civilidade é necessário uma nova estratégia política, fundada principalmente nos interesses e nas aspirações históricas das classes populares.

*O título é referência a um ensaio de Susan Sontag (1933-2004), escritora e crítica de arte norte-americana, chamado “Regarding the Pain of Others”, no qual analisa a função social das fotografias do cotidiano das guerras.

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