Chacina no Pará e a prática Policial de forjar tiroteios
Henrique Oliveira*
Na quarta feira, dia 24 de maio, enquanto os olhares da grande imprensa e do país estavam voltados para o Ocupa Brasília, convocado pelas centrais sindicais, contra as reformas trabalhista, previdenciária e o governo Temer, na fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’arco no Pará, 10 camponeses foram mortos numa ação das polícias civis e militares. Segundo os policiais, os camponeses reagiram ao cumprimento de mandatos de prisão e, numa suposta troca de tiros, nada menos do que 10 pessoas foram mortas.
A polícia apresentou a apreensão de nove armas que teriam sido utilizadas no tiroteio, e nenhum policial foi ferido: dos dez mortos, sete eram da mesma família. A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social afastou os 21 policiais militares e 8 civis.
A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, Deborah Duprat, que acompanha as investigações, disse que não foi encontrado sangue no local e nem cheiro, além de adulteração da cena, com o recolhimento dos corpos, quando deveriam ter isolado o local até a chegada da perícia.
Para o presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Darci Frigo, a versão do confronto caiu por terra, após terem sido ouvidas testemunhas que contestam o argumento de confronto apresentado pelos policiais; o objetivo era então descobrir quais os motivos da chacina.
Dois sobreviventes da chacina relataram ao Ministério Público Federal que ouviram barulho de carro e, ao perceberem que era da polícia, correram para o mato. Logo após foram achados pelos policiais que chegaram gritando, “não corre se não morre”.
Depois que começaram correr, os policiais passaram a atirar. A testemunha falou que, enquanto rastejava, ouviu os policiais dizendo a uma das vítimas: “olha o que a gente faz com bandido”. Ele também afirmou que as vítimas estavam chorando e dizendo que não iriam correr, mas mesmo assim os policiais atiraram, e ainda afirmou que as armas não foram usadas, que ouviu os policiais rindo e batendo nas pessoas baleadas.
Não apenas o Estado, através da polícia, assassinou esses 10 camponeses, como as famílias receberam os corpos dos seus parentes em estágio avançado de putrefação para enterrarem, o que revoltou os parentes, configurando-se como uma segunda morte.
A chacina em Pau D’arco se insere em mais um caso de violência no campo brasileiro contra camponeses em torno da disputa por terra. A Comissão Pastoral da Terra diz que foram registrados, no ano de 2016, 61 mortes em conflitos agrários. Com a chacina de Pau D’arco, o número chegou a 36 nesse ano de 2017. Não podemos esquecer que o Pará é o estado do massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 sem terras foram assassinados em 1996.
Um fato que chama a atenção nesse caso é como, mais uma vez, vemos os autos de resistência sendo questionados, onde os policiais alegam que mataram pessoas em legítima defesa. E nós sabemos que existe uma prática policial rotineira e sistemática, de fraude processual em torno dos autos de resistência, um instrumento que foi criado pela Ditadura Militar em 1969, para justificar os assassinatos de opositores que a policia dizia ter matado numa situação de resistência armada à prisão.
Autos de resistência, fraude processual e a construção da legítima defesa
O artigo 284 do Código do Processo Penal descreve que não é permitido o emprego da força policial, e a mesma só se torna indispensável quando ocorre uma resistência ou tentativa de fuga do preso.
Ao efetuar uma prisão fruto de uma ordem judicial ou em flagrante, o policial só deve usar a força em último caso e, se usa-lá, tem como dever fazer dentro da proporcionalidade para realizar a prisão. Caso o policial utilize a força na dosagem certa, não excedendo o limite do indispensável, estará praticando o fato no estrito cumprimento do dever legal, o que irá configurar a exclusão da ilicitude prevista no inciso III do art 23 do Código Penal.
O sujeito pode resistir à prisão passivamente, não acatando a ordem, e ativamente através da violência ou grave ameaça. O emprego da força deve ser estritamente o necessário para subjugar o capturando, para dominá-lo e refreá-lo.
O artigo 345 do Código Penal diz que, se uma autoridade que utilizar a violência contra uma violência já cessada, estará fazendo justiça com as próprias mãos e abusando do poder.
Do ponto de vista jurídico, o uso da força policial é um instrumento que deve ser utilizado para alcançar determinados fins, e um deles é de defender o policial em uma dada situação limite. Mas o que estamos vendo, na realidade, é a utilização dos autos de resistência como uma forma de encobrir execuções feitas por policiais civis e militares.
O Coronel Anselmo Brandão, comandante geral da Polícia Militar da Bahia, defendeu em uma entrevista que o auto de resistência é um instrumento de defesa dos policiais, mesmo após o acontecimento da chacina do Cabula, onde 12 jovens negros foram mortos com fortes indícios de execução, em que as vítimas foram alvejadas com tiros de cima para baixo, de curta distância e nos antebraços e palmas das mãos, indicando posição de defesa, e apenas um único policial foi ferido de raspão.
Na pesquisa Letalidade policial e indiferença legal: A apuração judiciária dos autos de resistência no Rio de Janeiro (2001 – 2011) que analisou por 10 anos os autos de resistência produzidos pela polícia carioca, os autores demonstram como o homicídio proveniente de um auto de resistência se diferencia em alguns aspectos dos homicídios dolosos. Primeiro, porque a sua autoria já é esclarecida no momento do registro, pois são os próprios policiais os autores, e que são os responsáveis por comunicarem a ocorrência. Dessa forma a versão policial acaba prevalecendo na maioria dos casos.
Ao registrar um auto de resistência, é necessário lavrar um auto subscrito, com a presença de duas testemunhas, que geralmente são policiais. A narrativa geralmente utilizada é que, após as vítimas serem baleadas, foram levadas para o hospital ainda com vida, argumento que visa dar legalidade à conduta policial, pois teria sido prestado socorro à vítima, cuja morte não é narrada como acontecida no local do disparo. Portanto, se a vítima ainda estar viva, não haverá motivos para preservar a cena do homicídio para realizar a perícia.
Para legitimar e dar legalidade à ação policial, é construída, na maioria dos casos, uma narrativa padrão, cujo objetivo é sempre afirmar que as vítimas atiraram antes dos policiais, para assim poder enquadrar os homicídios em uma situação legal, em que a atitude policial seja fundamentada no revide à injusta agressão, combinando com a exclusão de ilicitude. O grande objetivo do registro da ocorrência é elaborar um pressuposto que culpe as vítimas pelas suas mortes.
Em 2009 foi publicado um relatório da Human Rights Watch, Força letal: Violência policial e segurança pública no Rio de Janeiro e São Paulo, em que foi analisado parte dos 11 mil autos de resistência registrados pelas polícias do Rio de Janeiro e São Paulo entre os anos de 2003 e 2009.
No relatório foi explicitado que parte considerável desses autos de resistência foram execuções. A Human Rights dialogou com algumas autoridades do sistema de justiça criminal de São Paulo e do Rio de Janeiro. E, segundo o ouvidor – adjunto da Polícia de São Paulo, estimava-se que 80% dos boletins de ocorrência policial sobre autos de resistência tinham fortes indícios de abuso policial.
Um promotor que atuava nos bairros com maiores índices de autos de resistência no Rio de Janeiro acreditava que quase todos registros policiais que ele acompanhava eram uma farsa.
Para ilustrar casos de fraudes processuais em autos de resistência, em 2012 no Rio de Janeiro, em uma operação da Polícia Civil numa favela da Zona Oeste da cidade, um vídeo gravado pelos próprios policiais, em uma câmera do helicóptero e outra na cabeça dos policiais, mostra como é forjado um auto de resistência. Uma aeronave da Polícia Civil abriu fogo por 6 minutos em um bar onde era realizada venda de drogas e havia dois homens portando um fuzil, e logo após os policiais desembarcarem do helicóptero, os policiais correm até o bar atirando, onde são encontrados três corpos. Em seguida, mais uma pessoa ferida é encontrada, então é perguntada se ela estava armada, e outro policial responde que não. E com isso os policiais removem o corpo em um lençol vermelho para o mesmo bar onde tinha venda de drogas.
Em setembro de 2015, policiais militares foram flagrados forjando um auto de resistência após assassinarem Eduardo Felipe dos Santos, um jovem de 17 anos no morro da Providência. No vídeo gravado por uma moradora é possível ver que o jovem está caído no chão em meio a uma poça de sangue, e um policial com o uniforme da UPP coloca uma arma na sua mão e realiza dois disparos, com a intenção de simular um tiroteio colocando pólvoras nas mãos e deixando as digitais da vítima na arma. E, agora, no final no mês de maio, a Justiça do Rio de Janeiro suspendeu por dois anos o processo do policial militar acusado de colocar a arma na mão de Eduardo Felipe.
Em setembro de 2015, cinco policiais militares foram presos após serem flagrados por uma câmera de segurança, executando um suspeito de roubo. Nas imagens foi possível ver o suspeito Paulo Henrique Porto de Oliveira sendo cercado, rendido, revistado, algemado, logo após é desalgemado e baleado pelos policiais. O vídeo também mostra um policial correndo sem arma, entrando na viatura, falando no rádio e depois volta correndo e coloca uma arma na mão da vítima.
Nesse mesmo ano aconteceu a chacina de Costa Barros, no Rio de Janeiro, em que 5 jovens negros foram fuzilados por mais de 100 tiros dentro de um carro, onde os policiais militares abriram a mala do veículo e colocaram uma arma de brinquedo para tentar forjar um auto de resistência.
A simulação de um tiroteio é uma prática ensinada no processo de formação dos policiais. A revista Época publicou uma matéria em que um instrutor do curso de reciclagem da Polícia Militar do Rio de Janeiro ensinou a “prática da mãozinha”. Porém, é importante ressaltar que essa prática policial é legitimada pelo Poder Judiciário, através dos arquivamentos dos autos de resistência. No livro “Indignos de vida – A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro”, o Delegado Orlando Zaccone estudou a promoção de arquivamento de autos de resistência, evidenciando a existência de uma política pública de extermínio de pessoas consideradas suspeitas/criminosas.
A construção da legítima defesa começa na fraude processual da Polícia e termina no arquivamento dos processos realizados pelo poder judiciário. Os promotores e juízes reforçam em suas decisões a construção da legitimidade das mortes registradas por policiais, desconsiderando os acontecimentos, quantidade e locais dos tiros nos corpos, voltando sua análise para a construção do morto como criminoso/inimigo.
A produção de uma narrativa padrão para os autos de resistência acontece também para os seus arquivamentos: a identificação do morto como traficante ou assaltante, a apreensão de armas, drogas, e a junção dos antecedentes criminais são suficientes para que o fato em si seja ignorado, e a ação policial seja enquadrada como legal.
Uma pesquisa realizada pela Defensoria Pública de São Paulo demonstrou que 90% dos autos de resistência são arquivados no Estado sem investigação. No Rio de Janeiro, o índice de arquivamento entre os anos de 2001 e 2011 foi de 96% dos autos de resistência. E foi também em uma sentença relâmpago que a juíza Marivalda Almeida absolveu os 9 policiais militares que participaram da chacina do Cabula, mesmo havendo claros indícios de execução.
Os autos de resistência se tornaram a forma jurídica da política de promover extermínio de pessoas no Brasil. Ações ilegais da Polícia são então colocadas dentro da legalidade, onde o resultado é que todas essas mortes que acontecem à margem do Direito estão sendo na verdade legitimadas por ele.
*Henrique Oliveira é graduado em História e Mestrando em História Social pela UFBA, militante do coletivo negro Minervino de Oliveira/Bahia.
Referências bibliográficas:
D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro,1ªed, Rio de Janeiro, Revan, 2015.