Ricardo Antunes: Nossas classes dominantes sempre oscilaram entre a conciliação e o golpe

imagemEntrevistamos Ricardo Antunes, um dos principais nomes da sociologia do trabalho na atualidade, professor titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), autor de títulos como “Adeus ao Trabalho?” e “Os sentidos do Trabalho”.

Nessa entrevista, Antunes oferece sua visão sobre a crise política que vive o país hoje, na qual apresenta que se trata de “uma crise política profunda do regime aberto com a constituição de 1988”. Nesse sentido, comenta os fundamentos da crise a partir das próprias raízes da Nova República de 1988.

Antunes segue a entrevista desenvolvendo uma visão sobre o modus operandi da dominação de classes no Brasil, quando afirma que “As nossas classes dominantes sempre oscilaram no controle do poder político e da dominação no Brasil, oscilando entre a conciliação e o golpe, a conciliação e o desenho autocrático, a conciliação e a devastação”. Tendo isso em vista, analisa o significado do golpe institucional vivido no Brasil, à luz da análise mais estrutural do sistema político brasileiro.

Como parte disso, parte de comentar a degradação que significa o governo de Michel Temer e as “reformas” que visa implementar, não deixa de tecer duras críticas ao PT, como um dos partidos dominantes dentro desse sistema político, e apresenta as causas da degradação do partido: “O PT pouco a pouco foi se transformando num partido no  qual as lutas sociais foram sendo deixadas gradativamente de lado”.

Por fim, analisa as perspectivas do PT no futuro, momento no qual responde a pergunta sobre a possível recomposição do Lula e do PT, partindo do forte ataque e mesmo a “devastação” que promove o governo Temer, que pode levar a alguma força do sentimento de “mal menor” a Lula, mas mais estruturalmente o sociólogo afirma que “uma recomposição forte do PT é muito difícil, porque a descrença em relação ao partido é muito grande em todos os espaços”.

Veja a entrevista na integra a seguir. Realizada em abril de 2017 por Iuri Tonelo.

IdE: Frente à escalada da crise política atual que afeta os principais partidos do sistema político, podemos falar de uma crise do regime de 1988?

RA: Sim, uma crise política profunda do regime aberto com a constituição de 1988. Talvez, para dar alguns traços dessa crise, possam ser mencionados dois movimentos muito conectados. O primeiro movimento é uma crise geral do sistema de representação política do capital, ou seja, há uma crise da representação burguesa de amplitude global. Crise esta que se manifesta, em um completo descompasso, num fosso profundo entre a vida real cotidiana das pessoas e a representação política institucional. Estou trabalhando na Itália durante dois meses e isso é visível aqui. O movimento nas ruas não bate com a temperatura e o termômetro político institucional. Na Inglaterra já vemos isso com o Brexit, num movimento galvanizado pelas direitas que tenta fazer com que o Reino Unido saia da União Europeia pelo descontentamento com a forma de domínio e de governo que vem sendo levada também na Europa – e isso vale pra um conjunto de países, o caso norteamericano, etc. Há, portanto, uma disjuntiva entre a vida real e a vida política institucional.

E essa crise também é evidenciada no caso brasileiro, porque com o regime instaurado a partir de 88 foi na verdade uma construção do velho MDB do Sarney, chamada “Nova República”, que contemplava um movimento de abertura com o novo. Houve naquele momento uma importante luta social no Brasil que foi controlada e acomodada pelo Centrão.

Instaurou-se uma Nova República com Sarney e depois, com a constituição de 1988, as eleições de 89, etc. E nas eleições os partidos dominantes se reorganizaram e elegeram o Collor e nós chegamos em uma mesma situação atual com um velho e mesmo PMDB governando, com Temer, mas num momento de profunda social, política e instituicional crise do executivo, crise do legislativo, crise do judiciário. Uma relação profundamente incestuosa entre todas as esferas do poder e as classes burguesas no Brasil mostra que estamos vivendo um regime em decomposição. Então é uma crise profunda do regime para a qual não é mais possível pensar em seu arremedo, não é mais possível pensar nas suas velhas respostas, porque os desafios que se colocam são de muita amplitude.

IdE: Como você avalia o conjunto das reformas do governo Temer? Quais implicações terão para o processo de precarização da vida dos trabalhadores?

RA: As nossas classes dominantes sempre oscilaram no controle do poder político e da dominação no Brasil, oscilando entre a conciliação e o golpe, a conciliação e o desenho autocrático, a conciliação e a devastação. Agora é o momento da devastação. Passados os anos, – basicamente nos governos Lula e Dilma, em que imperou a conciliação – com as classes dominantes  ganhando muito e o Brasil crescendo, uma parte pequeníssima dos ganhos sobrava para as classes populares e isso funcionou no período de expansão. Agora, no momento de crise econômica, social e política de amplitude global e que chegou de modo devastador no Brasil, é hora para lembrar de Florestan Fernandes, da contrarrevolução preventiva.

O que significa isso nos dias de hoje? É um rearranjo das classes dominantes, para prevenirem-se contra qualquer perda maior dessa crise em relação aos seus interesses, o que implica em desmontar  a legislação social, protetora do trabalho, que existe há mais de 70 anos no Brasil. Essa é a questão fundamental. Não é um golpe contra o Lula e o PT, é evidente que num dado momento o governo do PT deixou de ser o governo ideal para as classes dominantes como foi, digamos, boa parte no primeiro e segundo governo Lula e em parte do governo Dilma, quando tivemos  um crescimento exponencial. Agora é hora de devastar os direitos sociais do trabalho, arrebentar a previdência, instaurar a terceirização total do trabalho, o que significa o retorno à escravidão no Brasil. As classes trabalhadoras vão ter desregramentos, desregulações ainda mais intensas. Vamos ter uma sociedade, se pudéssemos assim dizer, inspirada no que na Inglaterra se chama de Zero Hour Contract, o contrato zero hora. Tem trabalho, trabalha, não tem trabalho, não trabalha. Recebe pelas horas que se trabalha e não tem nenhum direito social preservado depois.

É isso que se quer instaurar com a terceirização e com o trabalho intermitente, quando tem trabalho é chamado, quando não existe, não tem trabalho e nem direitos.  A condição disso é instaurar um padrão de exploração do trabalho ilimitado, num contexto em que o capitalismo é devastador na China, na Índia, na Ásia, na África, na América Latina, na América do Norte, na Europa. É uma disputa para ver quem vai aumentar e intensificar ainda mais o padrão da superexploração da força de trabalho e, desse modo, recompor a dominação burguesa, a expansão capitalista sob o comando financeiro. Na Itália inventaram o trabalho a voucher, trabalho que é pago por um ticket. Abriu-se ainda mais o espaço para a burla aqui. Essa é a tragédia do nosso tempo, é uma reorganização burguesa sob comando e orientação do capital financeiro que não tem limites para sua exploração e devastação.

IdE: O PT vive um momento que poderíamos considerar como uma crise histórica, atestada nas últimas eleições. Quais foram os traços fundamentais que levaram a essa separação entre o partido e os trabalhadores?

RA: O PT teve como seu grande mérito, sua grande força e seu grande êxito o fato de ter nascido em 1980 como uma confluência de movimentos sociais, sindicais e políticos, agrupamentos e individualidades, que em seu conjunto tinha enorme enraizamento na classe trabalhadora. O PT nasce representando a classe trabalhadora urbana-industrial, o chamado operariado da indústria, no qual os metalúrgicos do ABC são o principal exemplo. O PT tinha forte inserção nas camadas médias assalariadas que viviam um processo de proletarização. O PT tinha inserção também em setores do campesinato e do proletariado rural, ou seja, o PT tinha como grande trunfo essa força que lhe dava inclusive radicalidade, ainda que num plano predominantemente espontâneo, uma vez que ele expressava esse descontentamento das classes populares em relação à ditadura e à dominação burguesa no Brasil.

Mas este processo que levou a essa crise profunda do PT nesses últimos anos, é um processo complexo que eu só posso indicar daqui a alguns pontos. O PT pouco a pouco foi se transformando num partido no  qual as lutas sociais foram sendo deixadas gradativamente de lado, é um processo gradual e não de um dia pra noite, os interesses da classe trabalhadora, dos assalariados, da população trabalhadora rural, do campesinato, dos assalariados médios proletarizados foram sendo deixados de lado para tornar-se um partido que visualizava as possibilidades da vitória eleitoral.

Segundo ponto: neste processo de se tornar um partido eleitoralmente forte, o PT foi fazendo aquilo que todos os partidos da ordem que acabam se adequando ao sistema parlamentar, ao sistema institucional, acabam por fazer. Ele foi fazendo concessões atrás de concessões, entre elas, ideológicas, programáticas e teóricas e isto fez com que, para que ele pudesse ganhar prefeituras e governos importantes e por fim, chegar na vitória presidencial, ele fizesse concessões de todo tipo. Basta ver o programa do PT de 1989, primeira tentativa de eleição do Lula, em que o Brasil se dividiu ao meio, e o programa eleitoral, com base na Carta aos Brasileiros de 2002, que o dono da Odebrecht acabou de dizer que ele próprio ajudou o PT a fazer essa carta. Isso demostra a que nível de corrosão ideológica o Partido dos Trabalhadores, pelo seu núcleo dominante que tem no Lula a sua figura central e no seu entorno,  chegou. Ou seja, à degradação ideológica e política que chegou o núcleo dominante do PT.

O resultado não poderia ter sido outro. Quanto mais forte o PT se mostrava eleitoralmente, quanto mais viável era a sua possibilidade de vitória, quanto mais palatável o PT se tornava para as classes dominantes, para as frações dominantes, para os setores conservadores, mais ele fazia concessões. O resultado trágico disso foi, anos depois, como acabamos de ver,  o golpe, o impeachment da Dilma,  processo que tomou todo o ano de 2015 até 2016 e levou ao impeachment.

Quando o PT, mesmo depois da vitória eleitoral de Dilma em 2014, continuou fazendo concessões e mais concessões para as classes dominantes, para as frações dominantes, para todos os grandes setores da burguesia, Dilma falou que ia ter reforma da previdência (depois da eleição), falou que ia se pensar na questão da terceirização. Só que era evidente, o PT tinha que também, de algum modo, se ocupar com a pressão que vinha dos movimentos sociais e populares, que de alguma maneira, ainda davam base de sustentação ao PT. O resultado de tudo isso foi a conversão, foi um transformismo dentro do PT (pra recordar Gramsci), o PT acabou se convertendo em um partido da ordem. Sua transmutação de partido da esquerda para partido dentro da ordem. O seu resultado foi que, ao final do processo do impeachment, ele estava sendo fagocitado pelas classes dominantes, estava completamente sem resposta e uma profunda expressão disso é o fato de que durante o processo do impeachment da Dilma (que como sabemos teve um claro caráter de um golpe parlamentar, com profundas ressonâncias judiciais e completo apoio da grande mídia) não houve um dia de greve geral contra a deposição de Dilma. O PT e seus movimentos sindicais, como a CUT, e seus movimentos sociais mais próximos não conseguiram fazer um dia, nem mesmo algumas horas, de paralisação completa do país.

Portanto o PT converteu-se em um partido da ordem ao dar prevalência a sua ação institucional e eleitoral, e ao desdém que sempre marcou o seu núcleo dominante pela ideologia (não falo aqui dos vários agrupamentos de clara inspiração socialista dentro do PT, que nunca chegaram ao núcleo de poder no partido). Esse núcleo lulista jamais se aproximou de uma ideologia socialista com claro perfil anticapitalista; nos governos Lula e Dilma, sequer se falou em socialismo (na Europa, por exemplo, os partidos falam em socialismo ao modo deles, ainda que pratiquem, o social-liberalismo). Tanto Lula como Dilma sequer mencionavam a palavra socialismo, para não ferir sua política de conciliação de classes e para não sofrer nenhuma restrição dos diversos grupos burgueses que estavam no poder juntamente com o governo do PT. O resultado hoje é um partido que vive uma crise profunda, e qual vai ser o seu futuro é difícil prever. É evidente que o PT tem fôlego pra continuar sendo um partido com características de um partido institucional, porque ele está arraigado em prefeituras, tem núcleos e estruturação, mas voltar a ser um partido respeitado pelas lutas populares, considerado pela classe trabalhadora como sendo uma das suas principais representações, acho essa possibilidade muito distante do cenário socio-político brasileiro. Como previsão em política não é boa ideia, eu falo aqui como hipótese que me parece mais plausível, uma vez que parece muito difícil imaginar que o PT possa recuperar e voltar a ser o que foi para a esquerda brasileira e para a classe trabalhadora. Ele teria que primeiro fazer uma autocrítica muito profunda e atacar o núcleo central da sua tragédia – que é também, tristemente, o sinal de sua força política –  que é o lulismo. Eliminar o lulismo não está no arco de possibilidades do PT. E isso é algo que certamente não vai ser feito dentro do PT nos próximos anos e não sei se em algum momento será.

IdE: É possível uma recomposição do PT com “Lula 2018”? Quais os limites para esse processo?

É possível! É possível, já que a devastação do governo Temer é de muita intensidade, com o envolvimento do governo Temer, de seus ministros, dos parlamentares e, sabemos também, do judiciário na Lava Jato – por mais que ainda não tenha chegado, a imprensa brasileira hoje tem dito que em algum momento a Lava Jato deverá chegar também no judiciário. É possível que tudo isso leve a uma situação do tipo: o governo Lula/Dilma terminou na lona, como  em uma luta de boxe, mas o governo Temer é ainda muito pior. E por quê? Porque além da profunda corrosão política e ética (se é que é possível falar nesses termos do PMDB), há uma profundidade da crise econômica e uma intensificação da crise institucional (político e institucional), o que por certo dá algum oxigênio a Lula e ao PT.

Mas eu penso que uma recomposição forte do PT é muito difícil, porque a descrença em relação ao partido é muito grande em todos os espaços, nas classes médias conservadoras (que um dia abraçaram o PT), na classe média progressista e mais crítica pela percepção de que o PT passou longe de alguma coisa que pudesse ser efetivamente exemplo de transformação brasileira, e para as classes populares. Há muitos setores das classes populares que perceberam que com o PT, no longo período que esteve no governo, quase três governos, não houve mudanças estruturais profundas de nenhum tipo. O Bolsa Família é um programa assistencial e mesmo assistencialista, é de amplitude; houve aumentos reais do salário mínimo comparado ao governo Fernando Henrique Cardoso, isso também é verdade. Mas essas medidas não desestruturaram a miséria brasileira, os pilares da miséria brasileira se mantém intactos, a estrutura concentradora de propriedade na agroindústria se mantém, não houve nenhuma reforma agrária profunda, os pilares da superexploração do trabalho estão presentes, como aliás os dados têm mostrado, com o desemprego exponencial, a destruição das conquistas salariais, mesmo pequenas neste último período, e a degradação, corrosão e desmonte da legislação social protetora do trabalho.

O desafio da esquerda à esquerda do PT, é dizer: acabou o ciclo de conciliação de classes, acabou a ideia do mito de que era capaz costurar os deuses e os diabos na terra do sal, como eu escrevi recentemente. Esse mito acabou. A esquerda social e política, de perfil anticapitalista, vai ter um longo período para poder tentar se reagrupar, para poder tentar sentir aquilo que verdadeiramente vem das lutas populares e da vida cotidiana, e iniciar um processo de construção de algo novo. Que não passa, no meu entendimento, pelo PT, muito menos pela figura do Lula.

O PT tem muitos militantes sérios, tem muitos lutadores sociais que ainda têm alguma esperança no PT. Eu não estou falando desses núcleos, dessas individualidades e desses agrupamentos. Eu estou dizendo que o PT, com o desenho que ele tem, com o inquestionável domínio lulista, com aquele núcleo que o controla passo a passo e o vem controlando há anos, este grupo que dá o tom dominante no PT, não fala mais pelo conjunto da esquerda. Essa fase acabou. Está sepultada política e socialmente.  O PT não pode ter a ilusão de que vai ser o partido da esquerda brasileira nas eleições de 2018. Há de se pensar em um projeto alternativo de longo prazo e de muita vinculação com as lutas sociais, com as lutas populares, com ênfase extra-parlamentar e extra-institucional, sob impulsão da classe trabalhadora, do movimento sindical de classe e com as periferias, urbanas e rurais, sem deixar de lembrar da importância da luta das comunidades indígenas. Algo inteiramente novo tem que ser lapidado, (re)construído e incentivado.

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