Israel-Palestina: Entrevista com Avi Shlaim

imagemAvi Shlaim é professor emérito de Relações Internacionais da Universidade de Oxford e membro da Academia Britânica. Um dos principais “novos historiadores” de Israel, é autor, entre outras obras, de Collusion across the Jordan: King Abdullah, the Zionist Movement, and the Partition of Palestine (1988) e The Iron Wall: Israel and the Arab World (2000). Crítico declarado de Israel e suas política e apesar de reconhecer a “grande injustiça” que sofreram os palestinos em 1948, Shlaim insiste na existência de distinções fundamentais entre Israel antes e depois de 1967. Nesta ampla entrevista ao Jadaliyya, fala dos novos historiadores de Israel, seu atual apoio a uma solução de um Estado para o conflito palestino israelense, sua herança iraquiana e sua problemática relação com o Estado de Israel do qual continua sendo cidadão.

Jadaliyya (J): Como você caracterizaria os novos historiadores de Israel?

Avi Shlaim (AS): A “Nova história” é um termo cunhado por Benny Morris. É um pouco autocomplacente, porque implica que tudo o que passou antes é história antiga. Porém, como qualquer rótulo, é bastante útil para distinguir uma tendência na historiografia israelense. A tendência, ou o grupo de Novos Historiadores, incluem Benny Morris, Illan Pappé e eu. Nós três publicamos livros em 1988, no quadragésimo aniversário da criação do Estado de Israel e montamos um ataque frontal contra os mitos que chegaram a rodear o estabelecimento de Israel e a primeira guerra árabe-israelense. Passaram a nos chamar de historiadores revisionistas ou novos israelenses porque desafiamos a versão sionista padrão do conflito e atribuímos um grau muito maior de responsabilidade a Israel por causar, intensificar e perpetuar o conflito. Algo que diria sobre o termo “Nova história” é que chama atenção sobre o fato de que a maior parte do que ocorreu antes era uma versão nacionalista da história. A nossa era uma versão mais acadêmica da história, baseada na investigação de arquivos.

A maioria das nações reescreveu sua história, porém as versões nacionalistas da história têm algo em comum onde quer que estejam. Seus sinais de identidade são o que eu chamo os quatro S (segundo as palavras em inglês. N. do T.): simplista, seletiva, auto-justificada e egoísta. O filósofo judeu de Oxford, Isaiah Berlin gostava de dizer que os judeus são como qualquer outra pessoa e, da mesma maneira, a história sionista é como qualquer outra versão nacionalista da história e mais ainda. Assim, a principal contribuição da Nova história de Israel tem sido desafiar os prejuízos nacionalistas da historiografia sionista tradicional do conflito.

J: Inicialmente houve um impacto: os livros de textos escolares israelenses foram reescritos para jogar luz sobre uma narração que tinha sido suprimida, porém os planos de estudo foram reescritos mais uma vez durante o Governo de Sharon, de 2001-2005. Os novos historiadores também foram denunciados virulentamente dentro de Israel. Você diria, todavía, que são importantes em Israel?

AS: A história não está escrita no vazio, mas em um contexto político particular. O contexto no qual surgiu a Nova história, em fins da década de 1980, foi a sequela da Guerra do Líbano, de 1982. Esta tinha sido uma guerra por escolha no sentido de que não existia ameaça para a segurança de Israel, porém o Governo de Menachem Begin, no entanto, decidiu invadir o Líbano por razões geopolíticas. Foi uma guerra muito controversa em Israel, terminou em lágrimas, terminou em desastre, terminou nos massacres de Sabra e Chatila e não alcançou nenhum de seus objetivos. A crítica começou durante a guerra e, como tal, foi a primeira guerra israelense na qual houve desacordo enquanto a guerra estava em curso.

A controvérsia em torno da Guerra do Líbano criou um espaço no qual os Novos historiadores poderiam ter um impacto, porque o que dizíamos era que a guerra do Líbano não era a única, contrariamente à afirmação de que todas as guerras de Israel eram de caráter defensivo. Isto nos permitiu ir mais atrás na história de Israel e olhar as outras guerras. A Guerra do Sinai, de 1956, também foi uma guerra de escolha, já que não existia uma ameaça egípcia à segurança de Israel esse ano. Contudo, era uma conspiração colonial entre Israel, Grã-Bretanha e França para atacar o Egito e derrubar seu líder, Gamal Abdel-Nasser. Então, o clima em Israel era receptivo a ideias novas e críticas sobre o passado e isso nos ajudou.

Posteriormente, os Acordos de Oslo entre Israel e a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) foram assinados, em 1993, e com isto os palestinos deixaram de ser um inimigo absoluto e irreconciliável. Os israelenses se deram conta de que a reconciliação é possível, que a culpa não era só do lado palestino, que Israel também tinha a culpa e que havia um caminho adiante, uma forma de reconciliar as duas partes no conflito. Assim, os primeiros anos de Oslo deram um novo impulso à Nova história e teve um impacto.

Uma das conquistas mais significativos da Nova história foi a reescrita dos livros de texto da história de Israel para as escolas secundárias. Em particular, as descobertas de Benny Morris de que Israel foi em grande parte responsável pelo êxodo palestino se incorporaram nos novos livros de texto. Isto não quer dizer que a versão anterior da guerra de 1948 tenha sido deixada de lado e substituída pela nossa versão. Ou seja, que ocorreu uma maior abertura e os novos livros de textos foram entregues aos escolares de Israel: imagine o que tenha sido ser um menino árabe em meio a esta guerra. Portanto, despertou dúvidas nas mentes israelenses sobre as versões antigas de que os árabes se foram por vontade própria e porque receberam ordens de cima e que Israel não era de nenhuma maneira responsável pelo problema dos refugiados palestinos. Assim, durante dez ou doze anos depois de aparecerem nossos livros, estávamos fazendo progressos constantes e ganhando uma maior legitimidade.

Algumas de nossas ideias se infiltraram na corrente principal intelectual, particularmente a ideia de que Israel era responsável pelo problema dos refugiados. Alguns de meus amigos me disseram: “Você costumava ser um jovem turco, porém se converteu em um velho imbecil porque agora é oficialista”. Nunca aceitei porque nunca me uni à corrente intelectual. E, em qualquer caso, a aceitação de nosso trabalho foi muito efêmera. Isto se deve a que o seguinte evento significativo na história de Israel foi o estouro da Segunda Intifada, em setembro de 2000. Devido à militarização da Segunda Intifada, a violência e mais especialmente os atentados suicidas que tiveram um efeito psicológico muito inquietante sobre os israelenses, o clima em Israel mudou completamente. Tornou-se muito mais hostil à erudição crítica como a nossa.

Assim como a década de Oslo nos ajudou, o estouro da Segundo Intifada levou a um movimento contra nós. Os israelenses voltaram a posições muito fundamentalistas: estamos corretos e vocês estão equivocados. Esse é o começo do declínio da influência da Nova história em Israel.

J: E esta diminuição continuou no clima de direita que existe atualmente. O que resta dos novos historiadores à luz da conversão de Benny Morris e dos ataques a este grupo?

AS: O declínio continua até o ponto de que o grupo já não é um grupo e o termo Nova história já não tem sentido no contexto israelense. Um indicador desta tendência que se afasta da nova história e regressa à história antiga é a conversão de Benny Morris. Depois da eclosão da Segunda Intifada, Benny Morris se desviou para a extrema direita e revisou radicalmente seus pontos de vista sobre o conflito palestino-israelense, concluindo que só os palestinos são responsáveis. Disse que os palestinos são mentirosos e que Arafat era um mentiroso inveterado, e por disso não podia confiar em nada que ele dissesse. Também disse que para os palestinos a assinatura do acordo de Oslo era só parte de sua teoria das etapas de desmantelamento gradual de Israel e que, portanto, era um erro. Concluiu que só existem duas possibilidades: ou os palestinos nos expulsam ou expulsamos os palestinos, e que não existe distinção entre Israel e os territórios ocupados porque os palestinos querem tudo. Assim, Morris voltou-se para uma visão extremamente cruel, direitista e bipolar deste conflito como um conflito existencial, sem espaço para uma solução diplomática. Morris é medianamente interessante porque reflete a tendência da sociedade israelense, desde o estouro da Segunda Intifada, à direita, de culpar os palestinos, demoniza-los e, também, uma mudança para um racismo cada vez mais aberto. Em uma entrevista no Ha’aretz, em 2004, Morris disse que os palestinos são como animais e que deveriam ser colocados em uma espécie de jaula.

A partir de então, Illan Pappé e eu nos distanciamos por completo dele e de seus pontos de vista de direita, de suas cruéis opiniões sobre o conflito e, sobretudo, de seu racismo. Benny Morris escreveru um artigo no The Guardian com seus novos pontos de vista, para os quais não tinha um pingo de evidência, e eu escrevi uma resposta no dia seguinte sob o título A Betrayal of History (Uma traição à história, N. do T.). Assinalei neste artigo que Morris costumava ser um historiador positivista, que só transitava por registros escritos, porém, aqui neste artigo, não estipulou nenhuma evidência para suas afirmações. Por exemplo, afirmou que a verdade não é um valor no Islã, pelo que os muçulmanos nunca dizem a verdade. Também disse que a paz com a Síria é impossível porque não poderia imaginar Hafez al-Assad em seu leito de norte dizendo a seu filho que faça as pazes com os judeus, porque eles são como os cruzados da Idade Média, simplesmente desaparecerão. Gostaria que Morris, o historiador empírico, nos desse algumas provas concretas da intransigência síria, porém não existe nenhuma porque é Israel quem sempre foi intransigente, não os sírios.

Assim, tem razão no fato de que a nova história diminuiu sua influência. Além disso, o grupo original já não é um grupo: existem divisões profundas entre Benny Morris de um lado, que representa a história antiga com uma revanche, e por outro lado, estamos Illan Pappé e eu.

J: Mencionou a esquerda de passagem. O que resta da esquerda israelense? Com o tremendo declínio de sua influência nos últimos anos vê grupos orientados à esquerda ganhando terreno no futuro próximo?

AS: Muito pouco resta da esquerda em Israel. O Partido Trabalhista de Rabin costumava representar um enfoque do conflito que era diferente ao do Likud; o Partido Trabalhista defendeu o compromisso territorial, enquanto o Likud é um partido ideológico, que representava a Grande Israel, toda a terra de Israel. Então, havia uma diferença entre os dois principais partidos, porém agora se tornou borrada. O ponto crítico do obscurecimento desta divisão é a reunião de Camp David de julho de 2000. Nas eleições de 1999, o primeiro ministro Ehud Barak derrotou Benjamín Netanyahu, apresentando-se como um discípulo de Yitzhak Rabin, que queria retomar o caminho de Oslo para a paz. A reunião em Camp David foi o momento da crise por conta de seu fracasso. A principal responsabilidade de seu fracasso recaiu sobre Ehud Barak. Bill Clinton também tem uma parte da responsabilidade porque não atuou como um intermediário honesto, mas como um amigo e aliado de Israel. Assim, Arafat se negou a assinar a linha de pontos e a reunião colapsou.

Clinton havia prometido a Arafat que se a reunião fracassasse não ocorreram acusações, porém tão logo falhou, apontou o dedo a Arafat e Ehud Barak também culpou Arafat pelo fracasso. Barak regressou a sua casa e lhe ocorreu a afirmação de que não existe um parceiro palestino para a paz. Este foi o erro trágico e teve um impacto real na política israelense, porque se não existe um parceiro palestino para a paz, então as negociações são inúteis e sem esperança. Se não existe um parceiro palestino para a paz, os israelenses não precisam votar por um partido como o trabalhista, que acredita nas negociações. E em lugar de um líder moderado, um homem de compromisso, buscaram alguém forte, que seja bom para matar árabes. Ariel Sharon era o líder do Likud e tinha um histórico impressionante de matar árabes e cometer crimes de guerra, e o público israelense votou no líder forte porque a maioria dos israelenses, esquerda, direita e centro, acreditavam neste mito de que não existe um parceiro palestino para a paz. Assim, Barak fez o pior serviço a seu próprio partido ao propagar este mito da intransigência palestina. E ao fazê-lo, também destruiu todo o campo da paz, Paz Agora. Ocorreu uma vitória do Likud em 2001 e seja este ou um descendente seu, Kadima, que também é um partido de direita, esteve no poder desde então.

No entanto, o Partido Trabalhista é uma sombra do que era e já não representa uma alternativa clara ao Likud. Converteu-se em um partido nacionalista e mudou seu nome de Partido Trabalhista para União Sionista, que diz tudo. Então, é um partido sionista que acredita na terra de Israel, que Jerusalém é a capital unificada e eterna do povo judeu, e que Israel deve manter todos os principais blocos de colônias na Cisjordânia como uma totalidade. Portanto, não é um partido moderado, não é um partido socialista, não é um partido de esquerda, é um tipo híbrido de centro-esquerda sem uma ideologia coerente e sem uma alternativa clara às políticas do Likud. É por isso que foi tão mal nas eleições sucessivas. Também existem outras razões demográficas de longo alcance para sua decadência.

A velha geração de imigrantes europeus costuma apoiar o Partido Trabalhista, porém o panorama político mudou e os jovens israelenses não votam pelo trabalhismo porque qualquer pessoa menor de 50 anos nasceu depois da ocupação, já que para eles a ocupação é a ordem natural das coisas e um partido que quer terminar com a ocupação realmente não significa nada para eles. Outro fator é a crescente proporção de judeus orientais em relação aos judeus asquenazes em Israel. Por diversas razões, os judeus orientais tendem a ser mais intransigentes que os judeus asquenazes. Existe outro fator que é a educação: existe uma correlação direta entre o nível de educação e as consciências que buscam a paz. Muitos dos partidários do Likud e dos partidos de extrema direita não são bem educados e têm uma visão de mundo em preto e branco. Um último fator de longo prazo é o aumento do número de judeus ortodoxos em Israel. Os judeus ortodoxos não leem Nova história, têm sua própria história, a Bíblia, e simplesmente não estão interessados nos resultados da investigação de arquivos, além de votarem nos partidos da direita. Neste contexto, o apoio ao Partido Trabalhista foi diminuindo e não vejo nenhuma possibilidade de que regresse ao poder.

J: Quanto a sua relação pessoal com Israel, diz que serviu no exército israelense “orgulhosa e lealmente”, porém também esteve na Inglaterra durante muitos anos e é cidadão do Reino Unido. Como descreveria sua relação com Israel? Todavia é cidadão israelense?

AS: Tenho dupla nacionalidade, israelense e britânica. Quando vou a Israel, entro com meu passaporte israelense e a qualquer outro lugar que vou, uso meu passaporte britânico. Então, essa pergunta é fácil de responder. Porém, minha atitude para com Israel é mais complexa e não é estática, mas mutável. Ela evoluiu gradualmente. Cresci em Israel, minha família se mudou para Israel quando eu tinha cinco anos, fui à escola em Israel, servi no exército israelense, porém isso foi em meados da década de 1960. Quando eclodiu a Guerra dos Seis Dias (1967), eu era um estudante do primeiro ano de História em Cambridge e me ofereci como voluntário para voltar e lutar por meu país, mas a guerra terminou em seis dias e integralizei meu curso de História em Cambridge. Porém, minha atitude para com Israel começou a mudar depois da Guerra dos Seis Dias muito gradualmente. Me tornei mais crítico com Israel e uma razão pessoas para meu desencanto é que tinha servido no exército muito feliz e lealmente, porque na minha época era fiel a seu nome: era a Força de Defesa de Israel e só enfrentávamos exércitos regulares do mundo árabe. Acreditei na ideia e também que estávamos rodeados de inimigos. Porém, como resultado da vitória de junho de 1967, Israel se converteu em uma potência colonial, uma potência imperial e as FDI se converteram na brutal força policial de um brutal poder colonial. Assim, já não é meu exército e o espírito da ideia mudou catastroficamente a partir de minha época. Fomos criados com a ideia do Tohar Ha Neshek – a pureza das armas – segundo o qual não usávamos armas contra civis e apenas para fins de defesa. Bom, esta não a do exército atual, que comete crimes de guerra de maneira sistemática, que cometeu crimes de guerra em cada um dos últimos três assaltos na Faixa de Gaza e é dirigido contra civis. Assim, estou completamente desencantado com a forma com que o exército se desenvolveu. Converteu-se em um exército de ocupação. Quanto ao resto da sociedade israelense, esteve se movendo constantemente para a direita. Dessa forma, me desencantei com Israel enquanto Estado-nação devido à ocupação.

J: Visita Israel muitas vezes?

AS: Não, devido a minhas reservas políticas sobre o país. Simplesmente não gosto da política, da política de direita, do chauvinismo e do crescente racismo público israelense. Não vou muito seguidamente, porém vou. Minha mãe tem 92 anos, vive em Israel e vou visita-la. Existe outro fator em resposta a sua pergunta sobre minha atitude para com Israel e é o fato de que sou um judeu oriental. Nasci em Bagdá em 1945 e em 1950 minha família se mudou para Israel. Agora, estou escrevendo uma memória sobre meus primeiros anos. Não é uma autobiografia, mas uma história de minha família.

Éramos judeus árabes. Sei que o termo não é popular em Israel, porém isso é o que éramos. Falávamos árabe em casa, a música de meus pais era música árabe. Tivemos uma vida feliz no Iraque, sem problemas e isto se produz em um contexto de uma longa história de harmonia entre muçulmanos e judeus. O antissemitismo não é um fenômeno árabe. O antissemitismo é um fenômeno europeu. O sionismo não é um fenômeno oriental, é um fenômeno europeu, é uma solução ao problema dos judeus na Europa. Minha família não tinha problemas para viver no Iraque e não simpatizava com o sionismo. Porém, devido ao contexto político e devido ao choque político entre o nacionalismo árabe e o sionismo, as vidas dos judeus no Iraque se tornaram quase impossíveis e houve um grande êxodo de 100.000 judeus do Iraque para Israel em 1950 e formamos parte dele.

Digo tudo isto porque as principais vítimas do movimento sionista são os palestinos. Porém, ao analisar a história de minha família, me dou conta de que existem outras vítimas do sionismo: os judeus das terras árabes. Havia uma comunidade judia no Iraque que esteve ali durante dois milênios e meio e não queria ir embora. É só com o surgimento do nacionalismo no século XX que a coexistência pacífica já não era possível. Então, minha atitude para com Israel também está influenciada por minha formação.

J: Teve contato com outros iraquianos ou tentou voltar para junto de sua família em Bagdá antes de 1950?

AS: Não, eu não. Quando me encontro casualmente com judeus iraquianos, sempre falam com grande nostalgia da vida no Iraque. Minhas duas avós, que vieram conosco para Israel, mas que nunca aprenderam o hebreu, costumavam falar do Iraque como Jannat Allah, o paraíso de Deus. Nunca colocaram seus pés no novo Estado. Meu pai tinha 50 anos quando chegamos a Israel. Era um homem muito rico, porém perdeu todo seu dinheiro e lutou com o hebreu. Nunca se adaptou ao novo lugar. O impacto foi demasiado grande para ele. Era um homem quebrado. Costumava dizer com um suspiro, os judeus rezaram em vão por um Estado durante dois mil anos: por que teve que acontecer isto em minha vida?

Podia ter visitado o Iraque depois da guerra de 2003, porém não quis chegar ao Iraque sob a ocupação anglo-estadunidense. Por isso, por razões ideológicas, não voltei. Porém, estou orgulhoso de minha herança iraquiana, me orgulha definir-me como um judeu árabe e a piada aqui no Middle East Center, em St. Antony’s College, de Oxford, era que até que chegar Tariq Ramadan e se converter em um companheiro, eu era o único árabe entre os companheiros, porque era iraquiano.

J: Passando a temas mais contemporâneos, você afirmou em um artigo publicado no The Guardian em princípios deste ano que “Obama foi o presidente mais pró-Israel desde Truman”. Voltaria a avaliar isto agora, à luz da presidência de Donald Trump e suas posições políticas sobre Israel/Palestina?

AS: Os Estados Unidos têm uma grande parte da responsabilidade do estancamento diplomático dos últimos cinquenta anos entre Israel e os palestinos, porque após a guerra de 1967, os Estados Unidos adotaram um monopólio sobre a diplomacia que rodeia o conflito árabe-israelense. As Nações Unidas deveriam ter abordado este conflito porque é um conflito internacional. Porém, os Estados Unidos assumiram ou usurparam um monopólio que não era seu e excluíram todos os demais jogadores durante a Guerra Fria e depois dela. Todavia, excluiu a Rússia, a ONU e a UE. Porém, não conseguiu trazer a paz.

O processo de paz patrocinado pelos Estados Unidos, que começaram em 1991, depois da Guerra do Golfo, é só um processo e não existe paz. É uma farsa. É simulação. É pior que uma farsa porque o processo de paz dá a Israel a cobertura que necessita para continuar seu agressivo projeto colonial na Cisjordânia. E o problema com o apoio estadunidense a Israel é que é incondicional, então os Estados Unidos dão dinheiro a Israel, dão armas a Israel e dão conselhos a Israel. Israel recebe o dinheiro, recebe as armas e repudia o conselho.

Israel não paga nenhum preço por seu desafio aos Estados Unidos. Agora, Obama sabe mais sobre a história palestina que que qualquer outro presidente estadunidense, pronunciou o discurso no Cairo, em 2009, no qual prometeu somente seu apoio ao Estado palestino. Prometeu, porém não cumpriu. Obama foi muito bom para falar, mas não conseguiu nada. Nunca usou a influência econômica sobre Israel para empurra-lo a um acordo com os palestinos. Durante seus oito anos no cargo, Obama aumentou constantemente a ajuda militar e econômica estadunidense a Israel e, oportunamente, para sua despedida, decretou um pacote de ajuda de 38 bilhões de dólares para os próximos dez anos. Então, Obama não tem conquistas em relação à resolução do conflito israelense-palestino, porém ao menos tentou. Identificou a expansão das colônias, como o principal problema e enfrentou Netanyahu três vezes sobre este tema, porém cada vez retrocedeu. Netanyahu fez sua vontade; continuou com a expansão das colônias e continuou recebendo a ajuda estadunidense.

Com Trump, ocorreu uma mudança importante na política estadunidense para o conflito, porque não existe a pretensão de imparcialidade. Obama tentou fingir que era imparcial, porém Trump é pública e abertamente unilateral pró-israelense. As pessoas em que Trump confia são sionistas. Seu principal assessor em Israel-Palestina é seu genro, judeu ortodoxo, Jared Kushner, que não tem nenhuma experiência em assuntos governamentais ou públicos. A família de Kushner apoia as colônias da direita na Cisjordânia. O embaixador de Trump em Israel é David Friedman, seu advogado, especializado em bancarrotas, que é um sionista de extrema direita, à direita de Benjamin Netanyahu. Friedman repassa cerca de dois milhões de dólares ao ano para Beit El, que é uma colônia de linha dura na Cisjordânia. Também está firmemente a favor de transferir a embaixada estadunidense de Tel Aviv para Jerusalém. Também anexar Ma’ale Adumim, nos arredores de Jerusalém. Embora o Governo não tenha aceitado isso, se informou que Friedman apoia a anexação de partes da Cisjordânia a Israel. Depois de uma reunião entre Trump e Netanyahu na Casa Branca, um jornalista perguntou a Trump se apoiava o acordo de dois Estados, ao qual ele respondeu: “Se Bibi está de acordo com dois Estado, estou a favor e se Bibi quer o Estado único, é o que teremos”. Em outras palavras, abdicou de uma posição estadunidense independente sobre como resolver este conflito. Estava se referindo a “Bibi” e não tinha nem ideia dos direitos palestinos ou do que os palestinos poderiam dizer sobre o tema. Portanto, nunca tivemos um presidente estadunidense que ignore mais as realidades deste conflito e os respectivos direitos e injustiças em virtude do direito internacional e que seja tão público e abertamente parcial como Trump.

J: Você continua sendo defensor de um acordo de dois Estados?

AS: Fui partidário de uma solução de dois Estados durante a maior parte de minha vida porque nunca pode existir uma justiça absoluta para os palestinos. Creio que a criação do Estado de Israel implicou uma injustiça monumental contra os palestinos, porém não quero dar um passo mais e dizer que Israel deve ser desmantelado para fazer justiça aos palestinos. Aceito a realidade de Israel dentro de suas fronteiras originais, aceito a legitimidade de Israel dentro de suas fronteiras originais anteriores a 1967.

Edward Said descreveu as duas comunidades como duas comunidades de sofrimento. Devemos considerar a trágica história dos judeus e o sofrimento dos palestinos. A solução de dois Estados parecia não ser uma solução perfeita, mas uma solução razoável. A OLP, ao assinar os Acordos de Oslo, renunciou a reivindicação de 78% do Mandato Palestino com a esperança de obter um Estado palestino independente nos 22% restantes, na Cisjordânia e Gaza. Assim, apoiei a solução de dois Estados, porém Israel, sob os governos trabalhista e do Likud, continuou expandindo as colônias. Isto é incompatível com uma solução de dois Estados.

As colônias representam a apropriação de terras. A apropriação de terras e a construção da paz não se complementam, é uma coisa ou outra. Por suas ações, se não sempre em sua retórica, Israel optou pela apropriação de terra e, enquanto falamos, Israel está expandindo as colônias. Então, Israel esteve destruindo sistematicamente as bases para um Estado palestino viável e este é o objetivo declarado do Likud e Netanyahu, que diziam pretender aceitar uma solução de dois Estados. No período prévio às últimas eleições, disse que não existirá nenhum Estado palestino sob seu Governo. A expansão das colônias e o muro significam que não pode existir um Estado palestino viável com contiguidade territorial. O máximo que os palestinos podem esperar são bantustões, uma serie de territórios rodeados de colônias israelenses e bases militares israelenses.

Então, uma solução de dois Estados já não é uma opção viável e é, por isso, que me converti em partidário da solução de um só Estado, um Estado único com os mesmos direitos para todos os seus cidadãos. Ideologicamente, não tenho nenhum problema com uma solução de um Estado. Ideologicamente, é muito atrativo, é uma visão nobre de duas comunidades que vivem em harmonia em um espaço, com os mesmos direitos para todos os seus membros. Contudo, não sou tão ingênuo como para pensar que a solução de um só Estado é uma perspectiva realista, porque não existe respaldo para uma solução de um só Estado em Israel. E se me pressionam muito, creio que Israel retirará o muro e anexará tudo o que quiser da Cisjordânia. Seriam anexados os principais blocos de colônias em Ma’ale Adumim e toda a área em torno de Jerusalém, e o faria de forma unilateral em lugar de ter um Estado único. Por isso, não sou em absoluto otimista de que a solução de um Estado seja uma proposta viável. Porém, aqui é onde estou parado e culpo Israel por eliminar a alternativa de uma solução de dois Estados.

J: Como você percebe as últimas posições do Hamas e, particularmente, as proclamadas em seu novo documento de política, publicado em maio de 2017?

AS: O Hamas se converteu em um partido político, se apresentou para as eleições em janeiro de 2006 e ganhou. Existiram muitos monitores internacionais e todos coincidiram que foi uma eleição livre e justa. Assim, considero o Hamas o Governo legítimo da Palestina. Porém, Israel repudiou os resultados das eleições e os Estados Unidos, para sua vergonha, seguiu Israel ao repudiar os resultados das eleições e também o fez a União Europeia. Os estadunidenses pretendem ser promotores da democracia. Afirmam que invadiram o Iraque para promover a democracia, porém a única democracia árabe autêntica com a possível exceção do Líbano é a Palestina, que teve uma eleição, o povo falou, votou pelo Hamas e Israel e seus aliados ocidentais repudiaram os resultados porque as pessoas votaram pelo grupo de líderes “equivocados”. Assim, sempre considerei o Hamas o Governo legítimo da Palestina e também acredito que o Hamas moderou constantemente seu programa. Seus líderes fizeram muitas declarações aceitando a solução de dois Estados e o documento recente, que ainda que não tenha anulado o estatuto de 1988, é um novo conjunto de diretrizes para o Hamas e é muito mais explicitamente moderado. Todo o antissemitismo da carta se foi, o novo documento deixa claro que a luta do Hamas não é com os judeus, mas com os sionistas. Diz explicitamente que o Hamas aceitaria um Estado palestino independente ao longo das fronteiras de 1967, caso aprovado pelo povo em um referendo. Então, o problema não é o Hamas. O problema é a intransigência israelense, porque o repúdio israelense do Hamas não é condicional, mas absoluto.

Então, o Hamas não é o obstáculo para a paz, é Israel o principal obstáculo para a paz. O último documento do Hamas é mais um passo para o caminho da moderação e é uma pena que tenha existido muito pouco reconhecimento da importância deste movimento no Ocidente.

Existe outro problema: Israel diz que a razão principal pela qual não pode negociar com os palestinos é porque os palestinos estão fragmentados. Isso é um completo lixo, porque existiram muitas tentativas de reconciliação entre o Hamas e o Fatah. Cada vez que chegam a um acordo, Israel lança uma guerra em Gaza para interrompê-lo e a última vez foi em 2014, quando Fatah e Hamas formaram um Governo de consenso. A estratégia israelense é dividir e governar. E também é separar Gaza da Cisjordânia para derrotar a luta pelo Estado palestino.

J: Quais são seus pontos de vista sobre o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS)?

AS: O BDS é um movimento de alcance mundial que reuniu apoio a um ritmo impressionante e teve um grande número de êxitos com importantes companhias que se desligaram de Israel. Também teve um impacto considerável na opinião pública em todo o mundo, deslegitimando a ocupação israelense. Os israelenses o levam muito a sério. Formaram uma unidade com um orçamento de 40 milhões de libras esterlinas para lutar contra o BDS, lançar ataques contra pessoas e deslegitima-las em lugar de comprometer-se com os argumentos do BDS. E me parece que agora existe esperança de que os governos ocidentais mudem sua política de apoio a Israel. Doze parlamentos europeus reconheceram a Palestina, porém só o Governo sueco reconheceu a Palestina, pelo que o reconhecimento da Palestina por parte dos governos ocidentais não ocorre. O governo britânico sob Theresa May é completamente unilateral em seu apoio a Israel. Theresa May descreveu Israel como um farol de liberdade e tolerância, disse que se orgulha da Declaração Balfour e que planeja celebra-la este ano em seu aniversário [2 de novembro]. Então, a primeira ministra britânica defendeu a Declaração Balfour, que é um documento colonial clássico e não poderia ser mais unilateral. Portanto, não tenho a esperança de que a política ocidental ponha Israel em seu lugar.

Estou a favor das sanções da UE contra Israel não cumpre os termos do acordo de adesão com a UE. O preâmbulo deste acordo diz que Israel deve respeitar os direitos humanos de todas as pessoas sob seu domínio. Israel viola sistematicamente os direitos humanos dos palestinos e, portanto, penso e espero que a UE suspenda este acordo até que Israel cumpra suas obrigações.

Voltando ao BDS, não existem esperanças de que os palestinos ponham fim à ocupação com o apoio dos governos ocidentais ou da ONU. A única esperança que têm os palestinos é através do BDS.

Isso não quer dizer que, em um futuro previsível, o BDS poderia provocar o fim da ocupação israelense. Porém, essa é a única esperança que têm os palestinos de progredir.

Traduzido do inglês para Rebelión por J. M.

Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2017/11/06/analisis-israel-palestina-entrevista-a-avi-shlaim-sobre-los-nuevos-historiadores-de-israel-hamas-y-el-movimiento-bds/

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)