Ishiguro, a Nova Guerra Fria e o labirinto da memória

imagempor M K Bhadrakumar

Se me pedissem para fazer uma lista de obras de ficção do meu romancista vivo preferido, Kazuo Ishigoro, vencedor britânico do Prêmio Nobel, eu ficaria perplexo. Adoro tudo o que ele escreveu, alguns dos seus romances li mesmo uma segunda vez. Mas se insistir numa lista curta de três, eles são: Os despojos do dia, Quando éramos órfãos e O gigante enterrado.

D. H. Lawrence certa vez escreveu que livros são apenas “trepidações no éter”, mas o romance tal como uma trepidação pode “fazer todo o homem vivo tremer”. Cada um dos três romances de Ishiguro é profundamente significativo. Quando éramos órfãos leva-nos para o labirinto da memória e, quando nele viajamos, percebemos como começamos a acomodar a memória e torná-la menos penosa; O gigante enterrado é acerca da recuperação de memórias perdidas e uma devassa investigativa da culpa, construída em torno de um impensado e frívolo caso de adultério, o qual termina num doloroso impulso para esquecer.

Mas Os despojos do dia é de um teor totalmente diferente – não só por causa da clássica adaptação em filme estrelado por Anthony Hopkins e Emma Thomson ou por causa do seu tema eterno da tragédia do fracasso ou incapacidade para comunicar amor – e a consequente perda de oportunidade de um relacionamento desejado – mas também da sua sutil evocação do tumultuoso avanço para a II Guerra Mundial, tal como narrado em flashbacks de pormenores crescentes por Stevens, um mordomo inglês.

Cerca de meia noite de ontem, quando enviava um artigo ao Asia Times sobre a cúpula trilateral de Sochi na próxima semana entre a Rússia, a Turquia e o Irã – um pungente relacionamento das três partes que só experimentou rivalidades e guerras e contestações ao longo de vastos períodos da história moderna (e pré moderna) e que nunca alguma vez culminou numa conferência trilateral – recordei-me subitamente de Os despojos do dia. O pano de fundo é incrivelmente semelhante.

Estão no ar pressentimentos obscuros de uma guerra monumental no Médio Oriente, a qual poderia atear uma guerra mundial. Preparativos febris estão em curso. A cúpula de Sochi na próxima quarta-feira é uma corajosa tentativa de circular os vagões.

O principal resultado dos breves intercâmbios entre o presidente Donald Trump e o presidente Vladimir Putin conseguiram ter (sem escutas de responsáveis americanos) à margem da cúpula da APEC (Asia Pacific Economic Cooperation) no Vietnam é que teria feito o lado russo entender, finalmente, que o establishment de Washington simplesmente não está interessado em fazer progressos com Moscou em relação a qualquer frente (incluindo a Síria), e a sua bússola já está ajustada para demonizar sistematicamente a Rússia e criar uma imagem de “inimiga” na psique ocidental.

Claramente, a conferência de Sochi na quarta-feira confirma a percepção de que se levantou uma necessidade urgente de repelir a beligerância dos EUA de modo a que a paz retorne à Síria (Ver minha coluna no Asia Times intitulada Russia, Turkey, Iran meeting to discuss Syria strategy).

O sítio web do Kremlin reproduziu excertos de uma conversação na quarta-feira em Moscovo entre o presidente Vladimir Putin e o vice-primeiro-ministro Dmitry Rogozin o qual está encarregado da indústria da defesa da Rússia e tem um papel crucial a desempenhar na modernização das forças armadas russas e em assegurar que a prontidão de Moscovo para a defesa permaneça ótima.

Rogozin estava informando Putin que o programa para aperfeiçoar o lendário Tu-160, bombardeiro estratégico supersônico de longo alcance, fora cumprido com êxito e a nova versão TU-160M2 com aviônica de vanguarda e um motor recém desenvolvido foi “revelado” ontem. O voo inaugural é esperado em fevereiro. A indústria da defesa russa está cumprindo “o muito complicado desafio de recuperar técnicas de produção perdidas, incluindo soldadura com feixes de elétrons e manejo de titânio”.

O bombardeiro estratégico Tupolev é o maior e mais pesado bombardeiro supersônico com asas de geometria variável alguma vez já construído (ele teve o seu primeiro combate na Síria em 2015). A mensagem é clara. A revelação por parte do Kremlin verificou-se apenas três dias depois da reunião de ministros da Defesa da OTAN em Varsóvia em que a aliança decidiu criar dois novos comandos num fortalecimento militar que recorda a era da Guerra Fria – um novo Comando do Atlântico Norte para verificar a atividade naval russa (especialmente submarinos) no Ártico dentro do Atlântico norte (o qual é parte integral da “tríade nuclear” da Rússia) e, secundariamente, um novo Comando Logístico que se centra na capacidade de mover tropas mais rapidamente através da Europa até a fronteira russa ( Bloomberg ).

Estes movimentos são fortes em simbolismo pois eles ampliam capacidades da OTAN contra a Rússia se estalar guerra. Ao anunciar isto, o chefe do comitê militar da OTAN, general Petr Pavel, chamou abertamente a Rússia de “ameaça potencial”.

A propósito, de modo interessante Pavel acrescentou: “Se olharmos para as crescentes capacidades de países como a Rússia e a China, com um alcance global, é bastante óbvio que linhas de comunicação marítimas têm de ser protegidas”. Quão abissalmente superficiais podem ser nossos jovens repórteres e analistas estratégicos em Delhi quando ficam loucamente extasiados com a viagem asiática de Trump e Tillerson !

Estou recordando a experiência do mordomo Stevens do mundo externo, no romance de Ishiguro, dentro das paredes de uma nobre casa senhorial. Stevens podia apanhar apenas fragmentos da animada conversação à mesa de jantar entre o seu patrão Lord Darlington e Chamberlain mas não podia compreender nem a rudeza do tragicamente enviesado Tratado de Versalhes (28/junho/1919) no fim da I Guerra Mundial nem o impulso de Darlington de ajudar a Alemanha contra o grave pano de fundo da ascensão do nazismo.

17/novembro/2017

O original encontra-se em blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/…

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/eua/bhadrakumar_17nov17.html