Os indignados de Israel e o Estado palestino
de Bil’in, Palestina
publicado: Jornal Brasil de Fato – edição 440,4 a10 de agosto de 2011 – www.brasildefato.com.br
As peças do tabuleiro político da Ásia ocidental estão mudando rapidamente de lugar. A menos de dois meses da 66ª sessão da Assembleia Geral da ONU, que terá pela frente a tarefa de votar o reconhecimento do Estado palestino, há um enorme abalo nesta parte do mundo. A mobilização da sociedade civil palestina e israelense, os esforços diplomáticos da Autoridade Nacional Palestina (ANP) e do governo sionista nos países cujos votos darão a decisão final na ONU, as manifestações de descontentamento que levaram milhares de israelenses a montar acampamentos no espaço público, à moda dos indignados das praças Tahir (Egito) e do Sol (Madri), são apenas os sintomas visíveis de um profundo descontentamento que, desenvolvido ao longo do tempo, agora atinge seu limite. Em outras palavras, ninguém aguenta mais a situação criada pelos governos sionistas em Israel e nos territórios palestinos.
É disso que se trata quando parte da sociedade israelense, e judeus do mundo inteiro, desautorizam o governo do primeiro ministro Biniamin Netanyhau a falar e a agir em seu nome. Também é disso que se trata quando 57% dos judeus dos Estados Unidos declaram-se favoráveis à criação do Estado palestino nas fronteiras pré-1967, mas com permuta de terras, de acordo com uma pesquisa divulgada em 21 de julho pela organização judaica J Street, sediada nos EUA e defensora da solução de dois Estados, um para os palestinos, outro para os israelenses. As pessoas comuns – e isso o governo de Israel não percebeu, por ter se distanciado delas – querem justiça social. É essa a exigência que elas fazem nos protestos que varrem Israel de norte a sul há cerca de um mês e que levaram mais de 150 mil cidadãos às ruas, em marchas pacíficas, em 11 cidades do Estado israelense no sábado, 30 de julho.
O movimento, que começou com o protesto de jovens de Tel Aviv e Jerusalém contra o preço extorsivo dos aluguéis e do inalcançável financiamento para a compra da casa própria, logo se espalhou pelo país. O alvo das queixas também se alargou. Ao problema da moradia juntaram-se a alta do custo de vida, a dificuldade em criar filhos, as péssimas condições da saúde pública e, por fim, a questão que está na base de todas essas reclamações: justiça social.
A verdade é que os governos israelenses, com sua ideologia voltada para a “segurança” e o estado permanente de guerra contra um inimigo imaginário, investem muito em tecnologia bélica e muito pouco no social. Essa preferência, porém, até agora só havia molestado os palestinos, que pouco a pouco foram privados de seus direitos mais básicos, como o acesso à terra, à água, à livre movimentação. Cobaias involuntárias de novas armas e de novos métodos de repressão criados pelos sionistas, transformados em vitrine para a exposição dos “sistemas de segurança” que Israel hoje vende mundo afora – e que países como o Brasil compram –, os palestinos não tiveram opção senão a resistência, da qual as marchas pacíficas das sextas-feiras são a prova de vida.
Expulsos violentamente de seu próprio território desde fins do século XIX, para que o projeto sionista tivesse início, eles há muito se acostumaram a um estilo de vida quase franciscano. Moram, trabalham, comem, criam seus filhos e vivem de maneira simples, sem a sofisticação exigida pela classe média de Tel Aviv ou de Jerusalém. A justiça social que buscam é de outro tipo, baseada em cidadania plena, igualdade de direitos, liberdade para decidir o próprio destino. E isso implica, obviamente, o fim da ocupação sionista.
As classes média e popular de Israel, em processo de pauperização, ainda não têm ideia de até que ponto a construção ilegal do muro e das colônias judaicas em terras palestinas são responsáveis por sua condição atual. Quanto dinheiro Israel gastou e gasta nessas construções? Na constituição do aparato militar – pessoal, equipamentos e projeteis – que supostamente proporciona “segurança” aos colonos? Quanto custa, em perda de poder de compra, o expansionismo sionista na Ásia ocidental? E em perda de direitos? De vidas?
Ao que tudo indica, os indignados de Israel ainda não chegaram a esse nível de reflexão. E talvez não cheguem, mesmo tendo a seu lado as tendas de um grande número de palestinos que moram em Israel, e que certamente têm lhes contado as próprias agruras. Mas quem sabe a situação lhes abra a sensibilidade, e a possibilidade, de enxergar além da cortina de fumaça da hásbara, a propaganda sionista, e de conhecer o outro lado da história…
Netanyhau perde fôlego
Depois de ver recusada a primeira proposta feita aos indignados israelenses, Netanyhau decidiu montar uma força-tarefa para tentar resolver a situação. Parece pouco provável que o grupo obtenha algum sucesso. Para que isso fosse possível, o governo teria de abrir mão de suas políticas neoliberais, que beneficiam apenas a camada já enriquecida da sociedade. Uma das bases do projeto sionista, a economia de livre mercado, dificilmente cederá lugar a qualquer outra capaz de promover a “justiça social” exigida pelos manifestantes.
Mesmo que a proposta da força-tarefa fosse aceita, o jogo parece perdido para Netanyhau. Sua imagem já foi bastante arranhada, o que se reflete em queda de popularidade. Pesquisa publicada pelo jornal liberal israelense Haaretz mostrou que a aprovação ao primeiro ministro, de 53% em maio, caiu para 32% no final de julho, quando os protestos se arrastavam havia duas semanas e tinham um nível alto de adesão. A pesquisa também indicou que 87% dos israelenses apoiam a mobilização popular. No domingo, 23 de julho, os indignados, em passeata ao parlamento, exigiram a renúncia do primeiro ministro.
Mesmo às voltas com esses graves problemas internos, Netanyhau ainda abriu espaço em sua agenda para criticar a “intransigência” palestina, que é como a direita israelense chama a decisão da ANP de ir à Assembleia Geral da ONU solicitar o reconhecimento do Estado palestino (seu ingresso como membro pleno na organização é assunto do Conselho de Segurança; os Estados Unidos já anunciaram que vetarão a proposta). Em discurso para o comitê de assuntos internacionais e segurança do Parlamento, ele revelou que o governo trabalha num projeto de paz “baseado em alguns dos pontos” citados pelo presidente Barack Obama, mas com fronteiras “diferentes daquelas de antes de 1967”. E decretou: “Não aceitaremos os termos dos palestinos para negociação”.
Até aí, nenhuma novidade. É exatamente isso que os sucessivos governos sionistas vêm fazendo ao longo de todos esses anos. As “negociações de paz” são simples estratégias para estender a ocupação, algo que os palestinos denunciam faz tempo. Agora, porém, o plano não funciona mais. Na tentativa de fazer a ANP desistir da ONU, Israel ofereceu novas conversações aos palestinos, que as recusaram. O boato de que Saeb Erekat, membro do comitê executivo da OLP, fora a Washington retomar as negociações de paz, foram negados por ele. E esta semana a Coordenaria dos Comitês Populares de Luta contra a ocupação deixou claro que a população não aceita nenhum tipo de acordo com Israel. “É direito do povo palestino ter seu Estado plenamente reconhecido pela ONU, com Jerusalém como sua capital”, afirma o documento preparado pelos líderes populares da Palestina.
A Coordenadoria também anunciou o início de uma ação intensiva visando a “um programa de luta popular” em setembro, tanto nos territórios palestinos como nas nações em que a sociedade civil apoia a Palestina, para que ela se torne o 194º. Estado-membro da ONU. Estão previstas, por enquanto, concentrações no Egito, na Tunísia, em Nova York, em Washington e nos campos de refugiados do Líbano, Síria e Jordânia. No Brasil, o Comitê pelo Estado da Palestina Já também promete mobilização popular. Reuniões diárias têm sido realizadas pela Coordenadoria e por representantes dos 13 partidos palestinos, para organizar a “Primavera Árabe-Palestina”.
A reação sionista não demorou. Cada vez mais violentos, os colonos judeus, usando máscaras para não ser reconhecidos, atacam os moradores das vilas palestinas, queimam ou destroem suas plantações, perseguem pastores e rebanhos quase diariamente. “Eles andam pelas terras palestinas como se fossem donos delas”, testemunha um voluntário brasileiro em Hebron. Em relação ao governo israelense, milhões de dólares já foram investidos na compra de armas e equipamentos para reprimir as manifestações pacíficas dos palestinos em setembro. Em resumo, com Estado reconhecido ou não, os palestinos não terão sossego tão cedo.
Fonte: