A vergonha suprema da “nossa civilização”
Palestinos passam por entre os escombros do edifício residencial al-Roya, na zona oeste da cidade de Gaza, após um ataque aéreo israelense, em 8 de setembro de 2025
Créditos: Mohammed Saber / EPA
José Goulão – ABRILABRIL
Se a preocupação dos nossos governos fosse outra, equivalente à que nós sentimos, há muito que as ações genocidas sionistas teriam sido interrompidas e existiria o Estado viável a que os palestinos têm direito.
Os projetos para a construção de uma luxuosa estância de turismo mundial na Faixa de Gaza constituem o mais repugnante exemplo de desumanidade e de agressão aos direitos humanos resultante da perversa degradação a que chegou o chamado «mundo ocidental», ou «ocidente coletivo», que se diz depositário da «nossa civilização».
A obra prevista, que se inspira no novo riquismo arquitetônico e violador do ambiente de Dubai e de outras estâncias das petromonarquias árabes, mas ultrapassa até as condições luxuosas por elas proporcionadas, irá se assentar num genocídio, numa limpeza étnica, em pilhas de centenas de milhares de restos mortais de seres humanos depositados em cemitérios formais ou improvisados, em valas comuns ou que jazem pulverizados entre milhões de toneladas de escombros.
As consciências dos energúmenos mais ricos do mundo, acompanhadas pelas de estratos das classes médias e altas da América, da Europa e da Ásia dispostas a empenhar-se para exibir o status grandioso que almejam desde sempre, estarão serenas e pacificadas ao gozar das delícias dos spas das mil e uma noites. E também ao degustar os manjares servidos em lugares onde dezenas de milhares de crianças morreram de fome ou, mais prosaicamente, ao banhar-se nas águas mediterrânicas paradisíacas livres da presença dos vasos de guerra israelenses e nas quais os paupérrimos pescadores palestinos foram sempre proibidos de cultivar o seu sustento.
O faraônico empreendimento que o mega construtor civil Donald Trump, em funções de presidente dos Estados Unidos da América e de imperador ocidental, planeja construir na Faixa de Gaza é um ambicioso caçador e gerador de fortunas em que se transformará grande parte do «novo Oriente Médio» que o capitalismo neoliberal pretende fazer nascer a partir do extermínio do povo palestino. Ou, com mais propriedade, da «solução final» do «problema palestino».
Um tal cenário idílico transformar-se-á na mais ilustrativa imagem de marca da democracia liberal, ficando por saber-se em que se distinguirá esta do fascismo trumpiano, do nazismo-banderista de Kiev, das ditaduras terroristas árabes e da perversidade exotérica, racista e exterminadora do sionismo. Em suma, um magma indestrinçável que representará, finalmente, a «nossa civilização» num globalismo totalitário em marcha. Desde que consiga, é claro, vergar os BRICS, destroçar a Organização de Cooperação de Xangai, fazer descarrilar e naufragar a Iniciativa Cintura e Estrada, minar a União Econômica Euroasiática, virar a Rússia contra a China, a Índia contra a China e a Rússia contra a Índia e desbaratar todas as formas de solidariedade e desenvolvimento que avançam no resto do mundo, para desespero da sacrossanta «ordem internacional baseada em regras». Aí, porém, como se diz no riquíssimo vernáculo português, «é que a porca torce o rabo».
Um Far West no Middle East (um faroeste no Oriente Médio)
Antes de nos atermos diretamente à desumanidade selvática e à missão sangrenta através da qual o colonialismo ocidental pretende regenerar os territórios palestinos ocupados, reflitamos um pouco sobre o enquadramento internacional que a chacina adquiriu.
Vivemos numa democracia liberal, dizem-nos as gangues governamentais da União Europeia e da América do Norte, de braços dados com as oposições que invocam «estatuto governativo». Em Portugal explicam-nos, sem pudor nem vergonha, que se trata de continuar o caminho aberto em 25 de Abril de 1974. Um desmando que deveria fazer pensar e proporcionar uma honesta autocrítica a todos os que, invocando as melhores das intenções, recorreram às hordas saudosas do salazarismo, por mais polidas que estivessem, para fazer triunfar o 25 de Novembro e, eles o diziam, recolocar Portugal na legítima senda do 25 de Abril. Vejam aonde isso nos conduziu.
Ora a democracia liberal, onde os seguidores de Salazar, Pinochet e agora do transtornado ditador fascista argentino Javier Milei desempenham papéis cada vez mais influentes, guia-se pela tal «ordem internacional baseada em regras», uma doutrina que espezinha o Direito Internacional ao mesmo tempo em que formata a opinião dos cidadãos numa confusão única e unificada.
A democracia liberal, com a sua ordem casuística e ilegal, é o regime da arbitrariedade, do golpismo, do oportunismo, da perseguição da opinião livre e da privacidade de cada qual para servir os maiores interesses econômicos e financeiros mundiais. Sendo estes movidos por uma elite criminosa, mafiosa e traficante cada vez mais rica e restrita.
A «ordem baseada em regras» tem a guerra como a principal plataforma de atuação. Não é por acaso que Donald Trump, num gesto raro de honestidade e lucidez, tenha decidido substituir o Departamento da Defesa (ministério, Pentágono) por um Departamento da Guerra. Ficou tudo claro: o chefe do Ocidente acaba de confirmar que, quando a OTAN, a União Europeia e os nossos governos falam em «doutrina de defesa» ou investimentos «na defesa», querem dizer «doutrina de guerra» ou investimentos na guerra. Seria bom que, por uma questão de coerência em relação à política de seguidismo rasteiro, o nosso governo ressuscitasse a terminologia salazarenta de «Ministério da Guerra». Para maior ventura de Ventura.
A democracia liberal é tudo isto, mais a mentira, uma prática necessária, porém nunca suficiente, para que todos acreditemos que vivemos em democracia.
Por esta via era inevitável o que está acontecendo. A mentalidade sem lei do velho faroeste colonizador estadunidense, assentado no extermínio da população indígena e respectiva substituição por uma população imigrante, configurou o estilo de vida ocidental, o padrão da democracia liberal.
O primeiro primeiro-ministro de Israel, o cidadão polaco David Ben-Gurion, nascido David Grun e de mãe Scheindel, costumava dizer que não via qualquer problema no tratamento genocida dado aos índios dos EUA, porque «uma raça superior» foi tomar conta do território. «Deus os fez, Deus os juntou», dirá o povo. O comportamento de Israel não é mais do que a réplica do massacre dos indígenas da América do Norte (e do Sul) para instalação de uma população imigrante, embora praticada com meios mais sofisticados e baseada numa doutrina de inspiração divina para justificar as carnificinas terrenas. Mais uma razão para se perceber que o eixo Estados Unidos-Israel é «indestrutível», como se diz em ambos os países. Tenhamos sempre presente que a versão israelense mais comum sobre a criação do país é a de que «Deus prometeu-nos esta terra há cinco mil anos». Uma cláusula delirante assumida, com toda a naturalidade, pela «ordem nacional baseada em regras».
Dizem os chefes e os propagandistas da democracia liberal, mentindo com quantos dentes têm na boca, que defendem a solução «de dois Estados na Palestina», porque é isso que está estabelecido no Direito Internacional, coisa que desprezam com todas as suas forças.
Existe uma exceção honrosa, que se afirma cada vez com mais coragem e espírito humanitário, mesmo sabendo que não passa de uma voz a pregar no cruel deserto ocidental: o governo espanhol e o seu presidente, Pedro Sanchez. Sanchez não contorna a realidade ao garantir que estamos perante o genocídio de um povo, não quer saber de Von der Leyen, Costas, Trumps e Netanyahus para nada. E, ao contrário dos seus parceiros na União Europeia e na OTAN, tomou medidas para que, ele o diz, ainda seja possível salvaguardar a «solução de dois Estados». Porém, como diz o povo, «não há regra sem exceção» e, no transtornado Ocidente, é a regra que continua a vigorar.
Ninguém mais do que eles, os chefes e propagandistas da democracia liberal, sabe que estão proferindo uma das suas supremas e deslavadas mentiras. Enquanto falam em «dois Estados» em ritmo de mantra, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu (aliás Mileikovsky, do seu pai polaco), assegura que vai acelerar a colonização da Cisjordânia e o massacre em Gaza (para «combater o Hamas»), de modo a que não seja possível a criação de um Estado Palestino. O chefe do governo de Telavive, perseguido pela justiça internacional mas pavoneando-se onde for necessário na União Europeia e nos Estados Unidos, não tem pejo em dizer o que sente e em praticar a «ordem internacional baseada em regras», atitude em que é bem mais honesto do que os seus aliados. Os nossos governos superam em hipocrisia o criminoso sionista. Falam, falam e voltam a falar num Estado Palestino, vertem lágrimas de crocodilo pelos mortos, as crianças e os famintos, indignam-se enquanto se vergam às ordens dos embaixadores de Israel que o Mossad distribui pelo mundo e, no fim, assistem ao extermínio do povo palestino sem mexerem uma palha.
Porque não um resort?
Perante estes comportamentos haverá razão para nos surpreendermos com os planos de construção de um resort balnear de luxo sobre pilhas de centenas de milhares de cadáveres e os restos de vidas penosas deixados por dois milhões de mortos-vivos? No fundo, planos como esses mais não são do que uma manifestação monstruosa, é certo, da desumanidade e do desprezo pelas pessoas inerentes à democracia liberal. Se a preocupação dos nossos governos fosse outra, equivalente à que nós sentimos, há muito que as ações genocidas sionistas teriam sido interrompidas e existiria o Estado viável a que os palestinos têm direito. Um Estado cuja instituição será uma realidade, queira ou não o sionismo – a única dúvida é saber quando. Os governos e os regimes criminosos não duram para sempre e a História está cheia de derrocadas de regimes terroristas análogos. Destino que espera, também, o totalitarismo neoliberal.
Porém, o que está em vigor no mundinho ocidental, por enquanto, é a «ordem internacional baseada em regras». É verdade que o Direito Internacional não permite a Donald Trump exercer soberania sobre um território que não pertence ao seu país, a Faixa de Gaza, para aí dar vazão a perversões negociais. Da mesma maneira, as convenções internacionais impedem Israel de provocar alterações demográficas e estruturais nos territórios que tem sob ocupação: Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Leste. A ordem internacional arbitrária existe exatamente para que o Ocidente cometa essas ilegalidades, mas isso não quer dizer que o Direito Internacional tenha sido revogado para sempre. A parte imensa do mundo que está para além do quintalzinho representado pelo chamado «ocidente coletivo», equivalente a pouco mais de 15%, trabalha pela sua reposição e tem dado passos estratégicos fundamentais para que isso aconteça.
A relação de forças, contudo, ainda permite aos governantes e seguidores do conceito transviado de democracia liberal sonharem com o paraíso turístico numa Faixa de Gaza arrasada e terraplanada com tudo o que nela existe, incluindo a vida humana.
Não tenhamos dúvidas de que, assim que o Egito abrir as portas em Rafah, na fronteira sul do enclave, grande parte da população de Gaza nem necessitará de ser empurrada pelos agentes sionistas: fugirá, pura e simplesmente, em busca nem que seja de umas migalhas que agora lhes negam, das tendas que substituam as casas que lhes arrasaram, de uma sopa preparada por uma caridadezinha sempre pronta a exibir-se para socorrer os desvalidos, de uma nova vida penosa e incerta que, afinal, há muito lhe prometem no deserto.
As gangues políticas ocidentais, então já aliviadas por, finalmente, ter sido resolvido o «problema palestino», juntar-se-ão na inauguração pomposa do paraíso de Gaza e espojar-se-ão de gozo sobre as amenidades de um luxo raro criadas sobre os escombros humanos, materiais e civilizacionais de uma cultura milenar à qual a nossa foi beber quase tudo. Com exceção, claro, das perversões e dos desvios comportamentais selvagens a que se dedica.
Nessa ocasião, por outro lado e perante as chocantes evidências, serão muitos mais os cidadãos ocidentais saturados das pregações sobre a defesa dos direitos humanos, o bem-estar das populações e as garantias do primado da democracia e do Estado de direito proferidas pelos seus dirigentes. Ao viverem em realidades paralelas e usarem as pessoas como instrumentos dos interesses que existem para as aviltar, os governos e os regimes da democracia liberal cavam, a prazo, as próprias sepulturas, a exemplo do que aconteceu com numerosas ditaduras que tiveram a honestidade de se assumirem como tal, e das quais herdaram muitos e nefastos métodos e comportamentos.
A solidariedade com o povo palestino e o ativismo popular em sua defesa, que crescem em todo o mundo, e em Portugal também, estão contribuindo para minar o poder da mentira dos sociopatas da democracia liberal – até o dia em que os forcemos a perder o pé.
E quem sabe se isso não irá acontecer antes de ser edificado o mirífico e doentio resort de Gaza? Em boa verdade, tudo depende de nós e está longe de ser uma tarefa impossível. Evocando mais uma vez a História, recordemos que ela está repleta de bons exemplos de justiça e libertação. Mas é preciso fazer por isso.