Sim, ainda há tempo para uma verdadeira alternativa
Uma análise do texto “Ainda há Tempos?” de FHC.
Gabriel Magalhães*
Em artigo publicado no último domingo, 07 de janeiro, no Estado de São Paulo, o ex-Presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso (FHC) pintou um quadro sombrio para o mundo e, em especial, para o Brasil.
Segundo ele, o “mundo parece percorrer um longo ciclo de deszarão”, o qual pode conduzi-lo a mais uma Guerra Mundial. A despeito do bom senso e da razão, que buscariam – sem sucesso – instaurar uma ordem social equilibrada e previsível, tem prevalecido “as fúrias políticas e religiosas dos fanáticos” (Boko Haram, Al-Qaeda, Estado Islâmico), o crime organizado de fuzil nas mãos nas cidades brasileiras e a “corrupção praticada por criminosos de colarinho branco, em escala e despudor sem precedentes” (essa última afirmação é típica do imaginário da direita contra os governos por ela considerados de esquerda: “roubam mais”).
“[Qual] tem sido a resposta dos povos” diante desse ciclo da desrazão? Para o tucano, as respostas têm sido, digamos, pró-cíclicas: os povos estão caminhando para “novas tempestades”, o que ficaria patente nas eleições de Trump nos EUA, no avanço da extrema-direita na Hungria, Polônia e Áustria e, por fim, com o risco real de que forças “extremadas” sejam eleitas nas eleições de outubro no Brasil. Clama-se, por fim, para que as “forças não extremadas”, razoáveis, de bom senso, ajam com responsabilidade a fim de criarem alternativas, afinal, “o pior sempre pode acontecer”.
Feita essa breve exposição das ideias do autor, teçamos algumas considerações.
Em primeiro lugar, cabe a reflexão a respeito de que “razão” FHC se refere e defende. Ora, para o sociólogo a “razão” que produziria o bom senso é sinônimo de império das forças do mercado, a subsunção das sociedades ao capital financeiro, o qual seria o demiurgo da democracia liberal, única forma política possível à humanidade. Fora dela o que há é desrazão, os universos totalitários da extrema direita ou do “socialismo”. Não à toa, o desarrazoado Trump venceu “contrariando o establishment, os partidos [da ordem], boa parte da mídia e de Wall Street”. Fica evidente que o limiar que separa a razão da desrazão é o Deus ex machina, o capital. O que FHC chama de “razão” o filósofo húngaro Georgy Lukács chamaria de “miséria da razão”, sua escravização aos desígnios do capital, que progressivamente se distancia das efetivas necessidades humanas, o que fica expresso na deslegitimação galopante que a democracia liberal-burguesa goza entre os trabalhadores de todo o mundo.
FHC sintomaticamente esquece que foi justamente o capital monopolista que erigiu os regimes políticos mais bárbaros da história. O nazifascismo não foi produto da derrota política e ideológica do capital financeiro, mas sim consequência das suas necessidades e vitória. O mesmo poderíamos falar do colonialismo dos países centrais “liberais”.
No capitalismo dependente latino-americano não é de hoje que FHC endeusa o papel progressista, quiçá civilizatório, do capital monopolista internacional. Sua teorização liberal reconhece a dependência da região frente ao capitalismo dos países centrais, entretanto, esta dependência não necessariamente produziria fenômenos inerentes a tal condição, como superexploração, subemprego, marginalização e exclusão social. Ao contrário, a dependência poderia ser benéfica ao Brasil caso os inimigos do desenvolvimento, o populismo e o corporativismo, fossem banidos, senão da sociedade civil, ao menos do Estado. A compatibilidade da democracia liberal no capitalismo dependente permitiria um futuro promissor, desde que tais democracias não fossem novamente acometidas com o populismo, desde que a regência da “razão” do capital monopolista se efetivasse sem desvios de rota.
O Brasil corre o risco de recrudescer a “desrazão” caso venha eleger em outubro o “capitão irado de cujas propostas pouco se sabe” (Bolsonaro) ou o “líder populista” acusado ou mesmo condenado de corrupção. O receio do segundo é muito maior do que do primeiro, posto que o “lulopetismo” “produziu” o “descalabro econômico-financeiro” ao patrocinar o “capitalismo de laços”.
Trata-se da reafirmação da já surrada tese liberal produzida na USP segundo a qual o que desvia o Brasil da rota do desenvolvimento é o patrimonialismo, levado a cabo não somente pelas velhas oligarquias agrárias, mas também pós-1930 pelas corporações de interesse como os trabalhadores e seus organismos de representação. A abertura ao capital monopolista nos anos 90 veio, segundo sua tese, para dissolver esses “laços” espúrios entre o público e o privado, instaurando um capitalismo “puro”, depurado de intervenções políticas nacionalistas e populistas. A aversão dos tucanos pelos direitos sociais e pelas políticas nacional-desenvolvimentistas significaria a marcha da “razão” contra a “desrazão”, a afirmação da democracia liberal contra o populismo cujo desdobramento necessário é o Estado autoritário.
Segunda a lógica do tucano, essas chagas brasileiras, ou dos países dependentes, começaram a ser extirpadas em seu governo, contudo, regressaram com força durante os governos “lulopetistas”. FHC em seu texto aponta o sujeito social que as trouxeram de volta em 2002 e ocorre o risco de trazê-las novamente: os beneficiários do Bolsa Família. Ironicamente, FHC ao expressar o elitismo preconceituoso para com os trabalhadores pobres, essa massa ignara que custa ao país o regresso ao populismo, ao capitalismo de laços e à desrazão, acaba por reconhecer – queira ou não – que a “razão” do Deus ex machina do capital monopolista não superou a dependência e seus efeitos. O efeito colateral ineliminável da dependência – miséria, exclusão – é alçado à causa dos nossos males, os quais supostamente seriam solapados com a democracia liberal.
Como fez com sua análise da ditadura empresarial-militar, mais uma vez FHC isenta de culpa o capital monopolista pelos “descalabros” no país. A culpa são dos pobres ávidos por populismo.
Às vésperas do julgamento de Lula (PT), que pode resultar no seu banimento político, o texto de FHC busca arregimentar a direita – e também os “setores ponderados da esquerda”, sabe lá o que seja isso – a fim de firmarem uma unidade contra o “pior”. Pelo espírito do texto e do autor, não é exagerado afirmar que para ele o plano A seja o banimento do ex-Presidente, que a “razão” se expresse pelo Judiciário como tem ocorrido até aqui ao chancelar o golpe de 2015 e o desmonte dos direitos sociais e do patrimônio público. Mas na hipótese da “razão” não se consubstanciar de toga, FHC se adianta e alerta à direita – dividida por disputas internas – que a sua unidade é a condição para vencer a “desrazão”.
A astúcia do sociólogo em se colocar como ideólogo dos interesses estratégicos do grande capital é inequívoca, isso ficou claro no período de “transição transada” à democracia liberal. Por intermédio dele pode-se afirmar que, hoje, a candidatura de Lula e o PT são considerados “desrazões” para o capital, um verdadeiro desvio de rota populista que ele não está interessado a tolerar. Ainda que Lula e o PT tentem reatar os laços com o capital, este não os veem à altura da tarefa histórica demandada pela classe dominante em cenário de forte crise.
Sim, ainda há tempo para uma verdadeira alternativa à miserável razão do capital em tempos de crise sistêmica. A “desrazão” para FHC é, na verdade, a libertação da “Razão” da escravidão à qual foi submetida pelo grande capital; essa Razão liberta deve ser capaz de operar a crítica radical ao capitalismo dependente e à democracia liberal na dependência, passando inevitavelmente pela crítica da direita e da esquerda da ordem, posto que mesmo essa segunda não ofereceu uma efetiva alternativa para a classe trabalhadora, senão o desenvolvimento da dependência com anestésicos temporários à miséria absoluta. A saída vem, portanto, da Razão, a qual só pode ser liberta pelo radicalismo das classes subalternas, produzindo-se o resgate das transformações estruturais da nossa sociedade e a edificação de formas de poder estranhas ao paradigma liberal.
*Sociólogo, professor e militante do PCB de Alalgoas
REFERÊNCIAS
CARDOSO, Fernando Henrique. Ainda há Tempo? Acesso: http://opiniao.
DOS SANTOS, Theotonio. Teoria da Dependência: balanços e perspectivas. Editora Insular, 2015.