EUA: Relatório Especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos
Philip Alston
ODiario.info
Publicamos as primeiras páginas de um relatório da responsabilidade da ONU sobre aspectos da situação social e democrática nos EUA. Como se verá, podem encontrar-se neste relatório comparações discutíveis. Mas isso não desvaloriza a importância do retrato da realidade que descreve. Ainda que não o pretenda, não é só a realidade dos EUA que mostra. É a realidade da sociedade capitalista mais desenvolvida, incapaz de dar resposta à dramática situação dos mais pobres que a integram. Este extenso relatório pode ter acesso na íntegra através do link colocado no final desta introdução.
I. Introdução
1. Visitei os EUA no decurso das últimas semanas, a convite do governo federal, para observar se a persistência da pobreza extrema na América do Norte bloqueia a fruição de direitos humanos pelos seus cidadãos. Nos meus deslocamentos através da Califórnia, Alabama, Geórgia, Porto Rico, West Virgínia e Washington DC falei com dezenas de peritos e grupos da sociedade civil, encontrei-me com representantes de alto nível de governos estaduais e federais e falei com muitas pessoas que são sem-abrigo ou vivem em pobreza extrema. Agradeço à Administração Trump por facilitar a minha visita e pela sua cooperação permanente com os mecanismos de avaliação do Conselho de Direitos Humanos da ONU que são aplicáveis a todos os estados.
2. A minha visita coincide com uma dramática alteração na orientação das políticas dos EUA relativas à desigualdade e à pobreza extrema. O pacote de reforma fiscal proposto exprime a aposta dos EUA em tornarem-se a sociedade mais desigual no mundo, e irá aumentar grandemente os já elevados níveis de desigualdade de riqueza e de rendimentos entre os 1% mais ricos e os 50% mais pobres norte-americanos. Os dramáticos cortes nos apoios sociais, indiciados pelo Presidente e pelo porta-voz Ryan e já começados a implementar pela administração, irão no essencial romper dimensões cruciais de uma rede de segurança que está fortemente esburacada. É com este pano de fundo que o meu relatório é apresentado.
3. Os EUA são um dos mais ricos, mais poderosos e tecnologicamente inovadores países, mas nem a sua riqueza nem o seu poder nem a sua tecnologia são mobilizados para enfrentar a situação em que 40 milhões de pessoas continuam a viver na pobreza.
4. Vi e ouvi muita coisa no decurso das passadas duas semanas. Encontrei muitas pessoas no limite da sobrevivência em Skid Row em Los Angeles, testemunhei um agente da polícia de São Francisco dizendo a um grupo de sem-abrigo para se pôr a andar, mas sem ter resposta quando interrogado para onde poderiam ir, ouvi como milhares de pessoas pobres são objeto de multas por pequenos delitos que parecem ser concebidas para rapidamente explodir numa dívida impossível de pagar, no encarceramento, e no enchimento dos cofres municipais, vi pátios inundados por esgotos em estados cujos governos não consideram que os serviços sanitários sejam da sua responsabilidade, vi pessoas que tinham perdido todos os dentes porque o cuidado dentário não tem cobertura na grande maioria dos programas disponíveis para os muito pobres, ouvi sobre os crescentes índices de morte e de destruição de famílias e comunidades em resultado de drogas receitadas ou de outras dependências de drogas, e encontrei pessoas no Sul de Porto Rico vivendo na vizinhança de uma montanha de cinzas de carvão completamente desprotegida, que as chuvas arrastam sobre elas trazendo consigo doenças, deficiências e morte.
5. Evidentemente que isto não corresponde ao total da realidade. Encontrei-me com funcionários estaduais e, em particular, municipais que estão determinados em melhorar a proteção social dos 20% mais pobres das suas comunidades, vi em muitos lugares uma enérgica sociedade civil, visitei uma Igreja Católica em São Francisco (Bonifácio – o Projeto Gubbio) que todos os dias abre as suas bancadas aos sem-abrigo no intervalo das missas, vi uma extraordinária solidariedade e resiliência comunitária em Porto Rico, fiz o circuito de uma admirável iniciativa comunitária de saúde em Charleston (West Virgínia) que serve 21.000 pacientes com assistência médica, dental, farmacêutica e outras gratuitamente, supervisada voluntariamente por médicos locais, dentistas e outros (WV Health Right), e comunidades indígenas presentes numa conferência da Rede EUA dos Direitos Humanos em Atlanta elogiaram o avançado sistema de cuidados de saúde para os povos indígenas no Alasca, concebido com a participação direta do público-alvo.
6. O excepcionalismo norte-americano constituiu um tema constante das conversas que tive. Mas, em lugar de assumir os admiráveis compromissos dos seus fundadores, os EUA de hoje mostram-se excepcionais em aspectos muito mais problemáticos que estão em chocante contradição com a sua imensa riqueza e com o compromisso dos seus fundadores relativamente aos direitos humanos. Em resultado disso abundam os contrastes entre a riqueza privada e a pobreza pública.
7. Falando com pessoas em diferentes estados e territórios fui frequentemente interrogado acerca da comparação entre os EUA e outros países. Embora tais comparações não sejam sempre perfeitas, uma visão de elementos estatísticos comparáveis proporciona uma imagem relativamente clara do contraste entre a riqueza, capacidade de inovação, e ética do trabalho nos EUA, e os resultados, sociais e outros, que foram atingidos. Segundo a maioria dos indicadores, os EUA são um dos países mais ricos do mundo. Tem um gasto em defesa superior aos gastos combinados da China, Arábia Saudita, Rússia, Reino Unido, Índia, França e Japão.
O gasto per capita em saúde nos EUA é o dobro da média OCDE e é muito superior ao de todos os outros países. Mas tem muito menos médicos e camas de hospital por habitante do que a média OCDE. A taxa de mortalidade infantil dos EUA em 2013 era a mais elevada do mundo desenvolvido. A expectativa de vida dos norte-americanos é mais curta e mais afetada por doenças em comparação com pessoas vivendo em qualquer outra democracia rica, e a “hiato sanitário” entre os EUA e os países seus pares continua a crescer.
Os níveis de desigualdade nos EUA são largamente superiores aos da maioria dos países europeus. Doenças tropicais negligenciadas, incluindo Zika, são crescentemente presentes nos EUA. Foi estimado que 12 milhões de norte-americanos vivem com uma infecção parasitária negligenciada. Um relatório de 2017 documenta a prevalência de ancilostomíases no condado de Lowndes, Alabama.
Os EUA têm a mais elevada incidência de obesidade no mundo desenvolvido. Os EUA situam-se na 36ª posição mundial no que diz respeito à água e saneamento básico. Os EUA têm a mais elevada taxa de encarceramento no mundo, à frente do Turquemenistão, El Salvador, Cuba, Tailândia e federação Russa. Essa taxa é cerca de cinco vezes superior à média OCDE.
A taxa de pobreza de jovens nos EUA é a mais elevada de toda a OCDE, com um quarto dos jovens vivendo na pobreza comparados com menos de 14% em toda a OCDE. O Centro Stanford sobre Desigualdade e Pobreza classifica os países mais prósperos em termos de mercado do trabalho, pobreza, rede de segurança social, desigualdade de riqueza, e mobilidade económica. Os EUA situam-se no último lugar dos 10 países mais prósperos, e em 18º lugar entre os 20 mais prósperos.
Os EUA situam-se em 35º lugar entre 37 em termos de pobreza e desigualdade.
Segundo a Base de Dados Mundial sobre Desigualdade, os EUA têm a mais elevada classificação Gini (que mede a desigualdade) em todos os países ocidentais. O Centro Stanford sobre Desigualdade e Pobreza caracteriza os EUA como “clara e constantemente à margem na liga da pobreza infantil”. A taxa de pobreza infantil nos EUA é a mais elevada entre os seis países mais ricos – Canadá, Reino Unido, Irlanda, Suécia e Noruega.
Cerca de 55,7% da população em idade de votar participou na eleição presidencial de 2016. Os EUA surgem em 28º lugar na participação eleitoral na OCDE, cuja média é de cerca de 75%. Os votantes inscritos representam uma muito menor parcela dos eleitores potenciais do que em qualquer outro país da OCDE. Nos EUA, apenas 64% da população em idade de votar (e 70% de cidadãos em idade de votar) estava registada em 2016, comparada com 91% no Canadá (2015) e no Reino Unido (2016), 96% na Suécia (2014), e cerca de 99% no Japão (2014) […]
Washington, 15 de Dezembro de 2017
Fonte: https://www.ohchr.org/EN/
https://www.odiario.info/relatorio-da-visita-aos-eua-pelo/