A mobilização dos “coletes amarelos” na França
por Rémy Herrera
É uma mobilização de massa profundamente nova a que surgiu nestas últimas semanas em França: a dos “coletes amarelos”. O vestuário de alta visibilidade (todo motorista deve ter um a bordo do veículo, por segurança) é usado como sinal unificador. Centenas de milhares de franceses manifestam assim a sua desaprovação em relação à atuação do presidente Emmanuel Macron.
Trata-se de uma mobilização nova pela sua origem, sua amplitude e suas formas de rebelião popular. Tudo começou em pequena escala no fim de outubro através de uma simples petição cívica, sem etiqueta partidária nem sindical, sem líderes nem organizações, difundida nas redes sociais. Ela reclamava a anulação do aumento do imposto sobre o combustível decidido recentemente pelo governo. Alguns dias mais tarde, cerca de um milhão de pessoas o haviam assinado e palavras de ordem começavam a apelar ao “bloqueio do país”. O movimento de protesto, que se referia inicialmente ao preço da gasolina e o peso dos impostos, estendeu-se muito rapidamente “à vida cara”, ao “fraco poder de compra”, às “grandes lojas a boicotar”, para se concentrar finalmente numa palavra de ordem clara: “Macron démission!”. O ponto comum destas contestações, fundindo todos os protestos, era exprimir um mal estar generalizado, uma insatisfação de fundo da população, uma recusa das desigualdades sociais causadas pela aplicação do projeto neoliberal.
O paroxismo foi atingido no sábado 17 de novembro: cerca de 280 mil “coletes amarelos” (segundo os números da polícia), espalhados em mais de 2000 comícios no conjunto do território francês, bloqueavam o acesso a eixos rodoviários nevrálgicos, estações rodoviárias ou supermercados. Inexperientes na maior parte, saídos espontaneamente à rua, eles muitas vezes estavam participando da sua primeira ação – menos de 10% das manifestações foram declaradas às prefeituras. Em muitas aldeias das zonas rurais foi mesmo a primeiríssima vez que houve uma manifestação. O balanço da jornada salda-se por uma morte (uma infeliz mulher de colete amarelo atropelada por uma condutora que perdeu o controle do seu veículo), cerca de 500 feridos, dos quais uma dezena gravemente (e 93 policiais), mais de 280 interpelações por “atos de violência” (na maioria motoristas que forçaram as barreiras nas ruas)…
Em Paris, numa bagunça indescritível – e incontrolável pelas forças da ordem – uma multidão de várias dezenas de milhares de “coletes amarelos”, extremamente heterogênea e absolutamente inclassificável, reunindo adultos jovens (por vezes com os seus filhos), aposentados (inclusive avós exasperadas pela baixa das suas pensões), empregados de escritório, operários, artesãos, motociclistas, empregados de serviços de entrega, motoristas de táxi, funcionários, assistentes de cuidados de saúde, alunos do liceu, jovens empresários, mulheres de véu, jovens da periferia, rastafáris com seus penteados, pessoas de todas as cores e religiões, de todas as camadas populares, desfilavam numa desordem incrível nos Campos Elíseos cantando A Marselhesa, “Paris, de pé, levanta-te” e, naturalmente… “Macron démission!”.
Múltiplos pequenos grupos de “coletes amarelos”, improvisados, chegando de toda a parte, muitos motorizados, conseguiam forçar uma passagem e contornar – sem violência – as linhas de polícias e gendarmes, ultrapassados por toda a parte. Barricadas eram improvisadas em diversos lugares da capital, feitas de barreiras de segurança, paletes de madeira, bicicletas, de tudo aquilo que havia nos passeios. Latas de lixo eram incendiadas. As boutiques de luxo dos quarteirões elegantes preferiam fechar as suas portas – se bem que nenhuma vitrine houvesse sido partida e nenhum roubo assinalado. Aqui, lia-se numa etiqueta: “Aux armes!” (palavras do hino nacional); ali via-se a bandeirola: “Nem Macron nem fachos, Black Blocage Total” (Total é a multinacional petrolífera francesa que, parece, não teria pago aquilo que deve ao fisco). Acolá, uma guilhotina desenhada, sem comentário. Alhures, ouvia-se “Isto é como em Maio de 1968”, “Cólera”, “É a guerra”, ou ainda “Macron à fogueira!”. Apesar dos cordões da CRS, vários milhares de manifestantes pacíficos, mas resolvidos a fazerem-se ouvir, conseguiam enfiar-se na rua que leva ao Palácio do Eliseu, tendo de ser repelidos por escudos, bastões e gases lacrimogêneos das forças da ordem, acabando por se dispersar na calma. Todo o mundo estava estupefato – “coletes amarelos” e policiais inclusive. Nunca se viu algo assim …
No dia seguinte, os protestos prosseguiam em toda a França e dois dias depois, segunda-feira 19 de novembro, os acessos a duas dezenas de refinarias de petróleo encontravam-se bloqueados. No dia 20, em Paris, as vias do caminho de ferro da estação do Norte eram invadidas e os trajetos para o aeroporto Roissy Charles-de-Gaulle dificultados. Em quase todas as regiões da França, muitas ações dos bloqueios continuavam igualmente a ser efetuadas: em Toulouse, em torno de Lyon, em Bordéus, na Île-de-France, no Vaucluse, na Normadia, na Bretanha, no Norte, na Córsega e até em Departamentos do Ultramar… Na ilha da Reunião (a mais de 9300 km de Paris), onde as desigualdades sociais são gritantes, as manifestações transformaram-se em grande conflito. O exército foi chamado como reforço e o cessar-fogo instaurado nas comunas mais agitadas. Nas redes sociais, os “coletes amarelos” já preveniram: próximo encontro no sábado, 24 de novembro…
Ator sem par, sorriso de escárnio e cheio de desprezo, o presidente Macron finge ignorar o levantamento de massa, tão inédito quanto heterodoxo, mas motivado e determinado a prosseguir a luta. Quanto tempo poderá assim fazer quando as sondagens revelam que entre 75 e 85% dos franceses dizem apoiar os “coletes amarelos”? Por enquanto, o presidente contentou-se em prevenir que se mostrará “intratável” face ao “caos”… da ilha Reunião. Habitualmente tão seguro de si, o primeiro-ministro Édouard Philippe apareceu na defensiva afirmando que “o governo não mudará de rumo” e “não tolerará a anarquia”. O ministro do Interior, Chritophe Castaner, procurou aparentar firmeza. Convocado em socorro, o ministro da Ecologia e da Energia, François de Rugy, declara, sem rir, que o impostos sobre os combustíveis deveriam servir para financiar a “transição ecológica” – em quantos cêntimos de euro, se a França não tem política ambiental? A inquietação do poder é palpável.
Que a direita e a extrema-direita tentam “sequestrar” a mobilização dos “coletes amarelos”, desprovida de líderes visíveis, é evidente. Que os grandes meios de comunicação insistam insidiosamente, para desacreditar o movimento e jogar óleo no fogo, sobre (raríssimas) propostas xenófobas ou homofóbicas efetuadas nestas ações por alguns manifestantes (aliás imediatamente travadas pelos seus próprios amigos no local), é igualmente evidente. Na hora do capitalismo selvagem e de uma ideologia dominante que atiça os ódios e lança uns contra os outros para tentar salvar as elites, o povo que sofre é feito igualmente destas contradições, infelizmente. Mas é justamente o papel dos militantes progressistas e dos esclarecidos estar ao seu lado nas lutas para mostrar àquelas e àqueles que estão se afastando do caminho da solidariedade e da fraternidade. Será preciso que o rosto dos explorados seja sempre sorridente? Desejar-se-ia ainda por cima que os pobres que lutam pela sua sobrevivência e sua dignidade fossem fotogênicos?
Muito mais preocupante é o fato de que as direções dos partidos e dos sindicatos de esquerda se mantenham – ainda por enquanto, e muito generalizadamente – à distância desta rebelião popular. Será que não compreendem que se abre, com a revolta dos “coletes amarelos”, a segunda etapa das lutas do povo francês contra a tirania neoliberal e pela justiça social? Será que não apreendem que se trata da continuação, de um modo inovador, combativo, vivo e numa escala extraordinariamente ampliada, do mesmo processo de generalização das mobilizações que lançou nas greves e manifestações milhares de camaradas sindicalizados na última Primavera? Será que não veem que os “coletes amarelos”, a seu modo (não sem coragem, nem risco e perigo) estão decididos a ocupar o enorme vazio deixado pelo abandono da esquerda institucionalizada, desde há décadas, da defesa dos interesses de classe de todos os trabalhadores e do internacionalismo em relação aos povos do mundo? Será que não sabem que é a luta das classes que faz a história?
Felizmente, as coisas podem mudar. E aquilo que parece esquecido nas altas esferas, as baixas se encarregarão de o recordar. Terça-feira 20 de novembro, um primeiro sindicato de transportadores anunciava seu apoio aos “coletes amarelos”. No dia 21 à noite, as ações dos eletricitários e gasistas recomeçavam (se é que elas realmente cessaram desde junho), intensificando-se: várias refinarias e reservatórios petrolíferos (em Gonfreville-L’Orcher e Oudalle na proximidade do Havre, Feyzin nos arrabaldes de Lyon, La Mède, perto de Marselha, mas também em outros locais, nomeadamente os que alimentam os aeroportos de Blagnac [Toulouse] e Saint Exupéry [Lyon]…) declaravam-se em greve. Ao mesmo tempo, sabia-se que o “capitão da indústria” Carlos Ghosn, presidente-diretor-geral do grupo automobilista francês Renault e presidente do Conselho de Administração da Nissan, era preso e ouvido pela justiça japonesa por suspeita de fraude fiscal e desvio de fundos da empresa para fins pessoais. A revolta de um povo contra este mundo será tão difícil de entender?
22/Novembro/2018
https://www.resistir.info/franca/remy_22nov18.html