Neoliberalismo, o caminho tenebroso para o fascismo

imagempor Chris Hedges*

 

O neoliberalismo como teoria econômica sempre foi um absurdo. Tinha tanta validade quanto as ideologias dominantes do passado, como o direito divino dos reis e a crença fascista no Übermensch. Nenhuma das suas alardeadas promessas era remotamente possível.

Ao concentrar a riqueza nas mãos de uma elite oligárquica global – oito famílias detêm hoje tanta riqueza quanto 50% da população mundial – enquanto procedia a demolição de controles e regulamentações governamentais, gerou sempre maciças desigualdades de renda, poder dos monopólios, alimentou o extremismo político e destruiu a democracia. Não é necessário folhear as 577 páginas de Capital in the Twenty-First Century de Thomas Piketty para descobrir isso. Mas a racionalidade econômica nunca foi o ponto. O ponto era a restauração do poder de classe.

Como ideologia dominante, o neoliberalismo foi um êxito brilhante. A partir dos anos 70 do século XX, os seus principais críticos keynesianos foram expulsos das universidades, instituições estatais e organizações financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial e excluídos dos media. Os cortesãos e intelectuais impostores, como Milton Friedman, foram preparados em locais como a Universidade de Chicago, foram-lhes dados lugares proeminentes e pródigos fundos de grandes empresas. Disseminaram os dogmas oficiais de teorias econômicas desacreditadas, popularizadas antes por Friedrich Hayek e pela escritora de terceira categoria Ayn Rand.

Uma vez ajoelhado diante dos ditames do mercado, anulando regulamentações governamentais, reduzindo os impostos para os ricos, permitindo o fluxo de dinheiro através das fronteiras, destruindo sindicatos e assinando acordos comerciais que desviavam empregos para fábricas sem condições na China, o mundo seria mais feliz e livre, um lugar mais rico. Foi um golpe. Mas funcionou.

“É importante reconhecer as origens de classe deste projeto, que ocorreu na década de 1970, quando a classe capitalista estava em grandes dificuldades, os trabalhadores estavam bem organizados e começavam a avançar”, disse David Harvey, autor de A Brief History of Neoliberalism, quando falamos em Nova York. “Como qualquer classe dominante, eles precisavam de ideias dominantes. Assim, a liberdade do mercado, as privatizações, o empreendedorismo do eu, a liberdade individual e tudo o mais deveriam ser as ideias dominantes de uma nova ordem social, e foi essa a ordem implementada nos anos 80 e anos 90”.

“Como projeto político, foi muito habilidoso, disse ele. “Conseguiu muito consentimento popular porque falava sobre liberdade individual e liberdade de escolha. Quando eles falavam sobre liberdade, era a liberdade do mercado. O projeto neoliberal disse à geração de 68: “Tudo bem, você quer liberdade? É Isso que o movimento estudantil pretende? Nós vamos dar isso a vocês, mas vai ser a liberdade do mercado. A outra coisa que você procura é justiça social – esqueça. Então, vamos dar-lhes liberdade individual, mas esqueçam a justiça social. Não se organizem”. O objetivo era desmantelar as instituições, as instituições coletivas da classe trabalhadora, particularmente os sindicatos e pouco a pouco os partidos políticos que representassem algum tipo de preocupação com o bem-estar das massas”.

“A grande coisa sobre a liberdade do mercado é que parece ser igualitária, mas não há nada mais desigual do que o tratamento igual dos desiguais”, continuou Harvey. “Promete igualdade de tratamento, mas se você for extremamente rico, isso significa que pode ficar ainda mais rico. Se você for muito pobre, é mais provável que fique ainda mais pobre. O que Marx mostrou brilhantemente no primeiro volume de O Capital é que a liberdade de mercado produz níveis cada vez maiores de desigualdade social “.

A disseminação da ideologia do neoliberalismo foi altamente organizada por uma classe capitalista unificada. As elites capitalistas financiaram organizações como a Business Roundtable, a Câmara de Comércio e grupos de reflexão como a The Heritage Foundation para vender a ideologia ao público. Inundaram universidades com doações, desde que as universidades retribuíssem com fidelidade à ideologia dominante. Usaram a sua influência e riqueza, bem como serem donos dos media, para transformar a imprensa no seu porta-voz. Silenciaram ou dificultaram o emprego a quaisquer heréticos. O aumento dos valores das ações, em vez da produção, tornou-se a nova medida da economia. Tudo e todos foram financeirizados e tornados mercadorias.

“O valor é fixado por qualquer que seja o preço verificado no mercado”, disse Harvey. “Assim, Hillary Clinton é muito valiosa porque fez uma palestra na Goldman Sachs por 250 mil dólares. Se eu der uma palestra para um pequeno grupo no centro da cidade e receber 50 dólares, então obviamente ela vale muito mais do que eu. A valorização de uma pessoa e do seu conteúdo é avaliada por quanto consegue obter no mercado”.

“Esta é a filosofia por trás do neoliberalismo”, continuou. “Temos de atribuir um preço às coisas. Mesmo que não sejam realmente coisas que devam ser tratadas como mercadorias. Por exemplo, a assistência médica torna-se uma mercadoria. Habitação para todos torna-se uma mercadoria. A educação torna-se uma mercadoria. Assim, os estudantes têm de pedir emprestado para obter a educação que lhes dará um emprego no futuro. Esse é o golpe da coisa. Basicamente, diz-se que se você é um empreendedor, se se qualificar, etc, receberá a justa recompensa. Se não recebe uma justa recompensa é porque não se qualificou suficientemente. Adquiriu o tipo errado de cursos. Fez cursos de filosofia ou de clássicos em vez de aprender técnicas de gestão de como explorar mão-de-obra.

O contra do neoliberalismo é agora amplamente compreendido em todo o espectro político. É cada vez mais difícil esconder a sua natureza predatória, incluindo suas exigências de enormes subsídios públicos (a Amazon, por exemplo, recentemente solicitou e recebeu incentivos fiscais multimilionários de Nova York e Virgínia para estabelecer centros de distribuição nesses estados). Isso forçou as elites dominantes a fazerem alianças com demagogos de direita que usam as táticas cruas do racismo, islamofobia, homofobia, fanatismo e misoginia para canalizar a raiva e a crescente frustração do público para longe das elites e canaliza-la para os mais vulneráveis.

Esses demagogos aceleram a pilhagem pelas elites globais e, ao mesmo tempo, prometem proteger os trabalhadores e as mulheres. A administração de Donald Trump, por exemplo, aboliu numerosas regulamentações, das emissões de gases do efeito estufa à neutralidade da Internet e reduziu os impostos para os indivíduos e empresas mais ricos, eliminando cerca de 1,5 milhão de milhões de dólares de receita do governo nos próximos dez anos, adotando linguagem e formas autoritárias de controle.

O neoliberalismo gera pouca riqueza. Em vez disso, redistribui-a para as mãos das elites dominantes. Harvey chama isso de “acumulação por desapossamento”. “O principal argumento da acumulação por desapossamento baseia-se na ideia de que quando as pessoas ficam sem capacidade de produzir ou fornecer serviços, elas criam um sistema que extrai riqueza de outras pessoas”, disse Harvey. “Essa extração então torna-se o centro de suas atividades. Uma das maneiras pelas quais essa extração pode ocorrer é criando mercados onde antes não existiam. Por exemplo, quando eu era mais jovem, o ensino superior na Europa era essencialmente um bem público. Cada vez mais [este e outros serviços] se tornaram uma atividade privada como os serviços de saúde. Muitas dessas áreas que você consideraria não serem mercadorias no sentido comum, tornam-se assim mercadorias. Habitação para a população de baixos rendimentos era frequentemente vista como uma obrigação social. Agora tudo tem de passar pelo mercado. Impõe-se uma lógica de mercado em áreas que não deveriam estar abertas ao mercado”.

“Quando eu era criança, a água na Grã-Bretanha era fornecida como um bem público”, disse Harvey. “Então, é claro, foi privatizada. Você começa a pagar taxas de água. Eles privatizaram o transporte [na Grã-Bretanha]. O sistema de transportes coletivos é caótico. Há empresas privadas a circular por toda parte. Não é o sistema que as pessoas realmente precisam. A mesma coisa acontece na ferrovia. Uma das coisas agora interessantes na Grã-Bretanha é que o Partido Trabalhista diz: ‘Vamos trazer tudo isso de volta à propriedade pública porque a privatização é totalmente insana e tem consequências insanas, não está funcionando devidamente. A maioria da população concorda com isto”.

Sob o neoliberalismo, o processo de “acumulação por desapossamento” é acompanhado pela financeirização. “A desregulamentação permitiu que o sistema financeiro se tornasse um dos principais centros de atividade redistributiva através da especulação, predação, fraude e roubo”, escreve Harvey no seu livro, talvez o melhor e mais conciso relato da história do neoliberalismo. “Promoções de ações, esquemas Ponzi, destruição de ativos estruturados pela inflação, espoliação de ativos por meio de fusões e aquisições, promoção de níveis de endividamento que reduzem populações inteiras – mesmo nos países capitalistas avançados – à escravidão pelas dívidas. Para não falar em fraudes empresariais, desapropriação de ativos, invasão de fundos de pensão dizimados em colapsos de ações e por manipulação do crédito e do valor de ações, tudo isso se tornou uma característica central do sistema financeiro capitalista”.

O neoliberalismo, exercendo um tremendo poder financeiro, é capaz de fabricar crises econômicas para deprimir o valor dos ativos e depois apossar-se deles. “Uma das maneiras pelas quais se pode engendrar uma crise é cortar o fluxo de crédito”. “Isso foi feito no leste e sudeste da Ásia em 1997 e 1998. De repente, a liquidez secou. As principais instituições deixam de emprestar dinheiro. Havia um grande fluxo de capital estrangeiro para a Indonésia. Eles fecharam a torneira. O capital estrangeiro fugiu. Fecharam a torneira do crédito em parte porque, uma vez que as empresas fossem à falência, poderiam vir a ser compradas e colocadas novamente a funcionar. Vimos a mesma coisa durante a crise da habitação aqui [nos EUA]. As execuções hipotecárias das habitações deixaram muitas vazias que poderiam ser apanhadas a preços muito baixos. A Blackstone [1] apareceu, comprou todas as casas e é agora o maior senhorio dos Estados Unidos. Tem 200 mil propriedades ou algo parecido. Está à espera que o mercado dê uma volta. Quando o mercado muda, o que pode acontecer em breve, então poderá vender ou arrendar e ganhar imensos lucros com isso. Desta forma, a Blackstone ganhou uma fortuna a crise dos arrestos hipotecários, onde todos perderam. Foi uma enorme transferência de riqueza”.

Harvey adverte que a liberdade individual e a justiça social não são necessariamente compatíveis. A justiça social, escreve ele, requer solidariedade social e “disposição de subordinar necessidades e desejos individuais à causa de uma luta mais geral por, digamos, igualdade social e justiça ambiental”. A retórica neoliberal, com ênfase em liberdades individuais pode efetivamente “separar as ideias de liberdade, identidade política, o multiculturalismo e, eventualmente, o consumismo narcisista, das forças sociais alinhadas na procura de justiça social através da conquista do poder de Estado”.

O economista Karl Polanyi entendeu que existem dois tipos de liberdade. Há as más liberdades para explorar os que nos rodeiam e extrair enormes lucros sem levar em conta o bem comum, incluindo o mal que é feito ao ecossistema e às instituições democráticas. Essas más liberdades têm origem no fato de as grandes empresas monopolizarem as tecnologias e os avanços científicos a fim de obter enormes lucros, mesmo quando, como no caso da indústria farmacêutica, um monopólio significa que as vidas daqueles que não podem pagar preços exorbitantes são colocadas em risco. As boas liberdades – liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher o seu trabalho – acabam por ser extintas pela primazia dada às más liberdades.

“Planeamento e controlo são atacados como negação da liberdade”, escreveu Polanyi. “A livre iniciativa e a propriedade privada são declaradas essenciais para a liberdade. Uma sociedade construída sobre outros fundamentos é dito que não merece ser chamada de livre. A liberdade que a regulamentação cria é denunciada como falta de liberdade; a justiça, a liberdade e o bem-estar que ela oferece são denunciados como uma camuflagem da escravidão”.

“A ideia de liberdade” se degenera, assim, numa mera defesa da livre iniciativa, que significa “a plenitude da liberdade para aqueles cujo rendimento, lazer e segurança não precisam ser promovidos, e uma mera margem de liberdade para as pessoas que podem em vão tentar fazer uso de seus direitos democráticos para se defenderem do poder dos donos do capital”, escreve Harvey, citando Polanyi. “Mas se, como é sempre o caso, “nenhuma sociedade é possível em que o poder e a compulsão estejam ausentes, nem num mundo em que a força não seja necessária”, então a única maneira pela qual esta visão utópica liberal poderia ser sustentada é pela força, violência e autoritarismo. A utopia liberal ou neoliberal está condenada, na opinião de Polanyi, a ser frustrada pelo autoritarismo, ou mesmo pelo fascismo total. As boas liberdades estão perdidas, as más são assumidas.

O neoliberalismo transforma a liberdade de muitos em liberdade para alguns. O resultado lógico é o neofascismo. O neofascismo abole as liberdades civis em nome da segurança nacional e classifica grupos inteiros como traidores e inimigos do povo. É o instrumento militarizado usado pelas elites dominantes para manter o controle, dividir e separar a sociedade e acelerar ainda mais a pilhagem e a desigualdade social. A ideologia dominante, não sendo mais crível, é substituída pela bota militar.

[1] Blackstone: é o fundo abutre que em Portugal adquiriu o Novo Banco (ex-Banco Espírito Santo) por preço praticamente nulo.

*Jornalista. Durante quase duas décadas foi correspondente estrangeiro na América Central, Médio Oriente, África e Balcãs. Fez reportagens em mais de 50 países e trabalhou para The Christian Science Monitor, National Public Radio, Dallas Morning News The New York Times, no qual foi correspondente estrangeiro durante 15 anos.

O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/50680.htm

https://www.resistir.info/eua/neoliberalismo_fascismo.html