Argentina: por trás da repressão e assassinatos há hectares de negócio e sangue

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Dois trabalhadores e integrantes da Confederação da Economia Popular (CTEP) foram assassinados em menos de 48 horas. As balas que mataram Rodolfo Orellana e Jesús Soria, foram disparadas pelas costas em meio a intervenções policiais. Isto, no entanto, não paralisou nem comoveu o país.

Ilustração: Reme Almanza.

Em menos de 48 horas dois militantes da Confederação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP) foram assassinados. O primeiro ocorreu durante a tentativa de tomada de terra em Ciudad Evita, distrito de La Matanza; o segundo foi um outro caso de repressão e morte seletiva, num bairro popular ao sul da cidade de Córdoba. A CTEP é hoje uma das maiores organizações do país, com cerca de 200 mil associados, que, em meio à política de ajuste perpetrada pelo governo de Maurício Macri, cria trabalho onde não há: trabalhadores informais coexistem como motoristas, catadores, trabalhadores têxteis, produtores rurais e trabalhadores de manutenção.

A morte atingiu duas vezes o mesmo setor e em menos de dois dias; por isso alguns, como Juan Grabois – um dos representantes dos CTEP – se recusam a acreditar em coincidências. Os casos, no entanto, não alcançaram transcendência midiática, nem comoveram o povo argentino.

Balas nas costas

A bala de chumbo que entrou pelas costas e saiu pelo nariz de Rodolfo Orellana, tirou sua vida instantaneamente. Um vídeo filmado por seus companheiros mostra o desespero que experimentaram naquela quinta-feira, 23 de junho, quando, na tentativa de tomar as terras em Puente 12, em Ciudad Evita, a polícia reprimiu e tirou a vida de outro trabalhador.

Ainda na penumbra do amanhecer, o corpo de Orellana não mais respondeu e se deixou cair com o rosto ensanguentado. As testemunhas concordam em apontar para uma policial loura como principal suspeito de ter disparado contra o militante.

As primeiras versões sobre o incidente falam de um “confronto” entre dois grupos de vizinhos da região, mas com o passar das horas o próprio ministro da Segurança da Província, Cristian Ritondo, e o procurador-geral, Julio Conte Grand, esclareceram que Orellana havia sido morto por um tiro e que a possível responsabilidade policial estava sendo analisada.

Por enquanto, não há uniformizados acusados, removidos de seus postos ou punidos pelo crime contra o trabalhador têxtil. Nenhum civil foi preso também. Tudo indica que é um novo caso de repressão com um saldo trágico para as pessoas.

Na área onde caiu “Roland”, como era carinhosamente chamado, há um complexo de hectares em desuso, apesar do fato de o acesso à moradia ser uma das principais emergências de um país que, como aponta o Centro de Estudos Legal e Social, tem um enorme déficit habitacional.

“O conflito que resultou na morte de Orellana faz parte do contexto de miséria generalizada, de uma especulação imobiliária e da negligência do Estado em terras fiscais ociosas”, fazia parte do comunicado lançado pelo CTEP.

No entanto, quando ainda não se havia terminado de chorar esta morte, uma notícia de Córdoba congelou o sangue novamente. Jesus Soria, membro do Encontro de Organizações que também integra o CTEP, foi morto pela polícia em um fato confuso, que depois seria interpretado como um novo caso de “gatilho fácil”.

Soria foi baleada nas costas quando tentou escapar de uma batida policial no bairro de Angelelli II, ao sul da capital Córdoba. Ele trabalhava na horta comunitária “Entre Todos”, uma das unidades de produção do coletivo de organizações, e soube-se que “já havia sido espancado de maneira brutal em um campo aberto em posição ajoelhada por dois policiais”, como relataram seus companheiros em uma declaração.

“Ao tentar fugir, Marcos se refugiou brevemente em um cercado de cavalos. Saindo dali, foi baleado nas costas pelos mesmos policiais, acusados por vizinhos de maltratar e torturar crianças do bairro”. Os vizinhos denunciaram também que seu corpo foi removido do local três horas depois, “tempo suficiente para modificar a cena do crime”.

Eles também informaram que os moradores do bairro foram “ameaçados” pelos uniformizados e pelo chefe da operação. Esta é razão pela qual o governo local ainda se recusa a fornecer informações públicas, pois quer esconder os nomes daqueles que participaram do assassinato de Soria.

“Eles mataram outro companheiro em Córdoba. Eu trabalhei em um pomar da OE de Córdoba. Nunca acreditei em teorias da conspiração, mas não acredito em coincidências há muito tempo. Ninguém aguenta mais. O governo é responsável! “, foi o desabafo de Grabois depois de ouvir a notícia. Em 26 de novembro, 60 mil pessoas marcharam na capital federal para pedir esclarecimentos e justiça sobre a morte dos dois militantes.

A Doutrina Chocobar em ação

As mortes de Orellana e Soria estão inscritas em um novo cenário político, no qual o Estado está determinado a reprimir o protesto social e todos os tipos de manifestação de organizações sociais e políticas. Isto torna-se visível de forma mais clara depois que o governo formalizou a resolução 956/2018, que permite que as forças de segurança atirem de volta “em caso de fuga”, ou mesmo quando o “suspeito” estiver usando uma arma de brinquedo.

Esses fatos lembram os assassinatos de Rafael Nahuel e o desaparecimento forçado seguido da morte de Santiago Maldonado, casos que foram comandados e cobertos pelo Ministro da Segurança Patricia Bullrich.

Enquanto a sociedade se mantiver indiferente, observando esses fatos sem se identificar com a sua verdadeira origem de classe trabalhadora, enquanto continuar a votar nos carrascos e não participar das lutas para construir uma sociedade mais justa, o governo de Mauricio Macri continuará sem se preocupar com o ônus do sangue derramado.

*Fonte: La Trama

A historia por trás do confisco de terras em Ciudad Evita: 40 hectres de negócio e sangue

*Por Matías Ferrari

A morte de Rodolfo Orellana poderia ter sido evitada se a AABE tivesse impedido a subdivisão ilegal das terras que administra. Mais do que negligência, suspeita-se de uma negociação que inclua vários atores, como a própria Província de Buenos Aires.

Mais de uma semana depois do assassinato de Rodolfo Orellana durante uma apreensão de terras em Ciudad Evita, a visão de advogados que representam a família do militante da OLP assassinado começa a determinar de qual arma veio o tiro que o matou pelas costas. De acordo com testemunhas, o atirador era “uma mulher loura” da Polícia de Buenos Aires. De igual forma começa a se desvendar a teia de interesses por trás da disputa sobre a terra onde a repressão foi desencadeada. Não está descartada, por enquanto, a hipótese de que a própria polícia tem seus próprios negócios em cumplicidade com as pessoas acusadas pelas organizações, Rolando Pardo e Isabel Carballo, que loteavam e vendiam terrenos que não eram deles para fraudar famílias numa área que sofre com a necessidade urgente de moradia e acesso à terra.

“Para os elementos que fomos levantando, não descartamos ter havido tanto uma repressão estatal, que terminou com o assassinato de Rodolfo, como de que a própria polícia agiu de acordo com os seus laços de interesses com as pessoas que negociavam os terrenos”, asseguraram a El Grito Del Sur, a partir da Associação de Advogados, organização que acompanha o caso. “Pelo que nos afirmaram as testemunhas, sabemos que certas pessoas encarregadas do local disseram à própria polícia que, caso as apoiasse, uma mão lavaria a outra”.

Até agora, há dois crimes sendo perpetrados: um por usurpação, no âmbito do qual foram detidos quatro militantes da CTEP e vizinhos que resistiram às prisões, todos já libertados; e um segundo envolvendo o assassinato de Orellana. O promotor da província de Buenos Aires, Julio Conte Grand, afirmou, 24 horas após o fato, ter sido uma bala que matou Rodolfo; enquanto o ministro de segurança de Buenos Aires, Cristian Ritondo, reconheceu que poderia ter sido uma “má ação policial” que desencadeou a tragédia.

O conflito pelo destino destas terras não começou agora. Tem pelo menos três anos: já em 2015, a Polícia de Buenos Aires havia tentado desalojar outro grupo de famílias, que resistiu contra a repressão e conseguiu manter-se nos terrenos que haviam comprado de boa fé.

Conhecido como o “bairro dos italianos”, 40 hectares de terreno localizado na altura de Puente 13, ao lado do Ricchieri Freeway, pertencem ao Estado e são administrados pela Agência de Gestão do Patrimônio do Estado (AABE), cujo diretor é Ramón Lanús. A terra é dividida em três seções: A, B e C. No setor B vivem hoje 55 famílias, cujos títulos foram reconhecidos a partir de um diálogo entre AABE, organizações sociais do distrito e APDH de La Matanza. Está registrado desde 2016 como parte do levantamento de Bairros realizado pela ANSES e movimentos populares. É uma das 144 favelas sem serviços distritais e, como em grande parte da geografia dos subúrbios, vive lado a lado com os muros de um bairro privado e de outro com um dos maiores assentamentos a oeste, que faz fronteira com o rio Matanza.

“O bairro foi construído por famílias sem a ajuda do Estado. Com seu próprio esforço. Resistindo a pressões, ameaças, expulsões e violência permanente “, disse Iber Mamani, ativista da Pátria Grande e membro da comunidade boliviana de Villa Celina.

A ação de quinta-feira aconteceu no setor C do terreno, que é também um sítio arqueológico de valor histórico, simbólico e cultural do povo Querandí, cuja conservação o grupo Tres Ombúes vigia. Nesse mesmo lugar, foram realizados cerimônias e encontros em memória dos antepassados há décadas, até que em 2015 Pardo os impediu de entrar, atirando pedras e ameaçando com a mira de um revólver. “O cara age como se fosse dono do lugar, ameaça quem quer entrar e ninguém faz nada”, disse Delia Claros, da Tres Ombúes.

A AABE FINGE QUE NADA VÊ

Para Mamani, há uma responsabilidade institucional na morte de Orellana, que poderia ter sido evitada. “A AABE sabia que tanto Pardo quanto Carballo continuaram por muitos anos a lotear e vender as terras. Se continuavam a trapacear as pessoas e a terra ainda estivava com seu título irregular, como não era previsível que uma tentativa de tomada das terras fosse desencadeada?” Ele perguntou.

Nesse ponto concordou Beatriz Capdevilla, secretária da APDH de La Matanza. “Nós avisamos à AABE que isso poderia acontecer. Nós exigimos que a terra fosse cercada e sinalizada, e que uma campanha pública fosse feita desencorajando a subdivisão e possíveis aquisições. Eles nunca fizeram nada “, ressaltou.

As organizações também destacam que apresentaram várias queixas sobre o assunto antes da tragédia. “Ao MTE denunciamos as negociações imobiliárias de Pardo e Carballo em repetidas oportunidades. Por essa razão, nossos colegas de lá, nosso militante Iber Mamani e seus vizinhos receberam diversas ameaças. Prova disso é a queixa apresentada aos advogados da APDH de Matanza em 14/11. O Procurador Geral de La Matanza recebeu a APDH e deu a devida orientação à denúncia das ameaças recebidas. Estranhamente, hoje esses eventos acontecem “, destacaram em uma declaração antes da conferência de imprensa que deram na sexta-feira, após a morte de Orellana.

Até agora, o chefe da entidade, Ramón Lanús, não pronunciou uma única palavra pública em relação ao que aconteceu. Sobre ele e o organismo que conduz pesam várias das causas que resultaram na retomada de posse, com posterior repressão e morte de Orellana. A AABE sabia que Pardo e Carballo loteavam e vendiam terras que são propriedade do Estado; os 40 hectares não foram devidamente marcados e Pardo continuou a exercer a violência e a administrar o território.

Enquanto isso, vários militantes e vizinhos da zona denunciam que continuam sendo intimidados e perseguidos. Até hoje, uma semana depois, os cinco filhos deixados por Orellana seguem sem conseguir fazer seu velório.

*Fonte: El Grito del Sur

http://www.resumenlatinoamericano.org/2018/12/05/argentina-apuntar-contra-la-ctep-tras-la-repersion-y-asesinato-de-orellana-40-hectareas-de-negocio-y-sangre/

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