Abuelas de Plaza de mayo e o neto 131

Por Andressa Bacin – Militante do PCB e membro da coordenação estadual e do CFCAM de Santa Maria-RS

Tantas veces me mataron
tantas veces me morí
Sin embargo estoy aquí
Resucitando

No dia 24 de março de 1976 se instala, na vizinha Argentina, mediante golpe, uma nova ditadura militar. Foi denominada como “Processo de reorganização nacional” e segundo a descrição do torturador fascista General Ibérico Saint-Jean (governador militar da província de Buenos Aires na época) tinha a intenção de “Primeiro matar os subversivos, depois os que colaboram com eles, depois os simpatizantes, depois os indiferentes, e, por fim, os tímidos”.

Nesse dia, se fez oficialmente institucionalizado o encarceramento, tortura, assassinato metódico e desaparição de presos políticos, processo que já vinha acontecendo de maneira mais velada há alguns meses. Com o intuito de aniquilar as organizações de esquerda, movimentos populares, sindicatos e tudo que fosse considerado minimamente subversivo, esse período sombrio durou até 1983.

A ditadura argentina tem a característica de ser Cívico-Militar-Eclesiástica, a burguesia nacional e setores fascistizados da população, as 3 forças e as polícias juntamente com a igreja católica constituíram os principais pilares para a instalação e manutenção do terrorismo e genocídio de Estado.

As pessoas eram arrancadas, com total impunidade, de seus locais de moradia, trabalho e estudo ou sequestradas no meio da rua mesmo. Isto se deu de maneira sistemática de norte a sul do país, onde estavam espalhados centros de detenção clandestinos e campos de concentração.

Nestes lugares, o instrumento central, que era a tortura era utilizado de maneira irrestrita, dando livre ação ao sadismo dos torturadores, o que tinha dois papéis fundamentais: primeiro obter informação e eliminar os considerados inimigos e segundo aterrorizar à sociedade para que esta não ousasse se organizar politicamente.

O torturador fascista Coronel Dotti (chefe do serviço penitenciário federal) dizia que “as prisões são uma frente de combate na luta contra a subversão”, onde, todas as possibilidades de atormentar os prisioneiros eram exploradas metodicamente e misturavam a tortura física com a psicológica, na tentativa de quebrar por completo a pessoa e sua vontade militante.

Tantas veces me borraron

Tantas desaparecí

A mi propio entierro fui

Sola y llorando

30 mil presos nunca mais apareceram, suas famílias até hoje seguem sem saber notícias. Provavelmente, depois de dias, semanas, meses de tortura principalmente com descargas elétricas, método preferido dos torturadores mas também surras de quebrar ossos e a torturas psicológicas levadas ao extremo, foram assassinadas.

Às mulheres, se reservavam outros métodos de tortura como estupros repetidos ou até mesmo a introdução de ratos em suas vaginas. Isso te lembra algo? Pois é, as ditaduras e genocídios se nutrem de experiência entre si. Uma grande parte destes prisioneiros tinham como destino a morte, seja por balas, seja por não aguentarem tamanha tortura ou nos voos da morte, onde eram atirados de aviões com os pés e mãos atadas ao Rio da Prata.

Siempre presentes, como el aire al respirar

Esse é um ínfimo resumo do que aconteceu, pois me seria impossível tratar de todo esse período em um texto.

Vejamos agora como surge um dos maiores sinônimos de resistência e enfrentamento ao fascismo

que se tem notícia na América Latina:

Abuelas de plaza de mayo

Identidad-Família-Libertad

Abuelas surge da dor e do desespero de mães (e famílias) que não tinham notícias de seus filhos e filhas, muitas delas grávidas, que foram levadas aos centros clandestinos de detenção e campos de concentração. Vale esclarecer que os campos de concentração são chamados como tal porque tinham como única finalidade a tortura e o extermínio dos presos, inclusive tinham fornos tal qual os utilizados pelos nazistas no Holocausto, para incineração de corpos.

As prisioneiras grávidas eram levadas principalmente à ESMA (Escuela de mecánica de la armada), que funcionava como uma maternidade clandestina, para levarem a término sua gravidez. Ali eram deixadas por esse período nas condições mais ordinárias, deitadas no chão em celas de 2×1,5 metros com outras 4 ou 5 pessoas, sofrendo todo tipo de privações e maltrato sendo inclusive, muitas vezes, estupradas.

Quando chegada a hora do parto, acabaram parindo nas próprias celas ou sendo levadas à centros de saúde controlados por militares.

As presas eram obrigadas a escreverem cartas para suas famílias aos que supostamente seus filhos seriam levados.

A partir daí, eram separadas de seus filhos e mortas. Os bebês eram enviados à famílias escolhidas segundo a concepção ideológica fascista para “salvá-los”, mediante adoções fraudulentas, muitas eram adotados pelos próprios militares que compunham o sistema ou eram abandonados em orfanatos.

Tudo isso com a cumplicidade e participação ativa da igreja católica, como é de praxe dessa instituição em terrorismos de Estado, ditaduras e genocídios.

No dia 30 de abril de 1977 abuelas e familiares começam a organizar suas marchas todas as quintas feiras na Plaza de mayo, situada na frente da casa de governo. A partir desse momento se começa a falar de um tema que ainda era motivo de medo e repressão: Onde estavam os desaparecidos?

Num primeiro momento elas eram descredibilizadas, tratadas como “um bando de loucas” por setores da sociedade que até hoje negam que existam desaparecidos.

O ditador Jorge Rafael Videla, presidente da Argentina entre 1976 e 1981, quando perguntado em uma entrevista sobre os desaparecidos respondeu: “Os desaparecidos são uma incógnita, não estão nem mortos nem vivos”. Os militares se encarregaram de apagar todos os rastros de seus assassinatos, muitos corpos foram enterrados em valas comuns que estão sendo descobertas até hoje.

Abuelas, sabendo dessa dificuldade, entraram em contato com diversos países em busca da ajuda da genética, que naquela época (final dos anos 70, início dos 80) ainda engatinhava no campo dos testes de dna. Se bem os testes de paternidade já eram conhecidos, o desafio era que, se deveria comparar com o material genético dos avós. Receberam respostas em 1982 de associações científicas dos Estados Unidos, depois de um ano de investigação veio o êxito e a justiça burguesa teve que incorporar esses exames como provas nos processos.

A partir daí, se criou o Banco nacional de dados genéticos, para reconhecimento de desaparecidos, netos, principalmente, os que foram arrancados dos braços de seus pais em cativeiro. Alí ficam armazenadas mostras dos familiares dos desaparecidos e pode ser procurado por qualquer pessoa que tenha dúvidas de sua identidade.

Com o trabalho incansável de 45 anos, se recuperaram 131 netos. O mais recente foi apresentado há poucos dias, flho de Lucía Angela Nadin e Aldo Hugo Quevedo, sequestrados pela ditadura em 1977. Lucía e Aldo permanecem em condição de desaparecidos.

Junto a outros organismos de direitos humanos, abuelas impulsionou e impulsiona o julgamento de vários condenados por terrorismo de Estado, principalmente dos apropriadores de seus netos.

Elas estiveram presentes e tiveram papel fundamental para que a memória dessas vítimas permaneça viva até hoje, como mostrou recentemente, mesmo fazendo pouca menção à importância que tiveram as abuelas, o flme “Argentina, 1985” do diretor Santiago Mitre, que retrata o julgamento dos principais responsáveis pela ditadura.

¿Cuánto dinero ganan los que viven de la muerte?

Os julgamentos dos culpados por sequestro, vulneração dos direitos humanos, privação ilegal da liberdade, tortura e assassinato começam em 1984, antes disso reinava a impunidade. Inclusive, Videla votou nas eleições burguesas de 1983 que elegeram Raúl Alfonsín como presidente.

Videla foi condenado à prisão perpétua, mas cumpriu poucos anos devido às várias leis de anistia que eram aprovadas em alguns governos que vieram, a exemplo do governo de Carlos Menem que o soltou, juntamente a outros militares e chefes de polícia sob o pretexto de que “é necessário superar os conflitos passados”.

No mesmo julgamento, o militar Emiliano Eduardo Massera também foi condenado à prisão perpétua, também foi indultado por Menem.

E assim a luta seguiu por vários anos, entre governos minimamente progressistas e a direita.

Até que em agosto de 2003, o congresso nacional argentino anulou as leis de impunidade e se reabriram vários casos, inclusive os da ESMA e o do Campo de mayo, centros de detenção e tortura importantíssimos para a ditadura. A participação das abuelas foi fundamental nesse processo de reabertura, tendo em vista que, nesses lugares, as prisioneiras eram levadas para terem seus flhos. Além disso, Miguel Etchecolatz, na época da ditadura diretor da polícia de Buenos Aires e uma das principais figuras responsáveis pelas desaparições de bebês foi novamente julgado, em 2006 condenado a prisão perpétua, pela primeira vez na história argentina, culpado de delitos de lesa humanidade cometidos no marco de um genocidio.

Em 2012 chegou ao fim a causa conhecida como “Plano sistemático de apropriação de menores”, onde Videla foi condenado a 50 anos de prisão.

Até o dia de hoje a Argentina segue levando à investigação e à condenação de centenas de envolvidos nos crimes da ditadura militar.

Obviamente, camaradas, isso tudo é feito dentro do marco da justiça burguesa, e que esse não pode ser, de jeito nenhum, nosso modelo a ser seguido enquanto comunistas. Mas o que todo esse processo nos deixa de ensinamento?

Quem vai atrás de osso é cachorro!

Jair Messias Bolsonaro

Passadas as eleições e com a derrota de Bolsonaro, surge um novo medo, o de que Bolsonaro e toda a corja que arquitetou a morte de 600 mil pessoas na pandemia de covid, que são fascistas declarados e homenageiam torturadores, que vulneram todos os dias todos os direitos humanos existentes, que odeiam mulheres, LGBTs, negros, indígenas, etc, fiquem impunes de seus crimes. Anistia, significa esquecimento, numa lógica cristã significa perdão.

Estas leis de anistia do pós-ditadura deveriam servir para exilados, condenados pelo que eram considerados crimes políticos mas acabaram impossibilitando de condenar os torturadores e genocidas responsáveis pela ditadura militar brasileira.

Haverão leis de anistia que isentem Damares, por exemplo, que operou ativamente para impedir que uma criança vítima de estupro abortasse?

O que será de Ricardo Salles, um ecocida?

Um dos papéis da mobilização da classe trabalhadora é não deixar esse tipo de crimes caírem no esquecimento ou ficarem na total impunidade.

Nós, comunistas, somos os primeiros exterminados em qualquer ditadura, e quando estas são na América Latina, onde as ditaduras têm um caráter duradouro, isso se perpetua por vários anos sem gerar muita indignação no cenário mundial.

Como pode um parlamentar (Bolsonaro) se sentir livre para dizer à outra que “não a estupraria pois ela não merece?” na frente das câmeras.

Ele se sente validado pois o que o governo brasileiro “democrático” fez, passada a ditadura com torturadores? A mesma coisa que Menem na Argentina, leis de anistia que cobriam à fascistas.

Por isso, é nossa tarefa enquanto comunistas lutarmos diariamente pela revolução para que não tenhamos que depender da justiça burguesa, burocrática e lenta a propósito ou ficarmos a mercê de governos igualmente burgueses e suas instituições, para punir genocidas.

Y a la hora del naufragio y la de la oscuridad, alguien te rescatará para ir cantando…

Fontes:

Bibliografa: Pedaços de morte no coração de Flávio Koutzii

Informe Nunca más-CONADEP INFORME “NUNCA MÁS” – Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) – Informe Sábato – Investigación de violaciones de derechos humanos cometidos en Argentina durante la dictadura militar – Fundación ACCIÓN PRO DERECHOS HUMANOS (www.fundacionpdh.org)

Informe técnico víctimas del terrorismo de Estado de CONICET

Informe_Tecnico_Comision_de_la_Memoria_2022_FINAL_con_Anexo_I.pdf Página ofcial Abuelas de Plaza de Mayo