A “moratória” de Macri e a inflação descontrolada
Achille Lollo
Em 23 de agosto, apenas dois meses após o primeiro turno das eleições presidenciais, o ministro das Finanças, Hernán Lacunza e o presidente do Banco Central da Argentina, Guido Sandleris, informaram ao FMI e aos bancos credores que o presidente Macri havia solicitado uma moratória, cancelando todos os pagamentos, com vencimento nos próximos seis meses. Mais tarde, em 5 de setembro, o andaime político do liberalismo argentino começou a desmoronar quando o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) revelou que nos últimos 12 meses a inflação havia subido até 54,4%!
Consequentemente, “El Patapum Neoliberal” (Deslize Neoliberal) do presidente Mauricio Macri ocorreu em 25 de setembro, quando o INDEC (Instituto Nacional de Estatística e Censos) declarou que nos quatro anos de governo neoliberal – ou seja, de 10 de dezembro de 2015 até 15 de setembro de 2019 -, a inflação sempre esteve fora de controle, adicionando uma assustadora taxa de crescimento de 230% nestes últimos quatro anos. Quer dizer uma média inflacionária anual de 73%!
Uma revelação que deixou atônitos a maioria dos argentinos, que só agora se deram conta de que o “maravilhoso programa econômico liberal do governo Macri, elogiado por Donald Trump e pelas excelências de Wall Street”, na verdade, era “una trampa”, isto é, um programa de reformas desastrosas que causaram o crescimento desproporcional do desinvestimento industrial, do desemprego e, acima de tudo da inflação. De fato, o agravamento da crise econômica na Argentina causou um rápido rebaixamento da qualidade de vida e, acima de tudo, quebrou a reconhecida eficiência dos serviços públicos argentinos. Por essas razões, a gestão negativa das políticas sociais por parte do governo Macri e a incapacidade de corrigir os efeitos da crise econômica, tornaram cada vez mais evidente o que no popular bairro “Palermo” de Buenos Aires chamam de “El Patapum Neoliberal”. Uma situação totalmente diferente do contexto socioeconômico do governo de Cristina Fernandez Kirchner que, em 2015, segundo o INDEC e o Banco Mundial, registrou um índice de desemprego muito baixo (4,4%) e inflação na órbita do 20%.
É evidente que a declaração da moratória, a explosão da inflação e as más condições de vida dos trabalhadores e também da maioria da classe média, deveriam pôr fim ao sonho eleitoral de Mauricio Macri. Porém, usei a forma verbal no condicional, porque a contraditória história eleitoral argentina pode ter amargas surpresas, assim como aconteceu em 2015, quando Sergio Massa – um importante aliado da “Frente de Todos” – abandonou a coalizão criada por Cristina Fernandez Kirchner para competir como independente. Uma decisão que, na verdade, facilitou a vitória de Macri!
A segunda surpresa pode advir da definição dos comportamentos de uma parte do proletariado e, principalmente dos diferentes setores da classe média, totalmente despolitizados e sempre prontos a seguir as orientações eleitorais da mídia. Em particular, me refiro á classe média da capital Buenos Aires, que sempre acreditou nas manipulações do grupo “Clarin” (jornais, revistas, rádio e TV Canal Trece) e das duas TV concorrentes, a “Telefe” da multinacional Viacom e a “Time Warner ”do grupo americano Turner-HBO. De fato, apesar da dramática situação econômica e social, a maioria da mídia continua justificando o trabalho de Macri e do seu governo, os conceitos contraditórios da economia neoliberal e a relação de dependência com os Estados Unidos. Por isso, no primeiro turno das eleições presidenciais, grande parte da classe média ouviu a “voz da mídia”, e votou em Mauricio Macri, que recebeu 32,5% das preferências.
Um resultado que reabre a discussão sobre a complexidade política da sociedade argentina e sobre o posicionamento político dos diferentes setores da classe média. De fato, nos últimos quatro anos, os desajeitados projetos de reforma econômica e monetarista do ministro Hernán Lacunza fizeram sofrer bastante a classe média. Porém, na hora de votar prevaleceu a histórica posição ideológica do obtuso antiperonismo, apenas porque a “Frente de Todos “, de Cristina Fernandéz Kirchner, está muito próxima dos trabalhadores e dos sindicatos, representando o novo centro-esquerda argentino, progressista e disposto a dialogar com a esquerda. Elementos que os meios de comunicação exploraram “ad hoc”, promovendo um autêntico “ódio de classe”, que nos últimos anos teve um crescimento considerável não apenas na Argentina, mas também no Brasil e na Venezuela.
Os motivos do “Patapum”
Hoje, os críticos do programa econômico do governo Macri não relacionados à oposição peronista ou à esquerda, admitem que os erros cometidos por Macri e seu governo não seriam erros políticos, mas, “apenas” erros técnicos, cometidos na esfera financeira pelos ministros que foram substituídos em 2018. Uma justificativa que se tornou o cavalo de batalha dos colunistas do jornal “Clarim”, e das TVs “Canal Trece” e “Telefe”. Em resposta a oposição lembra que Macri havia feito sonhar o eleitorado prometendo baixar a inflação de 20% para 8% e até erradicar a pobreza!
No entanto, o principal elemento do “Patapum Politico” de Macri foram os contínuos aumentos dos preços, de todos os alimentos, especialmente os mais populares, como leite, legumes, pão, etc. Produtos que nos meses de junho, julho e agosto adicionaram aumentos de 58,6%! Por isso, o peronista Alberto Fernandez, candidato da coalizão “Frente de Todos” venceu o primeiro turno das eleições presidenciais com 47,66% das preferências.
A vitória no primeiro turno de Alberto Fernandez e, portanto, o retorno de Cristina Fernandez Kirchner na Casa Rosada como vice-presidente, enlouqueceu a burguesia e as oligarquias, cujos candidatos foram vencidos ao nível nacional, comprometendo também a eleição de vários governadores. No entanto é oportuno lembrar que a vitória da “Frente de Todos” foi significativa, especialmente no Distrito Autônomo da capital Buenos Aires, que durante oito anos foi governado por Macri, representando a fórmula vencedora do programa neoliberal.
Neste contexto, é imperativo sublinhar que a imagem política do presidente Macri e sua credibilidade degeneraram sobretudo quando ele solicitou a moratória, anunciando o “não pagamento” durante os próximos seis meses. Uma moratória que, para os argentinos, ricos e pobres, faz lembrar os dramáticos meses de 2001, quando eram visíveis os primeiros sinais do iminente “default”, a saber a falência do Estado argentino. Por isso, em setembro, esta correlação de situações fez explodir o valor do dólar paralelo e logicamente seu “envio” para os bancos “off-shore” do Uruguai e do Paraguai!
Os críticos da esquerda – ou seja, aqueles que os colunistas da “grande mídia” etiquetam como esquerdistas – agora levantam a questão do empréstimo do FMI de 57 bilhões de dólares, que o governo Macri recebeu e usou para financiar os interesses e a ganância da “raça-patroa”. Exatamente o mesmo que aconteceu no passado durante os governos ditatoriais e depois com os neoliberais. Uma tese que encontra indiretamente confirmação nas palavras do presidente do Banco Central da Argentina, Guido Sandleris, que questiona o governo Macri lembrando: “… a pouca competência e, portanto, o uso imprudente das reservas monetárias internacionais !…”. Isto significa que a turma do “Cambiemos” de Mauricio Magri, na realidade, se apropriou da maior parte dos 57 bilhões de dólares emprestados pelo FMI, como fizeram no passado Menem, Galtieri, Viola, Videla, Ongania, Lanusse, sem esquecer “El Brujo” (O Bruxo), ou seja, José López Rega – o fiel secretário de Perón e ministro de Isabelita -, que com o dinheiro do Tesouro argentino financiou a “Triple A”, para iniciar o drama da “guerra suja”e dos “desaparecidos ”.
Frente de Todos
Poucos se lembram, e os “gurus da grande imprensa” evitam falar do que aconteceu em 2015 na Argentina e também no Brasil, quando o Departamento de Estado e a CIA do democrata Barak Obama obtiveram nestes países duas importantes vitórias políticas, graças as manipulações jurídicas. De fato, no Brasil, houve o falso Impeachment para depor a presidente Dilma Roussef, acabar com o governo do PT e levar Lula à prisão com uma condenação escandalosa por corrupção.
Em vez disso, na Argentina, os homens do Departamento de Estado e as antenas da CIA “aconselharam” o juiz federal Claudio Bonadio a instruir 6 julgamentos contra a então presidente Cristina Fernández Kirchner, apenas nos últimos seis meses do mandato. Dessa maneira, foi fácil para a mídia desestabilizar a campanha eleitoral, atacando a imagem política de Cristina Fernández Kirchner, fundadora da “Frente de Todos”, e assim conseguir dividir o eleitorado popular. Uma manipulação muito bem orquestrada pela mídia, lembrando que os órgãos do grupo editorial “Clarim” e em particular o canal de TV “Canal Trece” tiveram um papel decisivo na vitória de Mauricio Macri.
Hoje, a “Frente de Todos” – depois de ter avaliado os erros cometidos na campanha eleitoral de 2015 e as manipulações da mídia – cresce bastante, tornando-se uma coalizão muito mais organizada e pragmática, que reúne todas as correntes peronistas do “Partido Justicialista”, a “Frente Renovador”, de Sergio Massa, os setores radicais que levaram Leopoldo Moreau a formar o “Movimento Nacional Alfonsinista “, e depois o “Partido de la Concertacion “de Gustavo Lopez, o “Proyeto Sur” de Pino Solanas, o “Partido Socialista de Buenos Aires”, dirigido por Jorge Rivas, o “Partido Solidário” de Carlos Helles, o “Nuevo Encontro” criado por Martin Sabbatella e outros grupos menores ligados ao movimento popular.
As duas grandes centrais sindicais, a “CGT” (Confederação Geral do Trabalho) e a “CTA” (Central de Trabalhadores da Argentina), que representam 70% do movimento sindical argentino, são os grandes aliados da “Frente de Todos”, que se apresenta aos eleitores como o novo centro-esquerda argentino. Assim, se esta coalizão permanecerá unida e se não repetirá os erros de 2015, a vitória de Alberto Fernandéz e de Cristina Kirchner será a nova realidade que contribuirá para afrouxar o cabresto geoestratégico que os Estados Unidos, ou melhor o imperialismo estadunidense, conseguiu impor à soberania da Argentina e de muitos países da América Latina.