Empobrecimento e resistência: as peculiaridades da Argentina

imagemKatz, Viento Sur
Resumen LatinoamericanoClaudio

A Argentina é um grande enigma para os intérpretes do desenvolvimento. Um país favorecido por extraordinárias riquezas naturais e com uma população relativamente qualificada enfrenta profundas crises periódicas. Essas convulsões convivem com enormes movimentos de protesto em cenários políticos convulsivos. Quais são as causas do declínio econômico-social? Como operam as forças que acentuam e temperam esse retrocesso? Que problemas enfrentam as explicações mais correntes? (1)

Traumáticos desequilíbrios

O país se encontra novamente à beira do colapso. Os fechamentos de empresas aprofundam a recessão, as assustadoras taxas de juros sufocam a atividade produtiva e os salários suportam a pior queda das últimas décadas. A inflação retomou os picos do passado e sobrevoa o fantasma de outro calote da dívida.

O primeiro programa neoliberal implementado pelo governo naufragou e o socorro oferecido pelo FMI se extinguiu em 90 dias. O segundo auxílio do Fundo, inclusive sua manipulação direta da economia, introduziu uma brutal restrição de gastos e uma inédita aspiração da circulação monetária.

Esse ajuste conduz a um prolongado estancamento ou a incontroláveis explosões. Já existem paralelos com cenários de troca compulsiva de bônus e transbordamentos inflacionários (1989) ou de aguda depressão (2001).

Esta recorrência de grandes convulsões ilustra um retrocesso de longo prazo com poucas semelhanças internacionais. Em muitos poucos países se verificam oscilações tão abruptas do nível de atividade. O PIB argentino registrou contrações e expansões superiores à média internacional em 12 oportunidades durante os últimos 35 anos. Essas oscilações obstruíram a acumulação, retraíram os investimentos e elevaram os custos de financiamento.

Também é singular a dimensão alcançada pela fuga de capitais. Um percentual equivalente a 50% ou 70% do produto bruto está localizado no exterior. Os grupos dominantes protegem nos paraísos fiscais significativas porções dos lucros que geram no circuito local.

A magnitude da inflação é outro dado peculiar. Superava a média internacional nos anos de generalizada remarcação internacional de preços e persiste no atual contexto de estabilidade (ou deflação). Em contados países se verificam as taxas de dois dígitos anuais que imperam na Argentina.

Essa depreciação da moeda empurrou à fuga de divisas e à comercialização de muitos bens em moeda estrangeira. Pela mesma razão, o volume físico de dólares em circulação supera amplamente a média na região.

Condicionamentos objetivos

A Argentina sediou uma industrialização precoce, com certo desenvolvimento do mercado interno e importantes conquistas sociais. Porém, esse distanciamento inicial das adversidades latino-americanas se desvaneceu de forma vertiginosa nas últimas décadas.

A economia do Cone Sul ficou muito afetada pelos parâmetros de rentabilidade da globalização neoliberal. Essas referências forçaram uma reestruturação muito regressiva nos países periféricos que alcançaram maior desenvolvimento prévio. Opressora sucessão de ajustes. A remodelação começou nos anos 80 e ninguém avista sua finalização.

O mesmo desacoplamento afeta outras economias medianas da América Latina. Todas sofrem os efeitos do giro invertido para o Oriente. Basta observar o contraste com o Sudeste Asiático para notar a envergadura dessa mutação. Duas zonas que compartilham o mesmo status econômico relegado seguiram trajetórias opostas.

Esta mudança impacta sobre o Brasil, que padece com o estancamento da produtividade, os déficits externos e a obsolescência da infraestrutura. Também as maquilas mexicanas perderam gravitação frente aos competidores asiáticos.

Porém, as adversidades da Argentina são maiores. A economia que inaugurou o modelo substitutivo de importações não conseguiu superar as consequências desse avanço. Ficou mais descolocada que seus pares frente ao novo padrão produtivo das empresas transnacionais.

A Argentina não tem as compensações que conserva o México por sua proximidade com o mercado estadunidense. Tampouco conta com o tamanho do Brasil para ampliar a escala de produção. A balança comercial favorável com o sócio limítrofe ilustra essa adversidade.

As periódicas reativações da indústria argentina nunca conseguiram conter o declínio. Persistiu a alta concentração em poucos setores, o predomínio estrangeiro e a baixa integração de componentes locais. No triênio de Macri se consumou um verdadeiro “industricídio”. Perderam-se 107.000 empregos, a produção se localiza em 14% abaixo de 2011 e o nível de emprego se equipara com 2018.

Alguns analistas contrapõem estas dificuldades com a estabilidade do Chile, Peru ou Colômbia, apresentando uma visão abrandada dessas economias atrasadas. Aqueles que tradicionalmente emulavam os Estados Unidos, Espanha ou Itália, agora se resignam a seguir os modelos situados em um escalão inferior.

Porém, não conseguem explicar por que razão a Argentina continua atraindo imigrantes dessas nações e ignoram a invalidez de sua comparação. As novas economias referentes evitam a demolição fabril da Argentina por sua simples carência de parques industriais significativos.

Nosso país perdeu também o privilegiado lugar internacional de suas exportações de carne e trigo. Ampliou-se o número competidores de ambos produtos e a soja não cumpre a mesma função multiplicadora de outras atividades. Ao contrário, acentua a quebra da agricultura integral e complementa a escassa criação de postos de trabalho, que geram a mineração a céu aberto ou a extração de petróleo com shale.

Nas últimas décadas se acentuou a incapacidade de distintos governos para canalizar a renda da agricultura (a mineração ou os combustíveis) para o desenvolvimento produtivo. Essa impotência reforça o contraste com a Austrália, que se especializou na exportação de matérias primas, expandindo ao mesmo tempo certos serviços e indústrias intensivas.

A imitação desse caminho se encontra atualmente mais obstruída. A Austrália não enfrenta a complementaridade e rivalidade agrícola da Argentina com os Estados Unidos e sua proximidade do Sudeste Asiático permitiu uma reconversão, que não está ao alcance da América do Sul.

Turbulências políticas

O retrocesso econômico é a principal causa da instabilidade geral. A ausência de crescimento sustentável e a recorrência das crises corroem há várias décadas distintos presidentes.

Os governos militares dos anos 60 foram mais voláteis que seus equivalentes sul-americanos e nenhuma outra ditadura colapsou por uma incursão militar semelhante às Malvinas. Tampouco tem sido tão corrente em outros países a renúncia antecipada dos mandatários ou a ascensão de cinco presidentes em uma semana.

O uso da coerção para responder a essa vulnerabilidade está seriamente limitada. O desprestígio que sucedeu os crimes da ditadura, a aventura militar contra os britânicos e os levantes dos caras-pintadas anularam o velho protagonismo do exército. Não exerce o poder explícito que exibe na Colômbia, México ou Brasil, nem o papel subjacente que desempenha no Chile ou Peru.

Esse deslocamento priva a classe capitalista de um importante instrumento de dominação. O papel ativo das forças armadas na sustentação dos sistemas políticos não é um vício do século XX. Constitui uma urgente necessidade dos regimes autoritários da América Latina.

A restauração dessa influência tem sido uma frustrada prioridade de Macri. Forjou um Ministério de Segurança com assessoramento israelense para adestrar repressores e tentou revogar a lei que impede a intervenção dos gendarmes na repressão interna.

A instabilidade política deriva também da erosão dos partidos tradicionais. A UCR ficou muito deteriorada por seus dois fracassos governamentais. A queda de De la Rúa foi mais impactante que a saída forçada de Alfonsín, porém ambos desenlaces quebraram a antiga primazia do radicalismo na classe média. Esse agrupamento subsiste atualmente como uma formação subordinada ao PRO.

Também o peronismo perdeu uma parte de seu velho sustento popular. Obteve uma sobrevivência que não conseguiram seus pares da região (PRI do México, APRA do Peru, Varguismo do Brasil, MNR da Bolívia), porém ficou muito erodido como coluna vertebral do movimento operário. A aguda fragmentação entre trabalhadores formais e informais corrói a uniformidade social que sustentava o justicialismo. Essa deterioração se verifica no plano ideológico. Frente a uma identidade muito debilitada, só uma minoria canta a marcha com a espontaneidade do passado.

A década kirchnerista consagrou a fratura atual entre os setores direitizados do peronismo (que defendem a gestão de Macri) e o espectro progressista (que Cristina lidera). É preciso verificar se convergem novamente em uma opção de governo. Em qualquer variante se enfraqueceu seu velho papel de reserva frente aos vazios de poder. O peronismo acompanha a crise geral de governabilidade.

Empobrecimento e resistência

Um terço da população argentina está imersa na pobreza ou na informalidade laboral. Por esta razão, o assistencialismo se transformou em um item perdurável das contas públicas. Os planos de auxílio surgidos da luta popular se converteram em um gasto indispensável para a reprodução do tecido social. O que inicialmente irrompeu como uma resposta provisória à emergência se transformou em um dado estrutural.

A fotografia dessa pauperização se assemelha a qualquer retrato da América Latina. Porém, a degradação argentina tem sido mais fulminante e contemporânea. Diferente da região, a porcentagem dos desamparados não superava 5% da população nos anos 70. A vertiginosa expansão posterior não tem comparação e afeta populações já urbanizadas e escolarizadas. Não repete, por exemplo, a massiva expulsão de camponeses mexicanos de suas terras.

Porém, essa impactante regressão social não enfraqueceu na Argentina a continuidade da luta popular. Em muitos poucos países se verifica essa perdurável escala de protestos. Especialmente o sindicalismo mantém um incomum protagonismo em comparação a outros países.

Desde o fim da ditadura se realizaram mais de 40 greves gerais com altíssima adesão. Sob a gestão de Macri se concretizaram três paralisações com o mesmo grau de compromisso. A sindicalização se localiza no topo das médias internacionais, após a grande recuperação de filiados registrada durante a década passada.

Este peso da organização sindical se verifica nos momentos de maior conflito. A hostilidade dos meios de comunicação não dissuadiu o acompanhamento (explícito ou passivo) dos setores não agremiados. O governo só mantém o ajuste pela cumplicidade da burocracia sindical. Sua incapacidade para submeter a luta popular erodiu a sustentação que recebe da classe capitalista.

Os movimentos sociais fornecem uma segunda frente de grande resposta por baixo. Os piquetes de 2001 desembocaram em organizações que reúnem multidões. Essas convocatórias asseguram a continuidade dos planos, que Macri e Vidal não se atrevem a cortar. Repetem com as organizações sociais as mesmas negociações de seus antecessores.

As mobilizações se estendem também à juventude, que congregou um inédito número de manifestantes na batalha pelo aborto. Toda a política argentina se dirime nas ruas e se processa posteriormente nas instituições. A remodelação econômica regressiva que exigem os capitalistas se choca com a grande barreira da resistência social.

Essa vitalidade da luta sempre assemelhou a Argentina à França e na conjuntura atual aparenta Macri com Macron. Dois presidentes a serviço explícito dos abastados que enfrentam o mesmo repúdio dos empobrecidos.

Ambivalências e ideários

A classe média sempre oscilou entre duas condutas frente às tensões do país. Em certos momentos defendeu as forças truculentas e ditatoriais e, em outras circunstâncias, apoiou os líderes democráticos e radicalizados. Esta própria flutuação se verifica em muitos países, porém, na Argentina inclui ingredientes mais conflitivos.

Macri canalizou o descontentamento das faixas médias que golpeavam as panelas contra Cristina, depreciando os precarizados e naturalizando a conveniência de um governo de milionários. Essa adesão ficou corroída com o desastre econômico do Cambiemos, porém, não se dissolveu. É uma incógnita como incidirá no país a onda ultradireitista que chegou à América do Sul das mãos de Bolsonaro. Até o momento, prevalecem as diferenças que separam a Argentina do Brasil (2).

O núcleo duro da direita se encontra muito afincado em grupos endinheirados e gerações veteranas. Sua prédica é influente, porém não calou o grosso da população. Os setores médios habitualmente conservadores glorificam o mercado até que o ajuste os afete. Também avalizam a coerção estatal, porém, não a repressão em grande escala.

Por sua vez, os segmentos progressistas do mesmo universo participam limitadamente dos protestos. Exibem um grande temor quanto aos efeitos devastadores da crise. O trauma legado por 2001 contém suas reações.

A direita sempre disputou preeminência na classe média, em conflito com a grande tradição de direitos humanos e educação pública. A primeira fundação inclui vasos comunicantes com as Mães, as Avós e os Familiares de desaparecidos. Essa sintonia cobra visibilidade nas massivas comemorações do 24 de março.

A consciência democrática se realimenta com a recuperação dos netos e as batalhas pela identidade ou a memória. Por isso, naufragaram as tentativas oficiais de indultar os genocidas. O “dois por um” suscitou um contundente repúdio e o crime de Maldonado desatou uma comoção.

Estas convicções democráticas se assentam no perdurável legado da educação pública. A escolarização massiva em estabelecimentos laicos forjou um ideário de convivência e progresso que persiste até a atualidade.

O neoliberalismo tenta destruir o ensino estatal para naturalizar a segmentação social. Com asfixia de recursos, deterioração dos colégios e hostilidade para com os docentes, propicia o modelo chileno de privatização escolar.

Porém, não pode generalizar as crenças elitistas, nem anular a vitalidade do pensamento crítico nas universidades. Os setores médios – que nos anos 90 acompanharam a resistências das Carpas Blancas – continuam comprometidos com a defesa de suas tradições educacionais.

Falácias neoliberais

As tensões da Argentina obedecem aos desequilíbrios específicos do capitalismo, em cenários de grande resistência popular. A direita desconhece os determinantes e situa a origem de todos os problemas no descontrole do gasto público. Estima que esse transbordamento agiganta a incidência do Estado, em detrimento do setor privado.

Porém, esses gastos não superam a média mundial ou regional. A economia argentina não é mais estatista que seus pares e os momentos de grande déficit fiscal sempre obedecem a alguma necessidade das classes dominantes. Os recursos do Tesouro se destinam a empresas afetadas por convulsões cambiais ou a bancos corroídos por tremores financeiros.

Com esses auxílios, o Estado tentou responder à conduta improdutiva de uma burguesia que investe pouco, elimina capital e remarca preços. Os problemas do setor público se originam do sustento outorgado aos donos do país.

Em lugar de registrar esse favoritismo, os liberais culpam a população. Sem oferecer nenhuma evidência, estimam que a sociedade se acostumou ao financiamento estatal do consumismo. Omitem que o poder de compra caiu em sintonia com a deterioração da alimentação, da saúde e da educação. O consumo excessivo está restrito à classe alta e nunca se estende aos empobrecidos.

O gasto público reforça essa desigualdade mediante subsídios e um sistema impositivo regressivo. Não é certo que a esforçada atividade privada sustente o parasitário setor público. Os grandes capitalistas aumentam seu benefício manipulando ambas as esferas.

Os liberais (e seus afilhados “neo”) costumam criticar indiscriminadamente os argentinos que “vivem acima de suas possibilidades”, esgotando as velhas riquezas da nação. Porém, esquecem que a Argentina não se converteu em um deserto, nem perdeu suas extraordinárias vantagens naturais. Só enfrenta uma maior depredação desses ativos. A renda transferida ao exterior não gera empregos e acentua o desinvestimento.

O liberalismo governou em incontáveis oportunidades e sempre agravou os desequilíbrios que promete erradicar. Porém, invariavelmente culpa o resto da sociedade por seu fracasso. Macri repete essa conduta acumulando um recorde de falhas que atribui a outros. Atribui a regressão econômica do último triênio à herança de sete décadas. Com esse artifício, dissimula o impacto de seu programa de endividamento, abertura comercial e flexibilização das leis trabalhistas.

Ao destacar a responsabilidade de seus adversários, os liberais omitem sua preeminência nas administrações cívico-militares, menemistas e aliancistas das últimas décadas. Especialmente os porta-vozes do Cambiemos ocultam que Macri não inventou o capitalismo de amigos, a agressão ao sindicalismo e o deslumbramento pelo capital estrangeiro. Repete o feito por aqueles que propiciaram as mesmas cirurgias econômicas e os mesmos abusos sociais, sem conseguir o restabelecimento da taxa de acumulação.

O PRO repete os velhos pretextos e busca nas adversidades internacionais as causas dos desajustes que autogera. Porém, não explica por que razão nenhum outro país enfrenta um esgarçamento semelhante. Como já ocorreu com Martínez de Hoz, a convertibilidade e Cavallo-De la Rúa, o financiamento aventureiro da reconversão neoliberal desemboca em um colapso da economia.

É particularmente assombrosa a semelhança com os anos 90. Apreciação do tipo de câmbio, desmantelamento da produção nacional, abertura comercial indiscriminada, desperdício de dólares em turismo, desregulação trabalhista e consentidas jogadas financeiras, para solucionar com dívida a fuga de capital.

Macri só contribui para um descaramento maior na implementação das mesmas políticas. Essa desfaçatez é congruente com seu pertencimento à elite capitalista. Prescinde das velhas mediações e ensaia um formato de neoliberalismo cru, com os mesmos resultados do passado.

Demonização do populismo

A direita atribui a instabilidade política à demagogia dos funcionários. Considera que essa irresponsabilidade potencializa a indisciplina endêmica dos argentinos. Estima que a velha “vivacidade criolla” desembocou em uma falta de respeito às instituições. Defende que essa “cultura da desmesura” esmagava a ética do esforço requerido para forjar um “país normal”.

Esse olhar imagina um estereótipo de argentino culpado por todas as desventuras nacionais. Mas a que grupo social pertence esse desviante? Compartilha a indolência dos financistas? Esbanja as rendas do agronegócio? Perpetra as estafas da “Pátria Empreiteira”? Os direitistas evitam associar o impugnado personagem com os donos do país. Concentram no povo sua identificação da argentinidade com a vagabundagem.

A variante macrista do mesmo relato incorpora os clichês da nova direita. Repete o sermão do diário La Nación com poses de inconformismo e recicla a ideologia violenta com retórica new age.

A principal desgraça do país é invariavelmente situada no populismo. Porém, se esquece que a Argentina perdeu a exclusividade dessa enfermidade. Atualmente essa injuriosa condição tem mais peso nos admirados paraísos dos Estados Unidos e Europa. Os liberais nunca definem o significado exato do populismo e simplesmente o desqualificam por sua eventual associação a alguma melhoria para os trabalhadores.

As críticas mais correntes são descarregadas sobre os políticos que utilizam enganosas promessas para ganhar eleições. Porém, essas mentiras costumam alcançar também os líderes do próprio processo. Macri chegou à presidência anunciando uma chuva de investimentos e gerou a pior jogada financeira da história. Essa fraude não ilustra uma típica perversidade do populismo? Com seu habitual dois pesos, duas medidas, os direitosos eximem o presidente.

Também questionam o “desapego à lei” dos argentinos, excetuando os poderosos. Consideram normal a entrega por moedinhas de empresas do estado ou a legalização da evasão por meio de lavagem de dinheiro. Porém, exigem duras penalidades contra as demandas dos empobrecidos.

Com a mesma ótica enviesada, apresentam a corrupção como um vício de governantes anteriores. Esquecem que todas as administrações do planeta se exculpam com o mesmo argumento. A “pesada herança” não é uma invenção do PRO.

Porém, nas mãos do Cambiemos o estandarte multiuso da corrupção é uma brasa quente. Muitos poucos personagens do governo podem justificar suas incalculáveis fortunas. Os membros do gabinete exibem surpreendentes aumentos de patrimônio, valorização de propriedades e investimentos milionários no exterior. No topo da lista de irregularidades se situa o próprio Macri, que apoia da presidência os turvos negócios de seu grupo familiar. Um indivíduo enriquecido às custas do erário público emite da Casa Rosada mensagens de transparência.

Ódio de classe

Os liberais consideram que a Argentina decaiu por seu divórcio do Ocidente. Imaginam o país como um afilhado da Europa casualmente localizado na geografia latino-americana. Supõem que o vírus do populismo o afastou de uma trajetória semelhante dos Estados Unidos ou do Canadá.

Porém, esquecem que as nações endeusadas também atravessaram etapas de intervencionismo estatal, proteção aduaneira, liderança personalista e escasso apego à limpeza republicana. Tampouco avaliam que tipo de inserção estampou cada país na divisão internacional do trabalho. Ignoram por completo o significado da dependência.

Os conservadores situam a origem da decadência nacional no abandono do projeto propiciado pela geração dos anos 80. Entendem que esse projeto ficou no meio do caminho, quando os pilares da civilização liberal foram erodidos pela barbárie local.

Porém, esquecem que o saudoso universo da oligarquia foi construído sobre as sofridas costas de camponeses, arrendatários e assalariados. Os latifundiários resolveram seus desperdícios com a expropriação desse esforço. Seus admiradores tampouco registram como o rentismo improdutivo assentou as bases do estancamento posterior.

A idealização dos grandes proprietários de terras impede registrar seus perduráveis rastros nas classes dominantes posteriores. Essa continuidade se verifica em um empresariado que reluta em investir e está habituado aos lucros rápidos.

Os neoliberais igualmente ponderam a enorme potencialidade dos argentinos para gerar prósperos empreendedores. Nunca explicam por que razão essas qualidades permanecem sob a superfície. Porém, também subdividem a encarnação dessas características em grupos sociais muito diferenciados.

Não estendem as virtudes que percebem nas classes altas aos empobrecidos. A elogiada criatividade dos capitalistas se transforma em avivada perniciosa, quando se corporifica em empregados públicos. A astúcia do banqueiro se converte em mesquinho proveito entre os trabalhadores e a conveniente malícia do endinheirado se torna má práxis nas mãos do trabalhador autônomo.

Essa hostilidade para com os pauperizados alcança seu auge na avaliação dos planos sociais. Os neoliberais estimam que seus receptores “não querem trabalhar” porque “vivem do erário público”. Denunciam “as mulheres que engravidam para obter o auxílio-criança” e os homens que “recusam o emprego” para manter os benefícios assistenciais.

Utilizam essas calúnias para fechar os olhos ante a miséria dos mendigos, que sobrevivem vasculhando o lixo. Em lugar de promover a solidariedade com os desamparados, culpam as vítimas de suas desventuras. Não querem registrar que ninguém escolhe a marginalidade. Os empobrecidos simplesmente não conseguem trabalho pela retração do mercado de trabalho, que impõe a conjuntura recessiva e a desindustrialização estrutural.

Inutilidade dos protestos?

Os neoliberais se irritam com os protestos que visibilizam a degradação social. Clamam especialmente contra a ocupação do espaço público pelos manifestantes. Porém, nunca julgam todas as mobilizações com o mesmo parâmetro. Enalteciam a participação cidadã quando as rotas eram cortadas pelos agrossojeiros ou as ruas ficavam sob controle dos “paneleiros anti-K”.

Habitualmente, reivindicam suas próprias marchas como exemplos de civilidade que não chateiam nenhum transeunte. Pelo contrário, as ações populares são apresentadas como desordens promovidas pelos indicadores que financia o Estado. Os participantes desses atos são retratados como ignorantes, que vão de um lugar para outro em troca de um choripán, para proferir gritos de ocasião. Essa contraposição entre cidadãos civilizados e hordas manipuladas já é um clássico da literatura conservadora.

Porém, a demonização dos piquetes se transformou também em uma obsessão do jornalismo cortesão. Estima que a liberdade de circulação deve primar sobre o direito a reclamar pela sobrevivência. Frequentemente convoca a “buscar outro método” de protesto sem apresentar sugestões sobre essa alternativa.

Outra variante mais elaborada do mesmo discurso assinala que “a década precedente de direitos” deve ser melhorada com um novo “decênio de obrigações”. Porém, divorcia esses complementos abstratos da vida cidadã do agravamento da miséria. As propostas mais agressivas retratam os manifestantes como “usurpadores” da população, sugerindo que formam um grupo demográfico distinto. Com essa desqualificação ocultam que os únicos chantagistas são os artífices do ajuste.

É evidente que os piquetes se generalizaram como forma de luta ante a falta de trabalho. A expulsão do circuito laboral empurra os excluídos a parar o trânsito para fazer valer suas reivindicações. Obviamente geram insatisfações aos que não participam de sua ação. Porém, esses inconvenientes afloram em qualquer luta e não são maiores que os enfrentados cotidianamente pelo grosso da população.

Os direitistas apresentam os piquetes como um esporte de militantes. Complementam essa bobagem com o chamado a pactuar negociações antes de cada protesto. Esta descoberta ignora que as marchas sempre estão precedidas por frustradas negociações. O mais frequente é a total omissão quanto aos sofrimentos dos despossuídos. Se não existe um clamor nas ruas, os altos funcionários nem sequer escutam as demandas. O mesmo ocorre com os meios de comunicação. Só visibilizam as reivindicações transformadas em exigências coletivas.

Porém, o mais importante é o resultado dessas lutas. A mobilização é o único antídoto efetivo à regressão social. Longe de constituir uma “resposta inútil”, introduz um limite ao desmoronamento das rendas populares. Nem tudo “segue igual” ao outro dia. Os protestos têm resultados imediatos e posteriores. Os planos sociais subsistem pela resistência e o corte dos salários teria sido muito maior sem luta. A ação é o único que aterroriza os poderosos.

A mobilização das ruas impede, além disso, a amnésia de tradições populares que ambiciona a direita para consolidar-se. A persistência desse legado explica os significativos níveis de militância e politização que imperam no país. Essa participação popular obstrui a estabilização de governos tecnocráticos, restringe a prepotência imperial estadunidense e limita a penetração da ideologia neoliberal.

Livre escolha do modelo capitalista?

Muitas inconsistências da visão liberal têm sido esclarecidas por seus críticos desenvolvimentistas. O olhar econômico heterodoxo, a tradição ideológica nacionalista e as posturas políticas progressistas refutaram numerosos mitos de seus adversários, com frequentes ridicularizações às simplificações dessa concepção.

Descreveram especialmente como os liberais repetidamente restauraram o modelo agroexportador ou o padrão de valorização financeira, em detrimento do desenvolvimento industrial. Destacam que a Argentina necessita a intervenção do Estado para apoiar seu crescimento, com proteção aduaneira, fomento fabril e hierarquização do mercado interno.

Essa visão ressalta corretamente a tensão histórica entre dois modelos, porém ignorando sua base comum no capitalismo dependente. Essa configuração determina a fragilidade dos distintos esquemas e sua variável primazia em função do contexto externo.

O modelo agroexportador despontou na primeira metade do século XX, quando a industrialização do centro requeria os insumos promovidos pelo Pampa. A substituição de importações decolou no marco keynesiano de entreguerra (e pós-guerra), que favorecia certo desenvolvimento das economias intermediárias. A valorização financeira irrompeu no cenário contemporâneo da globalização e precipitou a regressão latino-americana ao extrativismo exportador.

Caso se analisa o predomínio destes modelos com estreitos antolhos locais, resulta impossível explicar a mutante supremacia de cada um. A luta entre liberais e desenvolvimentistas sempre esteve condicionada pelo status periférico do país.

Os desenvolvimentistas (e seus discípulos “neo”) relativizam essa sujeição, sugerindo que cada país escolhe livremente o tipo de capitalismo vigente em suas fronteiras. Porém, é muito ingênuo supor que a Argentina decidiu esvaziar sua estrutura fabril, em contraposição à preferência coreana por um curso industrial.

Não tem sentido postular que eles optaram pela abertura seletiva, incorporaram bens de capital e nós pela regressão ao monocultivo da soja. O capitalismo global não funciona com essa simples convalidação de trajetórias nacionais. A preeminência dessas decisões induziria a todos os países a repetir o sendeiro da Suíça e a evitar o rumo do Haiti.

Os neoliberais esquecem que o capitalismo não oferece oportunidades de desenvolvimento a todos seus integrantes. Opera em um marco internacional estratificado, com margens de autonomia muito limitadas e variáveis, nas distintas regiões que circundam as metrópoles. O sistema se rege por princípios de crua competição e outorga prêmios muito seletivos aos ganhadores que sufocam adversários.

A Argentina padece com maior dureza das consequências desse sistema e da adversidade econômica atual da América Latina. Para piorar, sua velha burguesia nacional foi substituída por uma burguesia local com negócios mais diversificados e internacionalizados.

Alguns neodesenvolvimentistas reconhecem estas transformações, mas supõem que o fomento estatal do consumo igualmente empurrará os empresários a retomar o investimento. Omitem que essa receita não é viável quando os capitalistas privilegiam outro curso. Nesse caso, torna-se impossível substituí-los com a intervenção estatal mantendo o sistema atual. O capitalismo sem seus protagonistas é uma contradição.

A experiência kirchnerista

O ocorrido durante a década passada confirma as limitações de um simples projeto antiliberal para reverter o declínio econômico-social do país. O kirchnerismo tentou retomar um rumo neodesenvolvimentista, com menores ambições de reindustrialização, maiores contemplações para o agronegócio e crescente timidez frente aos financistas.

Diferente de outras experiências, contou com um período prolongado para ensaiar seu modelo. Certamente herdou o descomunal colapso de 2001, porém usufruiu do extraordinário início dos lucros, que sucedeu à desvalorização interna de capitais. Também aproveitou o vento externo gerado pelo super ciclo das matérias primas.

Porém, no lugar de remover as bases do subdesenvolvimento, confiou em sócios capitalistas que utilizaram os subsídios para evadir capital sem tributar investimentos. O resultado foi a preservação do perfil econômico extrativista, a estrutura industrial dependente e o sistema financeiro adverso ao investimento.

O kirchnerismo atenuou inicialmente os desequilíbrios da economia, mas ficou sem cartuchos quando o contexto internacional se tornou adverso. Nesse momento, o incentivo ao consumo deixou de funcionar e ressurgiu o déficit fiscal com alta inflação. Tentou um tardio e ineficaz controle de câmbios, eludiu a reforma impositiva progressiva e retomou o endividamento externo.

A avaliação crítica dessa gestão é atualmente ignorada por seus artífices. Limitam-se a contrapor a “década ganha” com o desastre do macrismo. Esse contraste salta à vista e resulta especialmente visível na evolução dos salários, no endividamento ou nas tarifas. Porém, não resolve as falências do decênio anterior.

A omissão do balanço conduz a supor que bastará repetir o que foi feito para retomar o crescimento. Nas terríveis condições atuais de endividamento e recessão essa expectativa é infundada.

A direita macrista não conseguiu supremacia eleitoral só pelos erros políticos, culturais ou de comunicação de seu adversário. O kirchnerismo falhou no plano econômico por manter os privilégios dos grupos dominantes e eludir as transformações requeridas para erradicar o subdesenvolvimento e desigualdade.

No novo cenário, a conquista dessas metas exige nacionalizar os bancos e o comércio exterior a partir de uma ruptura com o FMI. Essas decisões são indispensáveis para recuperar a soberania monetária e financeira. Os agudos problemas atuais não se resolvem com vagas exortações a reforçar a regulação estatal. Esses controles podem, inclusive, multiplicar as adversidades, se sustentarem os interesses dos grupos dominantes. O capitalismo financeirizado e agroexportador é uma tormentosa realidade que não se supera com ilusões no capitalismo inclusivo.

Encruzilhadas pendentes

Alguns ensaístas buscaram a explicação das comoções que afetam o país no DNA dos argentinos. Porém, é mais simples registrar que essas crises expressam a traumática inadaptação do capitalismo local aos novos parâmetros globais. Também é mais esclarecedor notar como as reações populares limitam os efeitos desses desajustes e permitem explorar caminhos de reconstrução do país.

Duas forças em conflito definem o devir da Argentina. O estancamento econômico potencializa a instabilidade política, acentua a fratura social e empurra à resignação. Os protestos confrontam com essa passividade e abrem rumos para a recomposição da vida nacional.

As crises frequentemente erodem as expectativas de encontrar algum remédio à deterioração argentina. As lutas populares recriam, em troca, as esperanças em encontrar essa solução. Nessa tensão, a inação e o entusiasmo se sucedem à medida do grande dilema: tolerar a regressão ou forjar outro horizonte a partir da resistência. O futuro se constrói nessa batalha cotidiana.

Claudio Katz é economista, investigador do CONICET, professor da UBA, membro do EDI.

(1) Apresentação no Encontro: “La Argentina hoy: la coyuntura actual en perspectiva histórica” [A Argentina hoje: a conjuntura atual na perspectiva histórica], UESAC, Universidade Nacional de Quilmes, 26-9-2018.
(2) Analisamos esse contraponto em Katz Claudio. Interrogantes de la era Bolsonaro [Perguntas da era Bolsonaro] 17-11-2018, www.lahaine.org/katz

Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2018/12/12/empobrecimiento-y-resistencia-las-peculiaridades-de-argentina/
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Categoria
Tag