A experiência inesquecível da doutora cubana Daimé no RN
Nuria Barbosa León
Granma Internacional
«O trabalho na Venezuela e no Brasil ajudou-me a crescer como médica e pessoa, além de reforçar minha convicção política», asseverou a doutora Daimé León Balmaseda, especialista em Medicina Geral Integral (MGI) e trabalhadora da policlínica Plaza de la Revolución de Havana.
De 2003 a 2008, trabalhou no Centro de Diagnóstico Integral La Maestranza, na cidade de Barcelona, no estado venezuelano de Anzuátegui. Em julho de 2016, atendeu à população rural do município de Lagoa d ‘Anta, no estado brasileiro do Rio Grande do Norte. Sobre sua experiência neste último lugar conversou com o Granma Internacional.
«Aprendi sobre a missão no Brasil porque a direção da minha policlínica convocou para uma reunião e explicou os detalhes do programa Mais Médicos, gerado no Brasil. No final, pediram nossa disposição e os cadastrados começaram a ser processados. Apenas aqueles com melhor desempenho profissional foram selecionados», relata Daimé.
«Em dezembro de 2015, fiz um curso de preparação de um mês em língua portuguesa, ministrado por dois professores de universidades brasileiras. Uma parte, consistiu em aprender puramente a linguagem e a outra, em assuntos da profissão. Então tivemos que passar por um exame muito rigoroso, preparado pelas autoridades sanitárias brasileiras. No exame oral deviam se demonstrar as habilidades na língua portuguesa com os termos médicos. Na redação, devíamos discutir temas médicos, referidos à medicina comunitária.
«Na chegada, o Ministério da Saúde do Brasil exigiu outra especialização em medicina comunitária. A universidade abriu uma plataforma virtual com abertura na segunda-feira ao meio-dia e fechamento na sexta-feira na mesma hora. Através de quatro módulos e cada um deles de quatro semanas, um professor, que não conheci pessoalmente, orientou-me a ler tópicos com tarefas avaliativas para desenvolver. Para concluir, defendemos uma tese de pesquisa médica relacionada às patologias frequentes em nosso trabalho».
Como aconteceu a chegada ao local no Brasil?
«Viajei em 23 de julho de 2016. Todos recebemos um dossiê com documentos legalizados para praticar a profissão. Continha os diplomas universitários, os de pós-graduação, especialização em MGI e os resultados dos exames dados no curso preparatório. Além de um histórico de saúde com vacinação atualizada».
«Então, a distribuição para cada município foi aleatória, realizada pelas autoridades sanitárias do Brasil. Com a lista de nomes designaram a equipe, sem fazer qualquer tipo de preferências e atendendo às necessidades de profissionais por cada local. Só foi respeitado que os jovens fossem a comunidades indígenas de difícil acesso e nos municípios mais próximos às capitais situaram as mulheres com alguma doença e alguns médicos mais velhos».
Nenhum dos cubanos escolheu o lugar onde queria trabalhar, enquanto os colegas estrangeiros e os brasileiros que se juntaram ao programa Mais Médicos escolheram o local de localização. Eles até ocuparam as vagas nos lugares de melhor localização geográfica e em cidades com certo desenvolvimento econômico».
Que condições o lugar tinha?
«Eu estive em um município de cerca de 7 mil habitantes, com alto índice de insalubridade e analfabetismo, dedicado à cultura da mandioca, com a qual fazem uma farinha como alimento básico. Também criavam gado em um clima seco com rios escassos. Algo impressionante é a juventude de seus habitantes, porque muito poucos ultrapassaram os 60 anos de vida».
«Lá trabalhamos dois médicos. Um colega frequentou a área urbana e eu me movia diariamente para povoados rurais próximos, em um transporte designado pela prefeitura».
«Nós enfrentamos patologias gastrointestinais, desnutrição em crianças e adolescentes, doenças de pele e picadas de animais peçonhentos, como cobras e escorpiões. A causa desses males está na alta exposição ao sol, falta de higiene, falta de comida e água potável».
«A vacinação é realizada através de campanhas em uma data específica do ano. Nem todo mundo descobre e, portanto, não vai, principalmente os moradores que vivem em lugares extremamente remotos. Há falta de um sistema de vacinação para dar cobertura total à população».
Onde trabalhou?
«No Brasil, existe um sistema de saúde pública com consultórios médicos instalados em diferentes cidades atendidos por uma enfermeira, um técnico de enfermagem e agentes de saúde, com uma vaga para um médico, que nunca está permanentemente empregado. Os médicos brasileiros trabalham principalmente em grandes cidades e aqueles que frequentam áreas rurais, fazem isso esporadicamente e em dias programados uma vez por semana ou a cada 15 dias».
«Trabalhamos toda a semana no horário das sete horas da manhã até as cinco horas da tarde, terminava com o último paciente que estava na fila. À enfermeira foi atribuída a responsabilidade de chefa. Seu trabalho era classificar os pacientes e fazer os controles clínicos. Estabelecemos programas de atendimento prioritário para verificar grávidas, lactentes, crianças e pacientes com diabetes, hipertensão e outras doenças. A balconista do consultório media pressão arterial e temperatura, sinais vitais, pulso e fazia a ficha clínica com os dados gerais. Tivemos um excelente relacionamento profissional.
«O consultório principal foi situado em um assentamento com ruas pavimentadas chamado Lagoa do Chico. Lá a enfermeira-chefa trabalhava, pois nas outras cidades embora o consultório fosse construído, eram mantidos fechados devido à falta de equipamentos de saúde».
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«Muitos pacientes vieram ao consultório, sempre houve um acompanhamento das doenças. Agendamos compromissos quantas vezes fossem necessários para examiná-los e ter certeza de que estavam curados. Esse procedimento foi novidade para os brasileiros. Por costume, o médico de lá os avalia em uma única ocasião, sem senti-los, prescreve os remédios e não os reconsulta.
«O nosso trabalho de assistência incluiu a visita às casas para recomendar medidas a serem tomadas na prevenção de doenças. Com esse procedimento pesquisamos doenças, detectamos mulheres grávidas sem atendimento médico e focos epidemiológicos».
Quais as doenças mais frequentes?
«Diagnostiquei casos de lepra, algo nunca visto em Cuba em mais de 20 anos como graduada. Assisti a uma paciente de 18 anos que começou a ter uma coloração marcante na pele, então teve uma perda de sensibilidade para corroer toda a epiderme com lepra. Também enfrentei um surto de tuberculose».
Como se relacionou com as famílias brasileiras?
«Conheci a maioria das famílias nas minhas comunidades. Em algumas casas ficaram impressionados com a minha presença porque nunca foram visitados por um médico. Eles eram moradores humildes e simples que ofereciam muito amor. Seu tratamento era muito afável».
«Quando nos viam com as batas brancas entrando no povoado, todos queriam que passássemos por sua casa. Muitos deles não tinham que comer e, no entanto, estavam procurando algo para oferecer. Transportei vários deles para um hospital para tratar sua condição. Eles esperavam por mim, mesmo que fosse para conversar. Atualmente, recebo e-mails porque já encontraram a maneira de se comunicarem comigo».
Quais índices de saúde diminuíram?
«Diminuiu a mortalidade infantil e materna, a incidência de focos epidemiológicos e aumentou a expectativa de vida ao nascer. Com a triagem das casas, os bebês com baixo peso ao nascer diminuíram e as gestações foram alcançadas até as 40 semanas. Também diminuímos as taxas de doenças crônicas não transmissíveis».
Como era o pagamento do salário?
«Assinamos um contrato de trabalho antes de viajar, onde foram especificados os termos legais do trabalho a ser executado. Em Cuba, pagam aos membros da família o salário na íntegra e mantêm a vaga de trabalho para quando retorne. Lá nos pagavam com cartão magnético um dinheiro que não variava em número, independentemente do valor do real (moeda brasileira) que era constantemente desvalorizado».
«Esse número alcançava para todas as despesas necessárias de comida, eletricidade, aluguel de casas, água, gás e outros. Mesmo muitos de nossos companheiros convidaram seus familiares para desfrutar de umas férias pagas com o que receberam, também percorreram algumas áreas do Brasil em férias».
Completou duas missões: uma na Venezuela e outra no Brasil, quais foram as semelhanças e diferenças entre elas?
-«Mais semelhanças do que diferenças. Ambas as missões foram realizadas em condições difíceis, em lugares inóspitos e remotos. Atendi populações vulneráveis com alto nível de insalubridade e analfabetismo. Muita violência em ambos os lugares».
«Eu tive que trabalhar em municípios onde as autoridades pertenciam ao partido de oposição ao governo de esquerda. No Brasil, o prefeito não queria os médicos cubanos e fez todos os tipos de ataques e ações para que nos tirassem de lá».
Por que os governadores não concordavam com os médicos cubanos?
«Quando chegamos já tinha sido dado o golpe de estado a Dilma Rousseff e Michel Temer estava no comando. A propaganda nos rotulava de militares e de proselitismo político em nosso trabalho de assistência. Insistiram em nos desacreditar como profissionais».
«Nós, sem fazer trabalho político e apenas cumprindo com nossas obrigações, pudemos demonstrar a essência humanista de trabalhar no Brasil. Nossa disciplina de atender a todos os pacientes, examiná-los e canalizá-los com os tratamentos médicos apropriados foi a melhor contrapropaganda que pudemos realizar».
«Nossos resultados foram tão evidentes que não havia nem o menor motivo para nos tirar. Eles sabiam que se adotassem uma medida arbitrária, a população ia se manifestar e a nenhum governador convinha as greves».
O que significa para você fazer esse tipo de trabalho internacionalista?
«Isso me ajudou a aprender. Vimos doenças erradicadas em Cuba e só podíamos tratá-las se estudávamos e procurávamos informações sobre elas, além de investigar as causas para combatê-las».
«Tivemos que enfrentar campanhas difamatórias da imprensa e da prefeitura do estado. Eles queriam distorcer o prestígio conquistado pela medicina cubana no mundo e nenhum de nós deu a eles esse prazer».
«Quando fui embora, os brasileiros choravam, disseram que iriam recolher assinaturas para protestar na prefeitura e até falaram em fazer uma missa para o meu breve retorno».
Ilustração: A doutora Daimé León Balmaseda atendendo a seus pacientes no 13ª consultório da policlínica Plaza de la Revolución, localizada na capital. Foto: José Manuel Correa
http://pt.granma.cu/cuba/2018-12-13/a-experiencia-inesquecivel-de-daime-no-rio-grande-do-norte