Ampliar a unidade! Mas em que direção?

imagemA firmeza estratégica e os desafios táticos para o novo ciclo de lutas

Giovanni Frizzo*

A tarefa de enfrentar o ultraliberalismo destrutivo das condições de vida e o caráter fascista do governo federal somente poderá perspectivar êxito se atrelados à firmeza estratégica de ruptura com a ordem do capital, portanto revolucionária e socialista. É certo que estamos diante de um cenário distinto das últimas décadas, pois o aprofundamento da crise do capital nos últimos quatro anos impacta no Brasil e na América Latina com força destruidora dos direitos e das soberanias nacionais de forma mais abrupta. O novo padrão de acumulação capitalista, originado com a crise mundial, é composto necessariamente de retrocessos civilizatórios que vão desde a esfera econômica produtiva, com o desmonte de direitos trabalhistas, previdenciários e do serviço público, até a esfera dos direitos humanos com medidas de restrições à liberdades, repressão à lutas sociais e fortalecendo as ideias patriarcais racistas, xenofóbicas e homofóbicas como política de Estado.

Aparentemente, há uma certa concordância nesta caracterização política e econômica  do projeto que derrotou os governos de conciliação de classes do PT e a implementação das políticas neoliberais com mais intensidade e desrespeito às regras do “jogo democrático” da institucionalidade burguesa. Aliás, esta é uma lição importante para a classe trabalhadora: a burguesia demonstrou que não tem nenhum constrangimento de operar também por fora da ordem para impor seu projeto antipopular. A grande questão a ser resolvida é: como as organizações da classe trabalhadora responderão às ofensivas contra o povo trabalhador neste momento em que a sua própria existência corre risco?

Uma palavra de ordem se repete nos círculos de organizações políticas progressistas ou socialistas: ampliar a unidade. E esta é, sem dúvida, fundamental para o enfrentamento. Porém, por si só, esta palavra pode se esvaziar facilmente em seu conteúdo de acordo com a direção dada à elas. Para ilustrar isso, basta que façamos outra pergunta como desdobramento da primeira: ampliar a unidade para qual direção? As diferentes análises da conjuntura recente nos dão pistas para compreender o tamanho dos desafios postos para a classe trabalhadora. Pois, a história do movimento comunista internacional e das lutas sociais – seus êxitos e limites – sempre se defrontaram com dois inimigos: a elite dominante burguesa (nas suas formas distintas de cada momento histórico) e o oportunismo conciliatório no seio das lutas dos trabalhadores e trabalhadoras (oportunismo muito bem caracterizado por Lenin em “O Que Fazer?”, no qual aponta que os oportunistas querem levar a classe para o pântano).

Para nosso quadro, é fundamental compreender que estamos vivenciando um período de mudança de ciclo de luta sociais, demarcado especialmente pelas grandes jornadas e manifestações desde o agravamento da crise do capital no Brasil, que pode ser localizada a partir de 2013. Ainda de forma embrionária, o novo ciclo de lutas sociais se abriu cheio de contradições internas, bastante heterogêneo e sem direção política unitária, necessita aprofundar o sentido de ruptura com a ordem do capital em sua estratégia, combinando as diferentes táticas de cada situação que se apresenta. Porém, a perspectiva conciliatória oportunista, através de seu malabarismo discursivo, caracteriza que estas mesmas lutas sociais foram dirigidas pelo imperialismo e com caráter conservador que culminaram com o impeachment de Dilma Roussef e com a vitória de Bolsonaro nas Eleições de 2018. Tal narrativa se afirma na memória seletiva (de que seus governos foram excelentes para todo mundo, esquecendo-se do sentido também destrutivo para a classe trabalhadora) e na tentativa de salvar o seu projeto derrotado pela ofensiva reacionária tanto no impeachment como nas eleições.

Com todas as formas legais e ilegais, a força empresarial que levou Bolsonaro à vitória canalizou boa parte da indignação popular com a crise econômica e política que assolou o país, para um projeto que se diz antissistema, mas se apresenta cada vez mais atrelado ao jogo político das oligarquias que comandam o país a décadas. Como a burguesia não joga só no terreno da ordem, mas também por fora dela, fizeram o que fizeram para que Lula não pudesse ser candidato, pois este conseguiria também canalizar a indignação popular para uma vitória eleitoral. Neste caso, a pergunta para o oportunismo é: seria o conservadorismo da sociedade brasileira que elegeria Lula? Pensamos que não, pois não foi apenas o conservadorismo que determinou o resultado eleitoral.

É fato que as organizações socialistas não conseguiram levar a cabo uma direção política à indignação popular em um patamar de elevação das lutas sociais para enfrentar a contraofensiva reacionária. E isto precisa ser compreendido pedagogicamente para não incorrer em novas derrotas pelos mesmos motivos.Outro elemento a ser compreendido é que não são as disputas de narrativas que levarão adiante qualquer processo de enfrentamento. A luta de classes se localiza em um terreno concreto da vida em que o preço do feijão determina mais a consciência do que mil tuítes de um intelectual burocrata qualquer.

No terreno fértil das narrativas conciliatórias oportunistas, a unidade ampla se circunscreve sob uma frágil sustentação de combater o fascismo apenas com ações referentes a liberdade de seus presos e aos denunciados nas arbitrárias operações políticas e judiciais que, supostamente, pautam a corrupção. No limite, esboçam algumas palavras de ordem de combate a agenda econômica regressiva, mas na prática concreta as burocracias sindicais e estudantis atuam para barrar o avanço das lutas sociais. Diversos são os exemplos recentes que ilustram isso, como o cancelamento das Greves Gerais convocadas em 2018 e as políticas de desmonte do serviço público e reformas da previdência que os governos estaduais de conciliação de classes estão operando pelo país.

A própria caracterização do projeto fascista do governo Bolsonaro precisa ser esmiuçada nas ações de combate ao projeto burguês. Pois a defesa abstrata de democracia e contra o fascismo pouco diz a boa parte da massa da população que ainda está encharcada de esperança de grandes mudanças sociais no país. E permanecerá algum tempo assim, envolvida em falsos indicadores econômicos ou sociais oficiais, em frases do seu presidente que destilam ódio e até mesmo em alguma sensação de diminuição do desemprego. Através da reforma trabalhista e seus desdobramentos como a terceirização, é possível que o desemprego diminua, de forma modesta, por um curto período de tempo com empregos de precariedade extrema. E mesmo com tamanha informalidade, a sensação de uma pequena parte de desempregados que agora terão algum tipo de renda (mesmo que inconstante) fará com que pouco importe se o governo é fascista, liberal ou qualquer outra caracterização, pois o que está em jogo para o trabalhador é sua sobrevivência e está disposto a qualquer ideologia por isso.

Aliada a este discurso, a questão do combate à violência é de forte apelo populista. Especialmente para a classe média e suas aspirações individualistas de sucesso irrealizável, pouco importa se as polícias irão matar antes de perguntar quem é bandido, pouco importa se há uma guerra civil instaurada nos morros e periferias, desde que não cheguem perto de seu pequeno patrimônio adquirido as custas de seu endividamento. Se será com intervenções militares que isso aconteça, pouco importa para estes setores que apoiarão tais medidas repressivas, incluindo a criminalização das lutas sociais. Portanto, uma vez mais, pouco importará uma luta antifascista abstrata enquanto seu individualismo persevera.

Não é por outra razão que o bloco de sustentação política do governo – seus assessores e empresários – passam disseminando ódio contra direitos humanos, perspectivas de esquerda e organizações políticas que se contrapõem a ofensiva reacionária. Precisa manter o inimigo vivo para justificar suas ações anti-populares que somente beneficiam a burguesia. Essas justificativas são centradas na crise política, na corrupção do PT e disseminando inverdades de “ditaduras comunistas”.

A necessária unidade das forças sociais para enfrentar o fascismo ultraliberal, portanto, precisa colocar a agenda econômica e dos direitos em primeiro plano. Primeiro porque não estão dissociadas e, segundo, porque é exatamente esta agenda que ruirá ainda mais as condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras em médio prazo. A agenda de destruição dos serviços públicos, privatizações e ataque aos direitos (como a previdência, saúde e educação públicas) são insustentáveis para qualquer governo. O endividamento, a miséria e o aumento da violência urbana e no campo pode retomar a indignação popular também contra seu próprio governo eleito. E essa indignação popular precisa ter direção organizada pelos setores que nunca saíram das ruas e das lutas, em uma perspectiva de ruptura com a ordem, e não mais de retomada de um projeto fracassado de conciliação oportunista. É certo também que esta direção organizada precisa ter inserção nas massas e para isso a necessária constituição de frentes/fóruns é fundamental, de forma ampla a partir de um programa de frente única contra os ataques aos direitos e às liberdades, apontando um horizonte que supere as lutas defensivas para uma agenda de ofensiva da classe contra a burguesia e oligarquias que transformam o país em um grande balcão de negócios privados.

Embora, neste momento, se perceba uma certa coalizão das frações burguesas em torno das medidas retrógradas de Bolsonaro, há uma possível tendência de que as suas contradições internas serão mais explícitas a partir do momento em que a destruição da previdência e dos serviços públicos, as privatizações, o avanço do latifúndio e a completa financeirização de capitais se consolidar ou não avançar de acordo com a sanha capitalista de mercantilizar o país. E este será o momento decisivo em que diferentes forças sociais buscarão saídas. A burguesia pode descartar Bolsonaro (nas próximas eleições ou mesmo interrompendo seu governo) e estabelecer outra alternativa; a conciliação de classes apresentará seu pacto liberal republicano de apassivamento que nada serve para a maior parte da população; e a classe trabalhadora, desde que organizada desde já, pode também insurgir-se como força popular capaz de levar a cabo uma alternativa socialista consolidada nas massas de trabalhadores e trabalhadoras. 

Toda essa perspectiva, com suas possíveis tendências, se fundamentam nas diversas experiências históricas, tanto de vitórias da classe trabalhadora como também das formas de operar da burguesia em diferentes contextos e situações postas em que prevaleceu a via prussiana, isto é, recomposição das forças burguesas para mudar a forma de operar a sua principal estrutura de poder: o Estado. Como a dinâmica da luta de classes não pode ser captada em análises universais e absolutas, se trata aqui de possibilidades e tendências em que, uma vez mais, a expressão “golpear juntos, marchar separados” se redobra de sentido. Derrotar o ultraliberalismo fascista e superar o oportunismo expresso na estratégia democrático-popular requentada, que visa o retorno à institucionalidade como projeto de poder de gestão da ordem burguesa, é a grande tarefa da classe trabalhadora por dentro das forças sociais que se proponham a enfrentar a terrível quadra histórica que vivemos. É certo que estamos ainda muito longe disso, mas para percorrer a longa jornada é preciso dar o primeiro passo, e esse determinará a direção e o horizonte de nossa marcha.

*Professor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e militante do PCB – RS

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