Dissensos na estratégia burguesa internacional

imagemDissensos na estratégia política e econômica da burguesia internacional

Por Luís Fernandes[1]

A crise de 2008 e os recentes sinais de estagnação e, até mesmo, recessão da economia mundial para os próximos anos fazem emergir dissensos no próprio campo conservador nas estratégias de dominação da burguesia internacional. Para além do aprofundamento da crise econômica, em especial nos países dependentes, essa crise se relaciona com o esfacelamento dos Estados nacionais e enfraquecimento das liberdades e instituições democráticas oriundas da própria democracia burguesa.

Infelizmente, para nós brasileiros, a ascensão de um governo de ultradireita cujo programa econômico se norteia pela radicalização de políticas austeras, como as privatizações de empresas públicas e a entrega de recursos naturais, desregulamentação do mercado de trabalho e a aceleração da desindustrialização da economia nacional, concomitante com uma nova contrarreforma da máquina estatal a fim de estruturar ainda mais o predomínio da acumulação financeira e o ajuste fiscal estrutural, nos faz parecer que os preceitos da ortodoxia neoliberais são inquestionáveis e imutáveis.

Longe de esgotarmos o tema e nos focarmos exclusivamente no debate econômico em si, pretendemos nesse pequeno artigo chamar atenção para o crescente dissenso do paradigma neoliberal, mesmo entre conservadores, sobre os rumos do capitalismo. Até então, principalmente após o fim da URSS e das experiências socialistas no leste europeu, a contrarrevolução monetarista ganhou um novo fôlego, o pensamento único ganhou novos adeptos e o neoliberalismo parecia ser o fim da história. Mesmo as experiências progressistas na última década, com graus diferentes de composição e radicalização, majoritariamente foram incapazes de reverter estruturalmente as bases da acumulação neoliberal. Nesse sentido, a projeção que economistas como Paul Krugman e Thomas Piketty ganharam nos últimos anos é algo que não deve ser descartado.

Nos EUA, em especial no interior do Partido Democrata, ganham notoriedade grupos de pesquisadores e militantes em torno da “Teoria Moderna Monetária” (MMT). A MMT questiona alguns dogmas neoliberais como a capacidade de endividamento do Estado, função da moeda e a soberania dos Estados Nacionais e a questão do déficit público. Criada por influência dos papelistas e economistas pós-keynesianos, a MMT defende que o Estado, ao adquirir bens e serviços e remunerar funcionários públicos, não gasta a moeda que recebeu através dos impostos, uma vez que o Estado usa a moeda que ele próprio emitiu.

A função dos impostos não é financiar os gastos do Estado, uma vez que o Estado se autofinancia emitindo moeda, mas queimar a moeda excessiva, retendo o poder de compra da sociedade e evitando a aceleração da inflação. No Brasil, um dos principais intelectuais formuladores do Plano Real, André Lara Rezende, tem sido o grande divulgador dessas ideias por meio de colunas no jornal “Valor Econômico” e diversas conferências. Além disso, muitos militantes e organizações da esquerda brasileira já declararam simpatia por tais ideias, afinal, num ambiente onde prospera dogmaticamente o financismo e o pensamento neoliberal, qualquer dissenso que promova estímulos ao investimento público e a retomada da capacidade diretiva do Estado é um importante contraponto. Na Europa, o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi[2] , reconheceu a necessidade de examinar e abrir diálogo com parte das ideias da MMT.

Nas últimas semanas, o novo livro de Thomas Piketty foi assunto em diversos círculos europeus e estadunidenses, assim como na imprensa brasileira. “Capital e Ideologia” será lançado no fim do ano, no Brasil. Desde 2013, os estudos críticos à desigualdade social de Piketty ganharam notoriedade internacional. Seu programa em defesa de um maior controle dos capitais, em especial financeiro, e a elaboração de uma reforma tributária progressiva sobre a propriedade privada e o grande capital é visto como “radical” pelos apologistas da ordem neoliberal.

Outra manifestação relevante foi a do jornalista conservador do Financial Times, Martin Wolf[3]. Wolf sustenta que o capitalismo rentista prejudica a democracia liberal. O principal problema da economia norte-americana não seria a competição com a China, mas sim a falta de concorrência e a baixa produtividade, tendência que a atividade financeira, segundo o jornalista, só vem potencializando.

Até mesmo um pequeno grupo de bilionários estadunidenses, liderados por George Soros, lançou um manifesto aos presidenciáveis daquele país reivindicando a taxação das grandes fortunas[4]. Dados de 2017 estimam que mais de 140 milhões[5] de pessoas nos EUA vivem na pobreza. As políticas de desoneração fiscal em prol dos grandes monopólios de Donald Trump aumentam essa tendência.

Obviamente, a constatação desses problemas e o surgimento de “novas” ideias no campo conservador e reformista possuem uma base material. A resposta à crise, principalmente no centro capitalista, tem sido “fora” da dogmática neoliberal e reforçando as hierarquias de poder no interior do sistema imperialista. Nos EUA, a resposta à crise foi a injeção de dólares no sistema financeiro e no “salvamento” de grandes companhias de automóveis como a General Motors e a Chrysler. Já sob o governo Trump, aumentou-se o protecionismo em benefício de diversos setores da economia estadunidense e desonerações ficais aos grandes capitalistas. Em países como a Alemanha, e subalternamente França e Itália, tenta-se via Estado a conformação de uma nova onda de investimentos tecnológicos e a fortalecimento das “campeãs nacionais”, além, é claro, de preservar as desigualdades econômicas e financeiras na zona do euro.

No campo contra-hegemônico ao centro imperialista, a China, numa perspectiva milenar de desenvolvimento não ocidental e dirigida pelo Partido Comunista, implementa uma grande rede estatal de proteção social, expande investimentos diretos na África e América Latina e é a grande compradora da dívida interna norte-americana. Através de projetos globais de exportação de capitais como a rota da seda, tenta progressivamente mudar o eixo dinâmico da acumulação mundial e a divisão internacional do trabalho, ampliando sua influência regional, sua aproximação com a Rússia e a União Europeia, assim como aumentar seu superávit comercial com a América Latina. O modelo chinês pode não ser considerado socialista, no entanto, está bem distante do neoliberalismo.

Em suma, a perspectiva neoliberal sofreu abalos, ao menos parcialmente, no centro imperialista, assim como a emergência de modelos de desenvolvimento não neoliberais como o russo e o chinês incomodam o status quo. Para além de abalos, principalmente para parte dos conservadores, mudanças no paradigma econômico seriam necessárias também para “salvar” a democracia burguesa dos “extremismos” de direita e de esquerda.

Mesmo ainda sem maiores bases de massas em muitos países, a esquerda anticapitalista, em especial comunista, sofre com as tentativas de isolamento e estigmatização. A última, foi a vergonhosa resolução da UE na qual culpabiliza a Alemanha nazista e a URSS pela eclosão da segunda guerra mundial. Obviamente, o fundo desses dissensos econômicos também são políticos. Parte do pensamento burguês já identificou que a radicalização da acumulação predominantemente financeira e os atuais rumos geopolíticos dos EUA agravarão o cenário de crise e potencializarão a base material para a ascensão da ultradireita. Já na periferia do sistema, na carência de um real contraponto político e social, o que predomina é uma radicalização das expropriações através de privatizações, desregulamentação do mercado de trabalho, guerras, apropriação das riquezas naturais, roubos e fraudes da acumulação financeirizada.

O papel das forças populares e revolucionárias nesse cenário

A crise contemporânea é a crise da acumulação neoliberal, sob hegemonia norte-americana. Segundo Mészáros, a crise atual teria dois traços específicos da dinâmica do capitalismo contemporâneo: ela acentua o caráter destrutivo da produção capitalista, de modo que o metabolismo social comandado pelas forças do capital faz predominar tendências altamente destruidoras das forças da natureza e obstruindo parte da reprodução social; e, por outro lado, o caráter rastejante da crise, iniciada na década de 1970, sobressai em detrimento da sua forma cíclica de se expressar.

No entanto, tal afirmação, inclusive para Mészáros, não significa uma crise terminal do capitalismo, nem mesmo a existência de um período (breve) de crescimento econômico. A derrota política da experiência política na URSS e no leste europeu representou uma nova correlação de forças no mundo. Em linhas gerais, a produção marxista sobre o tema acumulou cinco grandes características sobre o capitalismo contemporâneo: 1) o processo de reestruturação produtiva que ajudou a reduzir o tempo de rotação do capital, elevando a taxa anual de mais valia; 2) mudanças estruturais no mercado de trabalho, pró-forças do capital, nos países centrais e periféricos; 3) aumento do valor produzido pelos países periféricos apropriado pelos centros imperialistas por meio do acirramento da concorrência entre as empresas, ou então, por meio de mecanismos espoliativos como privatizações, ou, ainda, por formas de remessa de recursos como serviço da dívida externa e transferência de lucros e dividendos, em função do investimento direto estrangeiro; 4) expansão de mercados através da liberalização comercial e financeira e 5) o predomínio da atividade financeira na acumulação capitalista.

A acumulação predominantemente financeira, no curto prazo, gera (muitos) lucros para os capitais, mas provoca o empobrecimento dos trabalhadores e agrava as contradições no seio do capitalismo como um todo, acabando por conduzir a situações de sobreacumulação, que configuram crises de superprodução, cujo risco de ocorrência é tanto maior quanto mais acentuado e acelerado for o desenvolvimento das forças produtivas que acompanha o desenvolvimento científico e tecnológico.

O economista inglês Michael Roberts, em recente artigo, publicou uma interessante crítica às propostas econômicas de tendências da MMT e aos neokeynesianos. Segundo Roberts, politicas de flexibilização monetária e estímulo fiscal possuem limites dentro da atual crise do capitalista, em especial sobre o impacto dos gastos públicos na dinâmica do crescimento econômico. Para Roberts, os governos podem simplesmente imprimir o dinheiro e depois gastá-lo em projetos úteis. Mas todos concordam em que a “flexibilização fiscal” é a resposta para restaurar o crescimento, o investimento, o emprego e rendimentos numa economia capitalista . O governo empresta ou imprime dinheiro, e os capitalistas e trabalhadores gastam. Uma vez restaurado o crescimento e alcançado o pleno emprego e os rendimentos em crescendo, qualquer serviço da dívida pode ser financiado e pode-se fechar a torneira do dinheiro do governo e moderar qualquer possível inflação se a economia estiver a “super aquecer”[6].

A crítica de Roberts nos parece correta, ainda mais num contexto de uma economia capitalista sob hegemonia financeira. No entanto, é preciso diferenciar as políticas de estímulo e investimento público. Mesmo entre os reformistas, as políticas de desoneração fiscal do grande capital são um fracasso na geração de investimentos e crescimento econômico. O fracasso da experiência do governo Dilma, no Brasil, tido por alguns como um “ensaio desenvolvimentista”, nos ensina isso.

No entanto, diante do aumento dos dissensos no campo conservador e a emergência de novas ideias reformistas como as de Piketty, qual a melhor forma de intervenção nesse cenário por parte das forças populares e revolucionárias? Longe de esgotar o debate, destacamos necessariamente que essa intervenção partiria de dois pressupostos. O primeiro, longe de qualquer sectarismo e dogmatismo, devemos evitar a reprodução de um pensamento colonialista mesmo no interior da esquerda. A mera transposição mecânica de ideias contrárias e favoráveis a essas “novas” tendências não nos ajudará nessa caminhada.

É preciso compreender que, nos marcos capitalistas, o fortalecimento de ideias e medidas antineoliberais e pró fortalecimento dos Estados Nacionais no centro imperialista também podem coexistir com a radicalização do neocolonialismo e expropriação do excedente econômico na periferia. Outro risco, principalmente ao negarmos transposições mecânicas e a validade de parte desses dissensos, seria a de incentivar uma esquerda autocentrada, mais preocupada em comentar e disputar o limitado espectro do campo progressista a reoxigenar suas táticas e estratégia de acordo com as mudanças nos marcos da própria dominação capitalista.

O segundo pressuposto é que, ainda mais nos países dependentes que sofreram uma desestruturação de suas forças produtivas com o neoliberalismo, a revitalização do debate sobre planificação econômica, papel do Estado e formas de participação e controle popular da economia nacional é um esforço impreterível e coletivo que podemos e devemos tentar na atual quadra histórica.

Não serão os Estado Nacionais enfraquecidos, corrompidos e ainda sob forte amarras jurídico-políticas neoliberais capazes de dirigir um amplo programa de investimentos públicos diretos a fim de garantir a modernização do aparato produtivo, crescimento da produtividade, sustentabilidade e bem-estar para a maioria da população, assim como não devemos nutrir esperanças em civilizar as burguesias e oligarquias dos países periféricos. Os atuais dissensos nas estratégias da burguesia merecem atenção e estudo de todos nós; no entanto, as forças populares devem intervir nesse debate com independência.

[1] Professor de História IFSP e membro do comitê central do PCB.

[2] https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-09-23/draghi-says-ecb-should-examine-new-ideas-like-mmt?fbclid=IwAR2aYQxe_adlNoiqqruDE7-LKtlPHigTVUH_sfCrkOzxEdvGg0msR8VJF9s

[3] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/09/por-que-o-capitalismo-rentista-prejudica-a-democracia-liberal.shtml

[4] https://www.infomoney.com.br/carreira/soros-e-outros-bilionarios-pedem-imposto-sobre-grandes-fortunas/

[5] https://exame.abril.com.br/mundo/mais-de-140-milhoes-de-pessoas-sao-pobres-nos-estados-unidos-denuncia-ong/

[6] Ver: https://www.resistir.info/crise/m_roberts_19ago19.html