A divisão e a fratura
Mauro Luis Iasi
O Brasil é um país fraturado. É mais que um país dividido, pelas desigualdades sociais, pela injustiça e pela violência. Trata-se de uma sociedade cindida em interesses opostos, antagônicos e inconciliáveis. Mas, qual a natureza destes interesses? Seriam meras divergências de pensamento, compreensões distintas de como poderíamos enfrentar as chagas que nos dividem, seria de ordem moral e ética? Acreditamos que não.
Nosso país está fraturado porque se chocam interesses antagônicos de classe. De um lado os proprietários privados de meios de produção que compram e exploram a força de trabalho, de outro, aqueles que só tem a força de trabalho para vender. Entorno destas classes fundamentais se desdobram diversos segmentos e frações, seja pela natureza da atividade desenvolvida (indústria, agrária, comercial, bancária, etc.), seja pela função que ocupam na ordem burguesa (burocracias estatais, aparatos repressivos, instituições midiáticas, religiosas, educacionais, etc.). Da mesma forma, no campo das classes trabalhadoras, além dos ramos econômicos, temos aqueles que se empregam e aqueles que compõe o exercito de reserva, a superpopulação relativa.
Existem segmentos que não se encaixam nos campos das principais classes em luta, porque compõe outras classes, como é o caso do campesinato, ou dos segmentos médios que formam aglomerados heterogêneos que ora tendem para uma posição ao lado das classes dominantes, ora para o campo dos explorados.
Parece reducionismo apontar que os interesses das classes estariam no fundamento da divisão da sociedade e do caráter antagônico deste conflito. Várias teorias tem apontado para uma nova forma de conflitualidade na sociedade contemporânea que não seria necessariamente de classe, como a sociologia de Ralf Dahrendorf ou as teses de Habermas, ou ainda as diversas teses sobre os aspectos identitários, tais como as questões raciais e de gênero, a religiosidade, a sexualidade e os diversos aspectos culturais e regionais, entre tantos outros.
Não devemos desconsiderar a importância destes aspectos e o fato que eles estão de fato presentes na dinâmica de conflitos, nas diferenças e antagonismos que marcam nossa sociedade, da mesma forma que a flagrante injustiça que se manifesta no preconceito e na opressão sobre tais segmentos, assim como sua capacidade de mobilização e ação política. Então, porque afirmar a centralidade de classes?
Estamos convencidos que a centralidade das classes não é uma opção subjetiva, uma escolha, ou nos termos weberianos, uma afinidade eletiva. Vejamos de forma mais detida a questão.
A formação social brasileira, o que implica necessariamente sua história e sua manifestação contemporânea, assumiu a forma de uma sociedade capitalista dependente e uma particular sociabilidade burguesa que lhe corresponde. Estamos inseridos de forma subordinada no modo de produção capitalista mundial que é a expressão do máximo desenvolvimento dos monopólios e do imperialismo. Neste contexto somo uma área de exportações de capitais, uma plataforma de ação do capital imperialista, nos termos de Virgínia Fontes, e isso implica em dizer que o capital passa por aqui para valorizar-se, aproveitando-se das particularidades de nossa formação social.
Além dos baixos salários, aspecto fundamental para a manutenção das taxas de lucro em patamares aceitáveis para a valorização, é necessária uma base material, uma infraestrutura (energia, transportes, comunicações, etc.) e condições gerais de manutenção da ordem e de reprodução (políticas de segurança pública, serviços essenciais, mercado interno, etc.).
Como a riqueza aqui produzida, assim como a riqueza natural disponível para o saque, acaba fluindo para as necessidades da acumulação e valorização do capital imperialista, uma das características de nossa formação social é a estrutural formação de uma força de trabalho que recebe no máximo o limite de sua reprodução, quando não na maioria das vezes abaixo disso.
Torna-se funcional para a superexploração a apropriação de estigmas e preconceitos, tanto no sentido ideológico de manutenção da ordem e de justificativa de uma criminosa concentração de renda, riqueza e propriedades, como na manutenção e reprodução da ordem. Daí a funcionalidade do preconceito e da opressão sobre mulheres, negros, migrantes nordestinos, entre outros.
De outra parte, a ordem excludente e predatória do capitalismo plenamente desenvolvido, precisa “marginalizar e excluir” segmentos estigmatizando-os, como é o caso das periferias, das diversidades de manifestação da sexualidade, de formas culturais em confronto com as consideradas aceitáveis, o uso de drogas, religiões que não se encaixam na subjetividade ocidental cristã, etc.
Vejam, nenhuma destas formas é diretamente ligada as determinações da ordem capitalista, muitas delas, como o caso do patriarcado e o racismo, são muito anteriores à ordem burguesa, no entanto elas não se mantem por algum tipo de déficit de racionalidade ou insuficiência moral, mas pela sua funcionalidade para o capital.
Como o interesse do capital e de suas personificações é a manutenção e garantia da ordem fundada na valorização do valor e sua acumulação privada, ordem que beneficia de fato a segmentos muito minoritários, precisa embrulhar seus interesses de forma ideológica, isto é, apresentando seus interesses particulares como se fossem universais. No discurso ideológico não se trata de garantir as condições para a acumulação provada da riqueza, mas de manter as condições “econômicas” para o país crescer, não se trata de garantir a ordem da propriedade privada e proteger a riqueza de poucos, mas de garantir a “segurança pública”, não se trata de manter os enormes lucros do capital financeiro, mas de “sanear o Estado”, e assim por diante.
Ora, a questão central é a quem interessa manter esta ordem? Evidente que é uma ordem branca, machista, cristã, homofóbica, mas o centro de seu interesse é manter suas taxas de lucro e garantir a acumulação e a propriedade privada. Para as classes dominantes os preconceitos são funcionais, mas contingentes, isto é, são úteis à exploração mas ela pode ocorrer sem eles. O mesmo não ocorre com a propriedade e as relações sociais de produção, uma vez que sem elas a produção do capital não se dá.
No entanto, nos marcos do capitalismo dependente, os preconceitos e opressões se tornaram mais que contingentes, assumiram forma estrutural na dinâmica particular da exploração capitalista aqui presente. As formas ideológicas assumem, necessariamente um aspecto de formalidade, nos limites de uma igualdade jurídica precária, porque a exploração exige formas de opressão (por exemplo de gênero ou etnia) que assumem forma constitutiva da classe e de seus interesses.
Eles querem e precisam manter, nós queremos e precisamos mudar. Não há campo possível de consenso.
Mauro Iasi é membro do Comitê Central do PCB