O atentado e a fascistização da sociedade
Atentado protofascista evidencia escalada de terror e violência no primeiro ano de Governo Bolsonaro
Por F. Bezerra
Um dos efeitos sistêmicos da crise econômica e política que se agravou nos anos que precederam as jornadas de Junho de 2013, chegando ao ápice em 2016 com o impeachment de Dilma Roussef, foi a aumento acelerado de manifestações da cultura conservadora em diversos patamares: morais, ideológicos, eleitorais, jurídicos e econômicos.
O avanço das reformas neoliberais contribuiu para a expansão dessa onda conservadora e dela se retroalimentou. Tais manifestações foram produzidas em especial no plano ideológico, através da associação midiática e tautológica relacionando o denuncismo da corrupção, o aparelhamento do Estado e desvios dos governos petistas, em uma relação de causa e efeito que justificasse a crise econômica, o aumento do desemprego e a piora da qualidade de vida da população.
Já fizemos esse devido balanço ao compreender que a correlação de forças externas e internas havia se alterado de tal modo que a burguesia rentista e dependente do mercado financeiro não se interessava mais em manter o pacto social promovido por mais de uma década com o Partido dos Trabalhadores. E como em toda crise econômica, por pior e mais avassaladora que seja a sua dimensão, sempre se abre uma janela de oportunidades ao Capital. O desmonte do Estado através de privatizações de bens e serviços públicos, a perseguição aos servidores, o ataque aos direitos e conquistas sociais e ao conjunto da classe trabalhadora têm sido a tônica mais agressiva das chamadas “reformas” e ajustes neoliberais nesse período.
O discurso moralista e ultraconservador associa-se à ideologia neoliberal de Estado mínimo – e essa tem sido a tática na maioria dos países onde essa onda conservadora tem evoluído -, destravando uma agenda de ataques que ainda não haviam sido devidamente complementadas no Brasil. O fruto inevitável desse romance dantesco é a gestação e o parto de um cenário cada vez mais intolerante, repressor, arbitrário e reacionário em todas as suas dimensões, pois a redução de direitos sociais, os ataques às parcas conquistas da Constituição de 1988 associados ao aprofundamento da crise estrutural do Capital, eleva a temperatura da Luta de Classes, expondo os limites da sociabilidade do Capital. Nesse contexto, a alternativa fascista é o contraponto à política de conciliação de classes que outrora foi tolerada até certa medida, mas que já não mais garante ao Capital, frente às exigências das contrarreformas, sustentar o status quo dessa mesma sociabilidade.
Aqueles que ainda alimentam ilusões com um novo pacto social, batizado seja lá como for – “Democrático-Popular”, “Neodesenvolvimentismo”, não mais encontram eco do outro lado do rio, pois, enquanto houver fôlego para a implementação das contrarreformas com vistas a assegurar o nível de lucratividade desejado, a burguesia brasileira manterá apoio a essa dinâmica em curso.
Não há nada de novo até aqui se levarmos em conta que essa combinação, guardada as devidas proporções, já fora efetivamente percebida nos anos 20 e 30 do século passado, através dos movimentos fascistas (Itália e Espanha) e nazista (Alemanha) produzindo governos e regimes autoritários que associaram, por um lado, o aumento e a sofisticação do aparato repressivo frente às contradições sociais inerentes ao aprofundamento das crises capitalistas e, por outro lado, o desenvolvimento de um sofisticado arcabouço ideológico e psíquico que reunia e reforçava o controle social através da reificação do sentimento de pertencimento coletivo pautado em simulacros da pátria unida acima das tensões de classe. Mesclavam-se, em um mesmo amálgama identitário, a defesa da Nação, a moral de base religiosa e percepção da propriedade como fruto digno de quem a conquistou pelo merecimento do trabalho.
Há muitas similitudes no cenário político brasileiro que nos revelam um avanço acelerado da fascistização do cenário político em nossa conjuntura. Avanço premeditado e orquestrado.
Do ponto de vista histórico, o fascismo surge como expressão de descontentamento dos setores médios da sociedade italiana e ganha força justamente junto à classe trabalhadora, em especial aos desempregados e ex-combatentes desprovidos de qualquer amparo do Estado nos anos de crise econômica que assolaram o proletariado europeu após o término da 1ª Guerra Mundial. Surge também como uma resposta conservadora à eminente possibilidade de o pensamento marxista ganhar forças no interior do movimento proletário, diante do aumento das contradições sociais e dos limites do Estado burguês em dar respostas aos desdobramentos da miséria e piora na qualidade da vida operária.
Das principais características que marcam o fascismo e sua ascensão junto ao proletariado muitas delas ainda se evidenciam como marcas do processo de fascistização recente. Entre elas:
1 – Valorização do ultranacionalismo;
2 – Ataques moralistas à democracia representativa e apelo ao intervencionismo autoritário como forma de combate à corrupção;
3 – Defesa do Corporativismo de Estado (em nosso contexto, do corporativismo militar);
4 – Ênfase no militarismo como modelo de conduta cívica;
5 – Combate ao pensamento de esquerda em nome da segurança nacional e identificação do movimento comunista como inimigo prioritário;
6 – Desprezo pelos Direitos Humanos, pela manifestação cultural que ressalte a reflexão crítica (intelectuais, artistas e as ciências humanas);
7 – Controle e censura da mídia;
8 – Uso ideológico da religião para taxar o mal a ser extirpado e valores a serem padronizados, mesmo que à força, no cotidiano social.
Fascistização não é o mesmo que fascismo e essa distinção é necessária para se compreender a dimensão de nossa realidade, as ameaças em curso e as possiblidades de ação para combater esse processo. Entendo a fascistização como um processo que reifica, de modo constante e progressivo, ações políticas e jurídicas e manifestações ideológicas diversas que referendam as táticas e ou princípios políticos, organizativos e filosóficos do fascismo clássico, sem que isso corresponda ou esteja associado a todas as dimensões do fascismo, como, por exemplo, a defesa de um Estado coorporativo e intervencionista como ocorreu na proposta inicial.
A atitude protofascista é justamente aquela que se põe à vanguarda da defesa da cultura fascista, seja através da ação direta como um atentado, seja através da defesa veemente de princípios filosóficos do fascismo. Os protofascistas são os abre-alas que operaram a agitação e a propaganda dessa ideologia, podendo ser um partido político específico, um grupo de parlamentares, um veículo de informação e comunicação de massas, pessoas com certo prestígio local, organizações políticas diversas como clubes de oficiais da reserva e até mesmo autoridades religiosas. É mister destacar que a cultura fascista sempre esteve presente no ideário conservador, em menor ou maior evidência e atualmente tem sido enunciada como tática para sedimentar uma nova sociabilidade do Capital que possa dar condições de manter as estruturas de poder perante as inevitáveis contradições que tendem a se acumular como efeitos das investidas econômicas e políticas sob os escombros do Estado atual.
O Estado brasileiro não é fascista na atualidade, mas o atual Governo flerta abertamente com fascismo e estimula, pelo discurso de ódio, maniqueísta e segregador, ações protofascistas em sua base social, fortalecendo a cultura e a mentalidade neofascista dentro da própria “onda conservadora”. Isso explica, em certa medida, o porquê de algumas fissuras na base conservadora brasileira, pois alguns de seus expoentes já perceberam que alimentaram um monstro que fugiu do controle. É a vertente que vem ganhando cada vez mais espaço nesse contexto da chamada “onda conservadora”, pela sua maleabilidade pragmática em combinar preceitos neoliberais que atendam aos interesses neocoloniais das elites associadas ao Grande Capital estrangeiro, com os interesses políticos de hordas fundamentalistas e grupos recalcados no que há de mais atrasado em nossa história e que evidenciam a herança nefasta do colonialismo presente no DNA de nossa cultura: racismo, xenofobia e discriminação social.
A fascistização da sociedade brasileira segue esse percurso e vem sendo estimulada há anos tanto pela grande mídia que alimentou, no senso comum das massas proletárias, a criminalização das organizações de esquerda, em geral associando-as aos escândalos de corrupção nos Governo Lula e Dilma, quanto pelo consórcio celebrado por igrejas fundamentalistas, maçonaria e grandes grupos empresariais em um conluio reacionário que vai para além do plano estrutural dos ajustes neoliberais na economia. O efeito desse processo se, por um lado, atendeu às expectativas de todos esses grupamentos que conspiraram contra o Governo de Dilma Rousseff, destilando e orquestrando o Golpe institucional para destravar a agenda das contrarreformas sociais, precipitou, por sua vez, o contínuo progresso dessa marcha ultrarreacionária, alimentando um monstrengo que não se cansou de tocar o terror no parque de diversões… Agora esse monstrengo quer aterrorizar não apenas do parque, mas toda a cidade!
Por sua vez, aqueles que sustentam haver incompatibilidade entre o neoliberalismo e a possibilidade de uma cultura política neofascista, pelas incongruências históricas, se engam profundamente! O neofascismo acompanhou as mudanças da dinâmica de acumulação capitalista e corresponde no nível ideológico ao aparato de ação política e de governança que melhor responde às contradições frente à ampliação da exclusão social promovida pelo neoliberalismo. Essa simbiose alimenta e retroalimenta-se de uma verdadeira indústria de ódio e alienação e que só pode se completar à medida que as frágeis estruturas democráticas, apesar de burguesas em sua essência, devem ser tensionadas e desgastadas a fim de recompor uma nova ordem social que assegure relações de controle sob uma a esfera do poder econômico e financeirizado, que sob a lógica neoliberal, subjuga governos de países de democracia frágil levando consigo toda a estrutura do Estado.
À medida em que as contradições se acumulam e a instabilidade tende a aumentar, o apelo a “essa alternativa” fascista será para esses agrupamentos protofascistas, a rota natural ao desfecho das eleições de 2018. Ou seja, a fascistização poderá evoluir para um modelo de Estado mais próximo daquilo que a humanidade vivenciou nas décadas de barbárie dos anos 30 e 40 do século passado.
Ao fazermos o balanço de 2019, nesse primeiro ano de Governo Bolsonaro, deveríamos enumerar e qualificar a ampliação das manifestações protofascistas em todos os níveis, em especial o aumento da repressão armada contra lideranças sociais, indígenas, ambientalistas e movimentos populares, o fortalecimento da arbitrariedade dos aparelhos de repressão com o pacote “anticrime” de Sérgio Moro, o crescimento das milícias e grupamentos paramilitares de extrema-direita em todo o país, em especial no campo, a proliferação da militarização do ensino público e o recrudescimento de ataques à liberdade de imprensa, à defesa de preceitos constitucionais, às Universidades Públicas, ao conhecimento crítico, à Educação Laica, à diversidade étnico, religiosa e cultural, aos Direitos Humanos e a entidades civis como OAB e ABI, que, ao emitirem críticas às condutas arbitrárias e antidemocráticas do Governo, sofreram intensos ataques de ódio nas redes sociais pautadas por acusações fundamentadas em falácias, preconceitos de classe e argumentos sediciosos frente a qualquer postura contrária aos disparates do Governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro.
O exemplo mais recente da gravidade desse cenário foi o atentado contra a produtora do programa humorístico “Porta dos Fundos”. Ao assumir o atentado promovido com dois coquetéis molotov, um autoproclamado grupo integralista traz em seu discurso as bases moralistas do fascismo clássico: defesa da família e dos “bons costumes”, contra o marxismo e as instituições degradadas da democracia burguesa, leia-se o judiciário e o congresso. E mesmo que possamos classificar, a priori, essa ação como um arremedo patético e falsificado, do que foi o Integralismo nos anos 1930 ou a ação de um grupelho fundamentalista religioso em busca de repercussão e fama, o episódio não pode ser subestimado. Pouco importa nesse momento a relevância do “grupo” autoproclamado integralista e se de fato é ou não integralista, mas sim o que simboliza esse acontecimento e o sentido que poderá enunciar para o futuro próximo.
Fechamos o ano com um atentado não apenas à liberdade de expressão – sem entrar no mérito do que representou a imprensa na correlação de forças no período do golpismo e no processo eleitoral de 2018 -, mas um atentando que apresenta o cartão de visitas de milícias fascistas que poderão celebrar mais ataques a tudo aquilo que possa ser taxado de inimigo da tríade Pátria, Família e Propriedade.
As provocações e os atentados fascistas entre o final dos anos 20 e início dos anos 30 do século passado, como dizia William Reich, buscavam incentivar, através das ações diretas pautadas pela força da coerção, o modelo da intimidação como modus operandi a ser seguido a fim de mudar a ordem política e social e dessa forma ganhar mais e mais adeptos, alimentando principalmente junto aos setores médios e em parte do proletariado uma válvula de escape alienada frente ao descontentamento das condições de existência e a falta de perspectivas imediatas.
Não há mais como negar o intento de reproduzir no Brasil um cenário que justifique possíveis investidas contra as frágeis estruturas da democracia representativa, o que significa que atentados e outras provocações poderão ocorrer em escala cada vez mais frequente e diversa contra outros “inimigos da Pátria, da família e dos bons costumes”, podendo inclusive servir como justificativas futuras para apelos ao intervencionismo autocrático convenientes à Lei e à Ordem, como recentemente foi enunciado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro e o ministro da economia Paulo Guedes, ao fazerem referência à possível reedição de um Ato Institucional restritivo aos direitos políticos, como foi feito em dezembro de 1968.
Essa breve análise sobre a fascistização em curso merece em outro momento uma crítica mais detalhada sobre as responsabilidades diretas que o PT e correligionários do projeto Democrático-Popular tiveram ao longo desse processo, pois o avanço da cultura conservadora junto à classe trabalhadora não pode ser debitada apenas à crise estrutural do capitalismo e seus desdobramentos no Brasil. Devemos levar em conta outros aspectos, entre eles as opções políticas para manter o acerto da conciliação de classes em tempos de conturbadas manifestações sociais, como as que ocorreram em Junho de 2013, conhecidas como Jornadas de Junho, que tiveram como resposta do Governo Dilma a edição, em 19 de dezembro daquele ano, da Portaria Normativa Nº 3461 que dispunha sobre as “Garantias da Lei e da Ordem” (GLO).
Ao meu ver, o que cabe nesse cenário é compreender o avanço acelerado da fascistização no cenário político brasileiro e a disputa operada no sentido de precipitar justificativas ao golpismo institucional e ao aprofundamento de medidas reativas e autocráticas que servirão de esteio para uma repressão cada vez maior e “naturalmente” justificada pelo senso comum contra todo e qualquer tipo de resistência e oposição aos intentos autoritários do grupo sediado no Palácio do Planalto. Isso implica em compreender quais são as reais polêmicas em nossa estratégia para lidar com o mundo real, cenário das disparidades e contradições de nosso tempo presente e o que está em jogo nesse contexto de crise e ascensão neofascista, assim como importa e muito compreender quais são os reais inimigos a serem destacados, distinguindo-os dos diversos matizes de adversários, que ora se apresentam aqui e ali no atual contexto.
Por fim, aqueles que ousam resistir contra as agressões de classe e lutar contra os retrocessos impostos pelo Governo Bolsonaro devem entender que as condições de temperatura e pressão da Luta de Classes na América Latina e no Brasil vêm aumentando aceleradamente num patamar que exige de nós maior atenção diante das evidências da escalada autoritária, preparo ideológico e unidade política contra a horda neofascista que encontra respaldo em Brasília.
Devemos exigir veementemente das autoridades imediata e ampla investigação sobre os ataques à sede do grupo “Porta dos Fundos”, bem como imediata punição dos envolvidos, pois essa provocação fascista, assim como tantas outras provocações e agressões pautadas pela intolerância – a exemplo dos ataques cada vez mais frequentes às sedes e símbolos das religiões afrobrasileiras – não podem se tornar arremedos da banalização da barbárie cotidiana, correndo um sério risco de no futuro próximo um simulacro daquilo que foi o atentado fascista que incendiou o Reichstag (Parlamento Alemão em Berlim) em fevereiro de 1933, servindo como justificativa para o Golpe de Estado de Adolf Hitler, precipitar o intento e o desejo autocrático em um pesadelo real.