Chile: crônica de uma revolta anunciada
(Imagem: CELAG)
por Lucía Converti | Celag – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Existem duas formas de fazer uma análise sobre as condições socioeconômicas do Chile. Uma a partir da ótica economicista, pela qual se mede a evolução do PIB, o PIB per capita e a queda de pobreza medida por receita. Outra, que incorpora uma visão sobre o bem-estar da população, as condições trabalhistas, a possibilidade de acesso à educação, os níveis de segurança social e a desigualdade entre iguais.
A partir da primeira visão é impossível entender a revolta social que vive o Chile desde outubro do ano passado, quando o governo de Sebastián Piñera aumentou o preço do transporte público. A partir da segunda, a revolta já estava anunciada.
Neste informe se tentará aprofundar aqueles aspectos sobre a realidade social chilena que permitam jogar luz sobre as razões pelas quais o povo reclama uma mudança constitucional urgente.
Mercantilização da vida
Como é bem sabido, as mobilizações pela educação pública, o movimento contra as Administradoras de Fundo de Pensão (AFP) e as exigências por um sistema de saúde universal [1] vêm fazendo eco sobre os distintos governos que assumiram no país desde 1990. Estes governos adaptaram uma política economicista e focalizada para melhorar as condições sociais da população e, ainda assim, esses remendos não puderam alterar as premissas de uma Carta Magna instaurada durante a ditadura militar, cujo resultado foi que 45% da população ficasse abaixo da linha da pobreza.
Esse aspecto da vida no Chile condiciona todas as decisões de sua população; não se parte de um nível mínimo da segurança social, e sim há que conquistá-lo. Considerando esse ponto, é possível distinguir entre a pobreza medida pela renda, que foi de 8,6% em 2017, menor em comparação a 2015, e a pobreza multidimensional, que foi de 20,7% em 2017 [2] e manteve seu nível comparado a 2015.
Insegurança trabalhista
No país modelo do neoliberalismo se aplicaram todas as medidas possíveis de flexibilização trabalhista (menos a flexibilização da jornada laboral, que ficou pendente frente as mobilizações). Como é sabido, entre outras coisas, essas medidas permitem que os empregadores tenham um nível de rotação de pessoal alto, que vai se adaptando a suas necessidades de acordo com a temporada, nível de atividade, etc., reduzindo os custos laborais.
Naturalmente, aquilo que é benéfico para o empregados geralmente não é para o empregado. A rotatividade laboral no Chile é alta, sobretudo em empregos de baixa produtividade, que são os que mais necessitam de pessoal, como os serviços. Esse aspecto gera grandes níveis de instabilidade social, sob a qual em cada certo período as pessoas ficam desempregadas (6,9%), ou com um emprego que não é suficiente para o mês inteiro. A taxa combinada de desocupação e tempo parcial involuntário é de 16,6% [3] e, ainda assim, os níveis de informalidade se mantêm em 30% [4], acompanhando a redução de possibilidade de alcançar um melhor salário. Neste sentido, se focarmos sobre as diferentes condições sociais da população, o desemprego no decil mais baixo aumentou, entre 2015 e 2017, de 25,8% para 29%, mostrando um foco de pobreza estrutural.
Essas condições fazem com que os fatos de que 50% dos assalariados de mais de 30 horas tenha um salário mínimo (390 dólares) [5], que o ingresso mensal médio dos ocupados seja de 743,79 dólares [6] e que o PIB per capita seja de 15.924 dólares [7] perda sentido como uma forma de medir as condições da população.
Desigualdade
Existem duas respostas comuns ao fato de que o Chile é um dos países mais desiguais do mundo. A primeira é que o país sempre foi desigual (como se essa justificação pudesse reduzir o peso do problema) e a segunda é que essa desigualdade está diminuindo. No entanto, dados de desigualdade de longo prazo mostram que, de fato, a desigualdade no Chile é historicamente alta, mas também foi reduzida em determinados períodos, como durante o Governo da Unidade Popular, que aumentou acima da média durante a ditadura militar e que o declínio dos últimos tempos conseguiu ficar abaixo da média histórica (0,53) do Chile, mas não que o país seja menos desigual do que 170 anos atrás [8].
Outro dado a considerar é que a pesquisa CASEN (Encuesta de Caracterización Socioeconómica Nacional) de 2017 atingiu um coeficiente Gini superior ao da pesquisa de 2015, mostrando uma mudança na tendência que poderia se aprofundar se considerada a estagnação no crescimento dos últimos anos e o aumento do desemprego. Em 2015, os 10% mais ricos foram 33,9 vezes maior que o decil mais baixo, enquanto em 2017 foram 39,1 vezes maior.
Da mesma forma, os dados se tornam mais interessantes e explicativos quanto mais se aprofunda. Segundo o estudo “Desiguales” do PNUD, em 2015 os 5% mais ricos mantinham 51,5% da renda do país, 1% com 33% e 0,1% com 19,5%.
Comentários finais
Durante os últimos 20 anos o Chile teve um crescimento médio a nível regional [9], tem um dos PIB per capita mais altos da região, o desemprego e a pobreza em níveis baixos, e ainda assim, como pudemos ver, esses indicadores refletem somente parcialmente as condições de vida no Chile.
Os indicadores macro parecem descrever uma porção menor da sociedade, proprietária dos grupos econômicos e parte da elite chilena que se apropria do crescimento. Enquanto a maioria da população recebe os restos, às vezes mediados pelo Estado e às vezes não, o que permite que os indicadores padronizados para medir as condições sociais melhorem, sem que meçam a pressão da panela.
Notas:
[1] https://www.celag.org/servicios-sociales-chile-garantia-de-desigualdad/
[2] Dados da pesquisa CASEN 2015 y 2017.
[3] Ine setembro, outubro e novembro de 2019.
[4] Encuesta Nacional de Empleo, INE-Chile. Setembro – Novembro 2019.
[5] Lei 21112 sobre câmbio oficial.
[6] INE 2018.
[7] Cifra do Banco Mundial para 2018.
[8] Desiguales, PNUD. Gráfico de desigualdade da receita pessoal (Gini) no Chile em largo prazo (1850-2009).
[9] https://www.celag.org/latinoamerica-dos-decadas-de-crecimiento-economico/