Chile: da revolta popular às eleições constituintes

imagemPor Mauro Luis Iasi

BLOG DA BOITEMPO

É inegável para qualquer observador que estamos vivendo um momento de virada na conjuntura. O período de reversão no qual a direita e a extrema direita ocuparam espaços decisivos parece começar a fazer água diante das contradições que amadurecem no terreno da luta de classes. Os caminhos abertos, entretanto, ainda estão longe de apontar um desfecho nítido.

Partimos da compreensão de que a luta de classes não se desenvolve linearmente, isto é, não podemos esperar que um crescente de lutas e mobilizações culminem necessariamente em transformações sociais, uma vez que, como Lênin, acreditamos que os saltos revolucionários resultam da confluência de múltiplos fatores objetivos e subjetivos e de situações específicas nas quais transformações mais profundas e radicais têm lugar.

Podemos verificar um período histórico aberto pela vitória da Revolução Cubana em 1959, que culmina na derrota da experiência socialista da Unidade Popular no Chile em 1973, com o golpe do general Pinochet e das classes dominantes chilenas a serviço do imperialismo. Seguiu-se a esse período uma longa noite de ditaduras e domínio aberto do grande capital monopolista em nosso subcontinente, como demonstra a coleção de governos de extrema direita no Paraguai e Guatemala (1954), na Argentina (1962), Brasil e Bolívia (1964), Peru (1968), entre tantos outros. Já ao final dos anos 1970 e nas décadas seguintes, presenciamos aberturas democráticas que tiveram, na maioria dos casos, por característica um limitado horizonte reformista e de conciliação de classes e da chamada “concertación”.

O esgotamento desse momento produziu uma reversão de direita na maioria dos países da América Latina, como foi o bolsonarismo no Brasil e, no caso do Chile, a derrota dos socialistas de Bachelet para o atual presidente do Chile, o conservador Piñera. Ao nosso ver, a eclosão de grandes movimentos de enfrentamento de massa, como os verificados no Chile em 2019, no Equador e agora na Colômbia, devem ser compreendidos por dois vetores fundamentais. Por um lado, a gravidade da persistente crise econômica deixada de herança pela farra neoliberal que prometeu salvar o continente pela cartilha das privatizações, desmonte do Estado e rendição aos ditames do capital financeiro e do imperialismo. Por outro lado, os limites objetivos dos governos de conciliação de classe que se renderam ao pragmatismo esperando ampliar a democracia, ao mesmo tempo em que mantinham as premissas do saneamento financeiro do Estado com todas as consequências que conhecemos.

Há casos particulares que devem ser entendidos separadamente, como o da Bolívia, que sofreu um golpe e retomou eleitoralmente o governo depois de enfática resistência popular, a Venezuela que resistiu às ofensivas golpistas da extrema direita pró imperialista e a heroica resistência de Cuba durante todos esses anos em meio a bloqueios e ameaças. No entanto, em que pesem as particularidades, tanto na Bolívia como na Venezuela temos expressões mais radicalizadas de um horizonte estratégico que predominou em nosso continente nas últimas décadas.

No caso do Chile temos também alguns aspectos particulares que se destacam. As forças de direita do pinochetismo permaneceram atuantes e fortes apesar da derrota e dos governos de centro esquerda, inclusive na manutenção do arcabouço institucional e jurídico da constituição da ditadura. Economicamente, o Chile foi um precursor das medidas neoliberais e um laboratório para essa alternativa que se expandiu determinantemente para outros países. A eclosão das revoltas de 2019 não pode ser entendida como um episódio inesperado, principalmente se considerarmos a força das revoltas estudantis em 2006, a capacidade de mobilização e de luta que os trabalhadores, assim como a incansável luta do povo mapuche, demonstraram durante todo este período.

O resultado tangível da revolta de 2019 foi a convocação de uma assembleia constituinte exclusiva que acaba de ser eleita agora e que visa, finalmente, enterrar a constituição pinochetista. A primeira coisa a ser destacada é a derrota da direita nestas eleições, uma vez que os conservadores esperavam atingir um terço das cadeiras da assembleia (52 cadeiras) e, assim, terem direito a veto das medidas mais progressistas ou radicais a serem propostas. Com 99% das urnas apuradas, a coalizão de direita, Vamos por Chile, deve ficar com algo próximo de 38 das 155 cadeiras da constituinte. A frente de esquerda, formada pelo Partido Comunista do Chile (PCCh), Convergência Social e Frente Ampla, deve ficar com 28 constituintes, e a centro-esquerda (de Bachelet, Lagos e Aylwin) com algo próximo de 25 cadeiras. A chamada Lista do Povo, formada por militantes independentes que participaram das manifestações, deve ficar com 22 ou 23 cadeiras.

Além da Lista do Povo, os chamados independentes devem somar 65 ou mais constituintes, que colocam-se mais próximos das posições de esquerda e centro-esquerda. Dessa forma, o espectro de esquerda, centro-esquerda e independentes parecem ter a maioria na futura constituinte (118 contra 38 da direita). Entretanto, teremos que aguardar a postura concreta sobre os temas mais sensíveis do debate da nova carta para verificar na prática como se movem as forças políticas em torno de cada tema, uma vez que os blocos estão longe de ser homogêneos.

Não resta dúvida, entretanto, que, considerando cada força separadamente, temos um resultado muito promissor para o Partido Comunista e os Independentes se comparados aos resultados dos partidos de centro-esquerda envolvidos na concertación. O PCCh, além do resultado significativo na constituinte, teve um desempenho muito bom na disputa dos governos locais, ganhando a prefeitura de importantes regiões como a capital, Santiago, com a camarada Irací Hassler que derrotou o candidato de direita da Renovação Nacional, além de Viña del Mar, Ñuñoa e Maipú, entre outras.

Este cenário se soma aos resultados iniciais das pesquisas para a eleição presidencial que ocorrerá em novembro de 2021 e que aponta a liderança do camarada Daniel Jadue, destacado militante comunista. Não nos surpreende, conhecendo a força do PCCh e sua organicidade na classe trabalhadora, estando à frente por várias vezes da Central Unitária dos Trabalhadores, nas lutas sociais e nas representações parlamentares.

O desafio que se abre com tais resultados para a esquerda e os radicais chilenos é dar forma política à insatisfação e à rebeldia expressas nas manifestações com claro caráter popular e anticapitalista. Toda constituinte é um terreno contraditório de luta, uma vez que pode e deve pautar questões fundamentais para a vida da população e da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, corre o risco de ser a legitimação de uma ordem institucional que acaba sendo uma barreira contra transformações radicais da ordem econômica, social e política.

É evidente que se trata de enterrar de vez a constituição pinochetista, com todas as implicações que daí resulta e isso é um fato altamente positivo e promissor. Mas a nova ordem constitucional é sempre um ponto de partida e nunca o ponto final esperado, como foi no caso da Constituição de 1988 no Brasil. A diferença qualitativa se encontra na relação entre as manifestações de 2019 que constituem a força e a substância que se expressa na correlação de forças alcançada e que deve buscar manter-se em coerência.

O embate, agora, supomos, mudará de eixo colocando frente a frente alternativas mais radicais de mudança e o horizonte limitado de mudanças negociadas no interior da ordem burguesa e capitalista. Não nos surpreenderia que, nos pontos concretos a serem discutidos, possamos ver alianças de segmentos de centro com a direita e mesmo uma fragmentação dos chamados independentes, diminuindo a força transformadora que, emergindo das manifestações, se materializou na constituinte. Esperamos e confiamos que se manterá a força dos segmentos de esquerda para impulsionar mudanças além da negação do pinochetismo, na direção de superar os limites da conciliação de classes que estão na base da insatisfação popular.

A pergunta, que só poderá ser respondida pelo devir histórico, é se o atual cenário da luta de classes no Chile é a resolução em atraso no interior dos processos de democratização que caracterizaram o ciclo da conciliação de classes que já se encontra nos seus estertores no continente, ou o início de um novo ciclo de lutas mais radicais e profundas que, como resposta ao fracasso do neoliberalismo e da inflexão de extrema direita, apontem para a emancipação de nossos povos do jugo da ordem burguesa e do domínio imperialista. Lembrando a canção do Inti-Illimani, porque, mais que nunca, desta vez não se trata de trocar um presidente, mas criar as condições para que o povo chileno construa um Chile bem diferente.

Parabéns aos camaradas chilenos, ao povo mapuche e a todos aqueles que com seu martírio, sua luta, exemplo e dedicação tornaram essa vitória possível.

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.