Os órfãos da Nova República
Charge: Mauro Iasi
The Intercept e os órfãos da Nova República
por Pedro Marin | Revista Opera
Os órfãos da Nova República estão desesperados. Passaram décadas imaginando que aquela distensão democrática posta em marcha por Ernesto Geisel continuaria a mover suas engrenagens, até que o Brasil – esse forno alimentado pelo carvão-gente – se tornasse Nova Iorque ou Amsterdã.
Não perceberam que as engrenagens em que viam o progresso se movimentavam, ainda que sob o véu democrático-liberal, lubrificadas de sangue, inodoro aos narizes arrebitados, e que seu ritmo e direção não estavam sob controle deles, os sonhadores moderados. Ao fim, a máquina foi posta em marcha à ré, e os moderados ficaram órfãos de sonhos. Agora sim sentem o cheiro, gritam dos telhados e jogam tomates contra quem passa correndo, dinamite em mãos, pronto para explodir a máquina e seus gestores.
Exemplo maior foi dado pelos jornalistas Tatiana Dias e Rafael Moro Martins no artigo “Elogiar ditadores é a melhor forma de a esquerda continuar perdendo“, publicado no The Intercept nesta semana. Recheado da desonestidade de saltos lógicos sem limites, sob os quais um parágrafo inteiro serve para macular a imagem de comunicadores comunistas enquanto se defende a família imperial russa – talvez os jornalistas imaginem que o Czar se chamasse Haddad II, que o regime monárquico que comandava fosse modernizador, ou ainda que sua polícia seguisse os tratados internacionais que nem a moderna polícia militar paulista segue -, o texto que publicaram é um excelente exemplo das teses defendidas hoje por amplos setores da esquerda e da direita, ambos autointitulados “moderados”.
Essas teses partem do pressuposto de que houve uma ruptura da Nova República a partir da eleição de Bolsonaro ou do golpe contra Dilma Rousseff, e que é fundamental agir para recuperá-la. Mais: que o caminho para recuperá-la é falar mais baixo; mais amigavelmente. Não citar “ditadores”, não preparar a revolta, não responder à altura. Criar amplas coalizões é, de novo, a fórmula imaginada para o sucesso.
A República perdida
A política, ao contrário do que ensinam Tatiana e Rafael, não é “negociação”. A política é a representação da luta sangrenta entre as classes que compõem a sociedade, em busca de seus interesses. Trocando em miúdos: a política que conhecemos nos últimos anos no Brasil, apesar de sangrenta, é a representação pacífica de uma guerra, em que alguns poucos moem gente para enriquecer, e outros vários lutam para não serem moídos. A Nova República nasceu de uma ditadura militar que impedira a ascensão da classe trabalhadora em um governo verdadeiramente democrático e popular. Ela nasceu para ser a extensão, democrática, da moagem que a ditadura conseguira defender. Mas esse projeto, de espoliação sem grandes turbulências e com democracia, chegou a um limite. Que nos interessa o espetáculo da negociação, se o fim da moagem não estiver em pauta?
O golpe contra Dilma demonstrou que essa política não é encerrada em si mesma, que nem sempre é regida pelas regras que ela mesma criou. Isso é, a representação da luta dos interesses, quando infrutífera ou supérflua para os interesses em si, é substituída por uma outra representação. A eleição de Bolsonaro é o marco desta nova representação, em que a política deixa de lado sua pose pacífica – de pacífica ela de qualquer forma só tinha a pose – e volta a se aproximar da guerra. Que nos interessa o espetáculo da negociação, se negociaremos com aqueles dispostos a preparar a guerra?
Defender a necessidade de recuperar a Nova República nada mais é do que defender a recuperação da representação, da aparência; da pose. É defender como projeto os tempos em que o sangue, ainda que vertido tão inutilmente como hoje, era inodoro e ignorável, porque não era anunciado em programas partidários e na televisão. No máximo, percebendo o sangue, diziam que ele era uma “falha”, um pequeno “desvio” da democracia, uma contingência. Não entenderam que a máquina não funciona sem ele. Que nos interessa o espetáculo da negociação, se a negociação for pelo tipo de espetáculo?
Os jornalistas sequer ousam imaginar um cenário para além da derrubada de Bolsonaro. Dizem: “mesmo que tenha gente que siga piamente acreditando que o regime bolsonarista possa ser derrubado com uma revolução do proletariado, o cenário mais pragmático – e evidências de outros países reforçam isso – aponta que o único jeito de derrotar um governo autoritário é formando uma coalizão.”
Não entenderam que Bolsonaro é uma peça. Que por trás dele há toda a trajetória ignorada da Nova República. Que para além dele há o Partido Fardado. Não compreendem a dimensão do que ocorreu na Bolívia, das manifestações que seguem no Chile, dos eventos no Equador e no Peru: a direita que assombra os nossos sonhadores moderados é só a nova representação, violenta, do velho estado de coisas para o qual eles buscam nos arrastar. Não defendemos que a “revolução do proletariado” seja uma necessidade para derrubar a peça da vez; a defendemos como uma necessidade para que não haja a peça da vez, quer fale firme ou fino. Não se trata de “vencer ou perder”, e sim de contestar as regras do jogo, que nos fazem reféns de chamar de vitória um projeto negociado que seja tão radicalmente diferente do bolsonarismo na aparência quanto é similar na essência. Não foi afinal “elogiando ditadores” que Haddad perdeu as eleições – foi tentando ser um “moderado”. Não foi radicalizando que Dilma foi derrubada – foi concedendo. E os governos petistas, a despeito de terem sido continuamente atacados por aqueles setores com os quais, dizem os jornalistas, devemos dar as mãos, não foram revolucionários.
A aliança inútil
Os jornalistas reconhecem que partidos como o PSDB ajudaram a criar o clima que possibilitou a ascensão de Bolsonaro. Ainda assim, defendem que a partir de uma coalizão negociada com este partido, nasça o punhal que derrotará o inimigo. Se conseguem entender um cenário em que o PSDB tenta se aproveitar do bolsonarismo como um caso em que a vaca passa a mamar do bezerro, é certo que têm capacidade de entender que buscar “derrotar o bolsonarismo” a partir de uma frente ampla com esse partido é algo como negociar com um rio o esvaziamento, às baldadas, do mar.
O que a política tem de negociação ativa é a expressão de uma guerra contida. Os termos de qualquer negociação, na política, só podem ser feitos frente à força real dos negociadores. O esvaziamento do chamado centro e da “direita tradicional” não foi obra dos radicais de esquerda, mas, ao contrário, sua própria. Foram eles quem cimentaram o caminho para o bolsonarismo, sua própria expressão radical, tornando-se inúteis no percurso. Como Lacerdas que fazem carreira fomentando golpes para, ao fim, serem eles os perseguidos. A esquerda moderada foi também soterrada nesse processo. Primeiro, se tornando progressivamente mais parecida com a direita. Segundo, sendo golpeada com o apoio daqueles mesmos aos quais tentou se aliar. Terceiro, perdendo sua razão histórica, por ambos os motivos.
Se um PT de terno ou um PSDB com nariz de palhaço puder, nos próximos anos, vencer uma eleição, a situação também não mudará. Os ideais de moderação não podem resolver uma situação concreta de espoliação e violência radical. É por isso que, na situação atual, os projetos radicais – à direita e à esquerda – são os que concentram um apoio crescente. O primeiro representando a radicalidade necessária para uma minoria moer, e o segundo representando a intransigência necessária para a maioria não ser moída.
Tomemos essas considerações então para medir as forças, mesmo que para uma pretendida negociação.
É certo que a maior força, no momento, se encontra com o bolsonarismo. Do ponto de vista moral, no entanto, sua força é decrescente, o que sugere que essa perda de apoio pode ser compensada pela força concreta. Até mesmo para manter algum nível de apoio moral, com um núcleo duro propriamente bolsonarista, é necessário à extrema direita manter uma postura radical. No Parlamento, sua força foi reduzida pelo racha no PSL.
O PT mantém ainda uma posição de força relativa. No campo moral, no entanto, essa força depende de Lula. E como os homens são feitos de carne, e, claro ficou nas eleições, podem ser retirados da vida política à golpes de caneta, a força moral petista se encontra tutelada. No campo concreto, é o segundo maior partido do Brasil em número de filiados, e mantém o controle sobre um número grande de sindicatos. Essa força concreta poderia ser um fator de pressão, mas como o partido teve sua presidenta e seu líder perseguidos de forma abjeta sem maiores mobilizações, sua força concreta mais parece ser uma reserva do que uma força de fato; uma espada brandida, mas que não golpeia. A principal força do petismo se encontra hoje no Parlamento.
Chegamos enfim ao que os jornalistas chamam de direita “moderada”. MDB e PSDB, juntos, representam sozinhos quase três vezes o que o PT tem de filiados, mas a natureza dessa ampla base é a fraqueza na ação. Do ponto de vista moral, como foi dito, também se degradam. A força reside na sua presença parlamentar, para a qual contam com uma conduta continuamente alterada, de acordo com os ventos, e com gigantescas máquinas eleitorais.
A postura alquebrada
Fica claro que o setor mais forte e distante de nosso campo tem em sua moral um Calcanhar de Aquiles. Que para manter algum nível de apoio, depende do discurso radical, e que tem como garantia do próprio poder o uso da força concreta.
Que o setor “democrático popular” tem uma força concreta grande, mas absolutamente inutilizada, mesmo em momentos de radicalização e crise. Que do ponto de vista moral, tem uma força relativa, mas altamente dependente de uma só figura. E que sua principal força hoje se encontra no Parlamento.
Por fim, que os “moderados de direita” não têm força concreta, e que sua força moral foi degradada por sua própria ação, que elevou a temperatura até que seu próprio discurso fosse frio demais. Sua força é a da representação, a parlamentar; assegurada pela máquina eleitoral e pelo marketing bem feito. Nesta empreitada, poderão tentar competir com o bolsonarismo imitando-o ou dele tentando se distanciar.
Que sentido teria em aliar-nos a eles, ajudá-los a pôr o novo véu que devem vestir? Por que degradar nossa moral em troca de força parlamentar mínima, se aqueles com o qual deveríamos nos aliar já são fortes no parlamento, se aqueles que devemos combater preparam a guerra e vivem de seu discurso, e se só nós temos condições de, no campo moral, dar resposta a médio prazo aos problemas do Brasil?
A censura dos órfãos da República é a expressão daqueles que não compreenderam que “na teoria ela traçava a compasso as formas em que a dominação da burguesia se exprimia republicanamente, na realidade só conseguia se afirmar pela abolição de todas as fórmulas, pela forças sem rodeios, pelo Estado de sítio”. A entonação doce na voz não deterá a abolição das fórmulas, a força sem rodeios, nem o Estado de sítio. Não entoaremos um canto harmonioso até que o País, entrando em transe, abra mão da violência despótica que o pinta de vermelho há 500 anos. A isto tudo só a força real, orientada para um projeto radical, pode fazer frente.
Pedro Marin
23 anos, é editor-chefe e fundador da Revista Opera. Foi correspondente na Venezuela pela mesma publicação, e articulista e correspondente internacional no Brasil pelo site Global Independent Analytics. Tem artigos publicados em sites como Truthout, Russia Insider, New Cold War, OffGuardian, Latin America Bureau, Konkret Media e Periferia Prensa. É autor de “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”.