“Acordo do século”: aniquilar a Palestina
Palestinianos protestam, na Cisjordânia, contra o chamado «Acordo do Século» Créditos / France 24
José Goulão
ABRIL ABRIL
Não são apenas a colonização e a segregação racial que o «acordo do século» agora «legaliza». O documento «legaliza» também a limpeza étnica em que assenta o Estado sionista desde a fundação, em 1948. A «Visão de Paz» estampada por Donald Trump e Benjamin Netanyahu em 28 de janeiro como «solução» para o problema israelense-palestino não trouxe surpresas. Há meses que os seus conteúdos vinham sendo conhecidos às fatias, sob a designação pomposa de «acordo do século», pelo que nenhum dos aspectos focados ao longo das 80 páginas do documento contraria o que era esperado. Mais grave do que o texto é o fato de estar sendo aplicado há muito tempo, perante a inércia da chamada «comunidade internacional» e representar um patamar elevadíssimo – quase irreversível na atual relação de forças mundial – da estratégia de fatos consumados seguida metodicamente por Israel e os Estados Unidos.
Para o povo palestino, o mais desprotegido na cena internacional, a divulgação desta obra do sionismo catapultada institucionalmente pelas mentes fascistas radicadas em Washington é a continuação da visão dos infernos em que foi transformada a sua existência. O cenário em que decorre a guerra de aniquilação, porém, alterou-se qualitativamente devido às novas condições que a envolvem e não por causa do teor do “acordo”. A «visão» de Trump e Netanyahu implica a revogação dos Acordos de Oslo de 1993, dos quais os Estados Unidos se retiraram logo em 30 de Janeiro; e significa que a maior potência militar mundial, que tem com Israel uma «indestrutível» aliança, deixou de reconhecer o articulado de normas internacionais que regem a regularização do problema israelense-palestino.
Há ainda um terceiro aspecto das novas condições criadas, provavelmente o mais perverso de todos. O «acordo do século» é inegavelmente uma imposição que tem por detrás um poder militar desmedido; e os seus autores consideram – unilateralmente, é certo, mas manda quem tem força – a parte palestina como comprometida – ainda que submetida. Isto é, os palestinos terão assim uma oportunidade «única» para se renderem à «paz» que lhes é imposta. Se não aceitarem, o problema será deles, sofrerão as consequências.
Nova doutrina
Com a manobra da «Visão de Paz» os Estados Unidos e Israel colocaram na arena diplomática mundial uma «solução» da questão israelense-palestina que vem sobrepor-se, com repercussões no terreno, às normas internacionais que regem o problema e que são instrumentos da ONU, quase todas por aplicar e sem que se note poder real – e vontade – para as passar à prática.
Israel, com a cumplicidade de todas as sucessivas administrações de Washington, aproveitou a inércia envolvente para cumprir uma sucessão de fatos consumados que, passo-a-passo, foram invalidando no terreno as possibilidades de concretizar o direito internacional.
O «acordo do século» veio agora dar esses fatos como adquiridos enquadrando-os numa «solução» que os autores – num desplante que ridiculariza toda a «comunidade internacional» – consideram compatível com a ideia de «dois Estados».
O eixo central da estratégia de fatos consumados foi o da colonização. Apesar de saberem perfeitamente que as alterações demográficas em territórios ocupados significam violações das convenções internacionais, as autoridades israelenses e os seus aliados norte-americanos autorizam e promovem a criação de colonatos na Cisjordânia e nos Montes Golã sírios desde 1967, prática que se traduz numa anexação gradual mas sistemática. A colonização foi acompanhada por uma limpeza étnica manu militari através da expulsão de populações, criação de estruturas físicas de apartheid, como o muro de separação e redes viárias reservadas a colonos, expropriação de terras, isolamento de comunidades, inclusivamente em relação às fontes de subsistência.
Hoje, 460 mil colonos ocupam a Cisjordânia, cerca de 22% do número de palestinos que ali vivem submetidos a condições humilhantes, degradantes, sujeitos à violência, à arbitrariedade.
O «acordo do século» vem dar esta situação como adquirida, logo irreversível. Os colonatos são «legais», segundo afirma Trump; os mapas publicados integram os Montes Golã no território de Israel; Jerusalém é a «capital una e indivisível» do Estado israelita, apesar de o direito internacional considerar o setor Leste da cidade como capital de um futuro Estado palestino.
O «Estado» palestino, porém, vem contemplado na «Visão de Paz» de Trump e Netanyahu: as comunidades que restam na Cisjordânia, cercadas e aterrorizadas por colonatos, ligadas por um túnel rigorosamente vigiado à Faixa de Gaza, por sua vez cercada e asfixiada pelas tropas israelenses. Um «Estado» sem fronteiras, pulverizado, inviável, desmilitarizado – caso contrário poderia «ameaçar a segurança de Israel» – sem soberania, sem independência, com a capital numa aldeia dos subúrbios de Jerusalém, obrigado a reconhecer Israel como «Estado judeu». Os «bantustões» do apartheid do século XXI.
Apesar de o documento admitir «congelar» a colonização durante quatro anos, mas não definindo qualquer programa para depois dessa fase, se ela existir, Israel persiste na intenção de anexar o Vale do Jordão e as áreas C dos Acordos de Oslo, nas quais existe a ocupação militar permanente. Tais circunstâncias restringem ainda mais os territórios palestinos em termos de área mas também, e sobretudo, no acesso a recursos naturais, designadamente a água e terrenos férteis.
Não são apenas a colonização e a segregação racial que o «acordo do século» agora «legaliza». O documento resolve de uma penada a situação dos milhões de palestinos refugiados e cujo direito ao retorno lhes é assegurado pelo direito internacional; isto é, «legaliza» também a limpeza étnica em que assenta o Estado sionista desde a fundação, em 1948. Para Trump e Netanyahu deixam de existir refugiados e as instituições que os representam, incluindo a agência das Nações Unidas (UNRWA), uma vez que passa a haver um «Estado» palestino.
Um mundo inerte
A maior parte dos agentes que têm voz na «comunidade internacional» reagiram da maneira mais óbvia – e mais cômoda – a esta ofensiva séria contra o direito internacional protagonizada por figuras influentes nas Nações Unidas, no «mundo ocidental» e na OTAN: reafirmaram a validade das normas estabelecidas no quadro da ONU, especialmente a da solução de dois Estados viáveis.
É a mesma atitude que foi assumida habitualmente apenas de maneira verbal, década após década, enquanto Israel foi consumando fatos que agora, com apoio do mais poderoso exército mundial, transforma numa nova «solução», renegando as «antigas».
Estados Unidos e Israel desafiaram a «comunidade internacional» conhecendo antecipadamente as reações que se seguiriam. Pelo que poderão agora aplicar o «acordo do século» sabendo que à sua volta continuarão a ouvir as mesmas recitações sobre as normas instituídas.
A União Europeia não conseguiu, sequer, uma plataforma de entendimento sobre uma posição comum. O chefe da política externa, Josep Borrell, fez uma reafirmação dos principais pontos do direito internacional mas nada avançou quanto a atitudes a tomar no caso de a «Visão de Paz» ser aplicada e invocada. Os chefes da União Europeia têm obrigação de saber que ninguém, muito menos quem tem a força do seu lado, se envolve numa manobra com esta envergadura para a deixar ficar no papel.
A França considera que o documento de Trump e Netanyahu «não resolverá» o problema israelense-palestino, mas os poderes parisienses abstiveram-se de condenar abertamente a iniciativa.
As Nações Unidas reafirmaram as normas estabelecidas no direito internacional, mas fizeram-no através de um porta-voz do secretário-geral. António Guterres evitou dar a cara numa situação desta gravidade, o que diz muito quanto à disponibilidade para combater uma provocação ostensivamente dirigida contra a instituição de que é o principal dirigente executivo.
A Liga Árabe condenou a iniciativa norte-americana e israelense, mas não é segredo que a posição não terá consequências práticas, tendo em conta as cumplicidades com Israel assumidas por importantes membros da organização, como o Egito e a Arábia Saudita.
Os palestinos chegam a esta fase da sua longa resistência praticamente sozinhos. Têm, é certo, a solidariedade de povos de todo o mundo; no entanto, essas posições não se repercutem depois nas instituições que deveriam representá-los e se alheiam, deste modo, dos gravíssimos atropelos contra os direitos humanos e as leis internacionais.
Enrodilhados na armadilha da «autonomia» que restou dos Acordos de Oslo, divididos em duas áreas de governação limitada – Ramalah e Gaza – contando com uma Organização para a Libertação da Palestina (OLP) enfraquecida por esta divisão e respectivo impacto nas principais comunidades de refugiados, os palestinos estão agora ainda mais vulneráveis perante um cenário de opressão mais agressivo.
Como sempre, a luta contra mais este passo para a anexação e a aniquilação partirá de dentro – os palestinos já mostraram que não se rendem. Precisarão, mais do que nunca, de apoios populares internacionais, os quais, para lhes chegarem, terão de ser suficientemente fortes e convergentes para passarem por cima de governos, organizações internacionais e da barreira midiática-propagandística que tenderá a funcionar à medida das necessidades dos seus maiores manipuladores, os mesmos que apareceram agora com um novo plano de guerra contando com a vitória que sempre lhes tem escapado. E que, apesar de força bruta e brutal, irá fugir-lhes mais uma vez.